Estamos diante de um problema de saúde pública e o Brasil ainda não protagoniza campanhas ou ações para responder às estatísticas de aumento de suicídios, que cresceram 30% nas duas últimas décadas, entre jovens do sexo masculino. Amargamos o dado de 10 mil mortes por ano, mas estima-se que esse número seja duas ou três vezes maior por causa da subnotificação ao registrar a causa da morte.
“Quem quer suicidar não fala”. Esse é um dos mitos que envolvem um tema que é tabu, inclusive, entre familiares, amigos e amores dessas vítimas que viveram a situação. Fernando Neves, psiquiatra, professor da UFMG, coordenador do serviço de psiquiatria do Hospital das clínicas da UFMG e membro da Associação Mineira de Psiquiatria, diz que os estudos comprovam que a maioria das pessoas fala com alguém próximo ou com o médico ou dá sinais de que está querendo se suicidar. “Essa é uma porta de prevenção”, afirma.
Outro mito que permeia a questão é a ideia de que se a pessoa tem um comportamento suicida em algum momento da vida, ela vai ter sempre. “A gente trata e a ideia de morte desaparece”, afirma Humberto Costa, professor titular de psiquiatria da UFMG, vice-presidente da Associação Mineira de Psiquiatria e vice-presidente da Associação Latino-americana de Prevenção do Suicídio.
Desafios
A quase totalidade dos suicídios – 99% – está associada a um transtorno psiquiátrico. “A melhor forma de prevenir é tratar o transtorno psiquiátrico de base”, explica Fernando Neves. Dentro do espectro de transtornos mentais a depressão merece uma atenção especial. “Infelizmente, a depressão muitas vezes não é identificada como doença, mas como uma coisa da vida. Para você ter uma ideia, estudos nos Estados Unidos mostram que apenas 25% das pessoas que precisam de tratamento por causa de depressão estão fazendo. No Brasil é pior”, afirma o médico. Outro dado desanimador do contexto brasileiro é falta de estrutura física. A OMS recomenda quatro leitos psiquiátricos para cada 100 mil pessoas. No Brasil, tem-se 0,4 leitos para cada 100 mil. “Dez vezes abaixo do preconizado pela OMS. É uma estrutura sucateada”, pontua o psiquiatra.
Humberto Costa diz que organizar a rede de saúde para atender a população com transtorno mental passa por disponibilizar ambulatórios, centros de atenção psicossocial, serviços de urgência e retaguarda de leitos hospitalares.
Documentário brasileiro aborda suicídio
Manoela Costa, 22 anos, é estudante de economia e irmã da cineasta mineira Petra Costa. A diretora retratou no premiado Elena um episódio familiar sobre amor e perda. A jovem que intitula o longa-metragem é irmã de Manoela e Petra. Elena viaja a Nova York com o mesmo sonho da mãe: se tornar uma atriz de cinema. As coisas não ocorrem como o desejado e ela se suicida. Duas décadas depois, Petra também se torna atriz, embarca para a cidade norte-americana em busca da história da irmã e essa jornada é retratada em tela grande. Quando Elena partiu, Petra tinha 7 anos e Manoela ainda não tinha sequer nascido. “Eu nasci nove meses depois da morte de Elena. O suicídio dela sempre foi tabu lá em casa. Ela é minha irmã por parte de pai e ele nunca conseguiu falar abertamente dela. Eu fui descobrir que tinha essa irmã [elas são quatro no total] quando já era mais velha”, relata.
Manoela conta que em uma visita de Petra à sua casa sentiu uma tensão em uma conversa da irmã com o pai. “A partir desse dia que começou a ter foto da Elena lá em casa. Isso só aumentou a nossa curiosidade. Eu tinha 7 anos e Petra foi o nosso elo com a história da nossa irmã mais velha”, conta.
A estudante de economia conta que foi entender que Elena tinha se matado quando já estava mais velha. “Meu pai não consegue colocar para fora esse assunto. Ele se fecha. Todo mundo comenta que meu pai era uma pessoa antes da morte da Elena e que hoje é outra. São duas pessoas diferentes”, diz.
Manoela diz que o filme ajudou a esclarecer a história de Elena como a da própria Petra. “É tão puro que qualquer um se identifica com o filme”, observa. A jovem diz que conversar sobre o suicídio é uma forma de parar de inventar desculpa. “Omitir, esconder não resolve nada. Ninguém tem culpa”, encerra.
O pensamento
Muitas pessoas têm algum pensamento suicida ao longo da vida. “Não é raro. Entre 10 a 20% das pessoas pensa em se matar, mas a minoria vai fazer uma tentativa ou mesmo se suicidar”, informa Fernando Neves. O suicídio por impulso, de acordo com o especialista, geralmente está associado a um transtorno de personalidade – principalmente borderline, narcisista e antissocial – ou transtorno bipolar. “Os seres humanos tendem a estabelecer uma causa única para as coisas que acontecem na nossa vida, mas nem sempre isso é possível diante da complexidade humana”, pondera. O psiquiatra diz que os pesquisadores consideram que, nesses casos, não existe uma causa única, mas uma variedade de fatores. Ele exemplifica: “um problema financeiro gera estresse, pode virar uma situação traumática que leve à depressão e ao suicídio”. Ele ressalva que pessoas naturalmente agressivas ou impulsivas, em situações adversas, podem tomar imediatamente uma atitude contra si.
A genética também tem papel preponderante na decisão. “50% do comportamento suicídio tem a ver com fatores genéticos”, afirma o médico.
Nos países desenvolvidos tem-se registrado uma discreta redução nas taxas de suicídio. Já nos países em desenvolvimento como o Brasil, nos últimos 20 anos registrou-se um aumento de 30% na incidência da taxa de suicídio entre homens jovens com idade de 15 a 30 anos. “O homem se mata três a quatro vezes mais que a mulher”, afirma Humberto Costa. A idade também é fator de risco acima dos 60 anos, mas os principais são: ter feito uma tentativa anterior e a presença de um transtorno mental. Em termos numéricos, a depressão é o principal deles.
Ainda não existem conclusões para explicar o aumento da incidência de suicídio entre os homens jovens. “As especulações passam pelo conceito de laço social do filósofo francês Émile Durkheim. Nas comunidades em que os laços sociais são mais coesos, as taxas de suicídio são menores. Isso se aplica também para o indivíduo. Famílias maiores, com mais filhos, têm menos incidência. Quem trabalha se suicida menos que os aposentados ou desempregados. Pessoas envolvidas em atividades esportivas ou religiosas também se matam menos”, explica o psiquiatra.
Tratamento
Uma vez detectado esse comportamento suicida – que passa pela ideação, o planejamento, a tentativa e o ato em si – a pessoa precisa de medicação, acompanhamento médico e, em alguns casos, vigília 24 horas. “O profissional avalia a capacidade de a família observar esse paciente. Se não for possível, essa vigília pode ser feita dentro de um hospital. O médico também faz um contrato verbal com o paciente pedindo que mediante qualquer ideação, que entre em contato com o especialista”.
Prevenção
Segundo Humberto Costa, ao contrário do Brasil, vários países têm estratégias próprias para prevenção do suicídio. “Na Inglaterra, por exemplo, existe um esforço para tratar o mais rapidamente e eficazmente possível as depressões”, cita. Outro procedimento é dificultar o acesso aos métodos mais utilizados de suicídio. “Muitos países, por exemplo, proibiram o uso de pesticidas e agrotóxicos letais aos seres humanos. Ainda não fizemos isso. A estratégia depende da realidade do país”, completa.
Segundo Humberto Costa um comitê da Associação Brasileira de Psiquiatria elabora diretrizes considerando o que seria importante para o Brasil adotar. “O diagnóstico dos quadros depressivos é importantíssimo”, elenca. Outra sugestão é a notificação compulsória das tentativas de suicídio. “As secretarias de saúde precisam ser comunicadas e precisamos garantir que a pessoa não vá sair do hospital sem um tratamento e acompanhamento. Deveria ser obrigatório, mas a maioria dos serviços de saúde não está preparada para isso”, enfatiza.
Todo mundo conhece alguém que se suicidou ou que fez uma tentativa grave. “Precisamos lutar contra esse estigma e parar de achar que esse assunto não existe. Temas que são tabus não mobilizam pessoas a estudar e pesquisar, mesmo sendo assuntos de saúde pública”, completa Humberto Costa.
Onde procurar ajuda
O Centro de Valorização da Vida (www.cvv.org.br ou 141) é um trabalho voluntário que funciona muito bem de acordo com o psiquiatra Humberto Costa. “É um atendimento por telefone principalmente para atender pessoas que querem se suicidar”, explica. Clique a acesse cartilha do CVV sobre prevenção de suicídio.
Para quem desconfia que um amigo ou parente tem uma intenção de suicídio deve procurar ajuda em um posto de saúde mais próximo ou nos Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAMs) da prefeitura.