Ao abordar as questões que envolvem o ato de uma pessoa tirar sua própria vida, não estamos falando apenas de um indivíduo, mas da vida e história de uma família, de uma comunidade e de uma sociedade em todos os seus aspectos.
Com origem no latim – sui (si mesmo) e caederes (ação de matar) – o termo suicídio foi usado pela primeira vez como vocábulo pelo escritor inglês Sir Thomas Browne, no livro Religio Medici (Religião do Médico), em 1643. Mas foi o abade francês Desfontaines quem definiu o termo, em 1737. Porém, desde os tempos antes de Cristo são muitas as referências ao ato de suicidar-se.
Estudos na área da psicologia, sociologia, antropologia e filosofia se debruçam sobre o tema e buscam desvendar os motivos que levam uma pessoa a cometer um suicídio. Conceitos de fracasso, solidão, coragem, moralidade e sofrimento perpassam nas questões sobre a morte voluntária, como diziam os escritos da Grécia Antiga.
Problema social
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2012, mais de 800 mil pessoas por ano cometem suicídio, se tornando, inclusive, a segunda causa que mais mata jovens de 15 a 29 anos. Destes, 75% são registrados em países mais pobres e emergentes. Em termos absolutos, o Brasil ocupa a oitava posição no ranking de maior número de casos deste tipo, com 12 mil ocorrências. A Índia é o primeiro, seguido da China, Estados Unidos e Rússia.
Equivocadamente, o senso comum infere de que o ato de se matar está relacionado diretamente ao fracasso ou uma incapacidade de enfrentar as adversidades da vida, levando o indivíduo ao ato extremo. Porém, segundo Enrique Bessoni, mestre em Psicologia Clínica e Cultura e analista da Fiocruz Brasília, os estudos da saúde coletiva consideram os chamados determinantes sociais da saúde – condições sócio-histórico, econômicas e culturais – nos diagnósticos de transtornos mentais.
“A gente sempre atribuiu todos os transtornos mentais como algo que acontece com o sujeito, de uma forma muito pessoal e personificada. Quem estuda os determinantes sociais e saúde coletiva vão dizer é o contrário. Tem questões estruturais dos momentos e condições que a gente vive que irão interferir no processo de saúde e doença. Condições de emprego, acesso a serviços, renda, moradia, questões de gênero. Essas são algumas concepções que nos ajudam a pensar a questão do suicídio com outra perspectiva”.
Para o filósofo e professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), com formação também em Psicanálise pelo Instituto Brasileiro de Ciências e Psicanálise (IBCP), Arthur Meucci, os médicos sabem que suicídios são socialmente construídos, porém, “existem alguns picaretas que se dizem neurocientistas, mas que não tem nenhum conhecimento em psicologia e psiquiatria, que dão respostas individualistas e sem vínculos sociais. Não estamos dizendo que não exista essa química, mas os estudos da psicologia social, desde o começo do século, mostram que algumas condições sociais acabam levando certos indivíduos a produzirem determinado tipo de hormônio. Esse hormônio é socialmente acionado. Chama-se somatização”, afirma.
No caso, o professor se refere à teoria de que o cérebro das pessoas em depressão deixa de produzir a enzima Triptofano hidroxilase (TPH), responsável pelo controle da taxa de serotonina. Porém, esse argumento vem sendo derrubado principalmente porque não foi encontrada nenhuma deficiência de serotonina no cérebro de pessoas deprimidas.
Suicídio vs Classe social
Outra questão interessante é a relação dos índices de suicídio e a classe social. Outro equívoco do senso comum, para Arthur, seria apontar que pessoas menos abastadas estão mais propensas a se matarem.
“Pelo contrário. É um erro, um discursinho liberal. Se fizermos uma pesquisa mais básica veremos que os ricos e emergentes são os que mais se suicidam. As taxas entre executivos de alto escalão é três vezes maior do que funcionários da base da empresa. Dois erros: não é uma questão individual e nem relacionada a classe social. Os mais pobres se re-conectam socialmente muito mais”, defende.
Enrique Bessoni aponta que pessoas com maior poder aquisitivo conseguem um acesso ao atendimento, mas por tabu, estes são casos sub-notificados. “A família não deixa constar no atestado de óbito ou no prontuário o registro de tentativa de suicídio, e ele fica com o registro de politraumatismo, acidente de carro, queda de certa altura. Não é uma questão da pobreza”.
Segundo o psicólogo, as tentativas e as taxas estão presentes em todas as faixas etárias e em todas as classes sociais. “Existem situações de vida para as mulheres que estão associadas às tentativas de suicídio. A depressão pós-parto, a violência doméstica”. Enrique aponta ainda o aumento das taxas de suicídio em populações LGBT e em situação vulnerável, pelo extremo sofrimento provocado pelo preconceito e portas fechadas quando à procura de um emprego ou nas relações sociais cotidianas.
Viçosa e religião
Arthur tem se debruçado nos últimos dias a levantar mais dados sobre a preocupante taxa de suicídio na universidade onde leciona, em Viçosa. A média nacional, segundo levantamento elaborado a partir dos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, é de 5,08 por cem mil habitantes, enquanto que na cidade mineira é de 7,88. Outro dado interessante aponta que, contrário também à media nacional, as mulheres em Viçosa tem cometido mais suicídios do que os homens. E um terceiro fator: a primeira ligação aparente entre as mulheres que se suicidam e que tentaram se suicidar em Viçosa, apontado pelo professor, é que a maioria é de famílias religiosas evangélicas, com exceção das mulheres que tinham algum transtorno depressivo e estavam com acompanhamento médico.
“Algumas mulheres das comunidades presbiterianas, batistas, dizem que são discriminadas dentro da própria igreja. Conversei com uma moça que tentou se matar – que faz arquitetura na UFV – e ela reclama que na igreja a chamam de comunista, de ‘feminazi’. Até contatei a igreja presbiteriana, mandei e-mails e eles não se pronunciaram a respeito. Há uma perseguição e desvinculação de mulheres que fazem curso superior dentro da comunidade evangélica. Essa moça, por exemplo, é da fronteira de Minas com Espírito Santo, são quase oito horas de viagem. Ela chega aqui, não tem conhecidos, não está com a família, e quando busca algum engajamento social, como diz Durkheim, a igreja cerceia. Muitas mulheres desistem da universidade”, ressalta.
Valendo-se de Durkheim, que afirmava que o suicídio é muito mais comum entre os protestantes do que entre os católicos, o professor explica que para os católicos a salvação é conjunta, eles têm em sua comunidade uma hierarquia e são uma única igreja em todo o mundo. E tudo isso, segundo ele, ajuda muito a pessoa a se reconectar em um momento de estresse, extrema solidão, desgaste social. “Na protestante não, seja ela batista, presbiteriana, assembleiana, está vinculado à só um tipo de igreja, que facilita sua desvinculação de um corpo social, alguém para conversar sobre uma relação amorosa, pressão no estudo ou trabalho”, conta.
Divulgação
Falar sobre suicídios requer muita sensibilidade de profissionais da comunicação. Ancorados no chamado “efeito Werther”, e na tese de que o suicídio é contagioso, hipótese descartada também por Drukheim, a maioria dos jornais e veículos de mídia não noticiam casos de suicídios, quase como em um acordo tácito. Werther faz referência ao romance epistolar de Johann Wolfgang Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774. Werther, um rico jovem alemão, vive uma paixão que não pode ser correspondida em sua plenitude, pelo fato de sua amada, Charlotte, ser casada. Então, ele decide por fim à sua vida com um tiro na cabeça. Quando a obra ganhou os palcos dos teatros alemães, a taxa de suicídio entre jovens aumentou significativamente. Segundo Enrique, existem pesquisas que apontam que quanto mais informação é difundida sobre o suicídio, de maneira responsável e ética, maior as condições de serem ofertados serviços de assistência. “O tabu é transversal. Existem em todas as faixas etárias, classes sociais e entre todos os profissionais. Não existe, de maneira geral, um lugar onde você tenha consolidado que é tranquilo falar sobre suicídio. Tem o aspecto mórbido, moral, do próprio impacto que as pessoas pensam que geram falar sobe suicídio”.
O psicólogo cita o recente caso do suicídio de um motoboy, de 41 anos, com o filho de quatro no colo, que se jogou do 17º andar do prédio do Fórum Trabalhista do Tribunal Regional de São Paulo, que, para ele, foi tratado de maneira sensacionalista, não trazendo nenhuma informação adequada sobre o assunto.
“Se você faz uma reportagem dizendo qual a dose suficiente de chumbinho para matar, você está dando o método publicamente, e não trabalha de fato a relação que se precisa sobre o fato de que o chumbinho no Brasil é ilegal, não pode ser comercializado, se você souber de algum lugar que vende ilegalmente, pode denunciar para a vigilância sanitária da cidade, e a ingestão do chumbinho tem que ser imediatamente socorrida para, se possível, promover a lavagem estomacal”, conclui.