Tristeza e solidão em tenra idade
No começo deste ano, uma menina de Porto Alegre subiu no telhado de sua casa e ameaçou atirar-se lá do alto. Os pais foram chamados às pressas no trabalho. Levada ao Centro de Promoção da Vida e Prevenção ao Suicídio do Hospital Mãe de Deus, a garota contou que tentara se matar porque ninguém lhe dava atenção na família.
O pai e a mãe passavam os dias fora, do início da manhã até a noite. A menina tinha oito anos.
Um garoto da mesma faixa etária ingressou na emergência do hospital, pouco tempo atrás, por ter ingerido uma moeda. O otorrino retirou o objeto e liberou o paciente. Uma semana depois, ele retornou. Desta vez, havia engolido várias moedas. Na investigação, descobriu-se que a motivação para a atitude era tristeza.
Situações desse tipo estão se tornando mais comuns nesta década, segundo diferentes levantamentos, resultando em aumento de mortes entre crianças e adolescentes. Conforme a publicação Mapa da Violência, que se baseia em dados coletados pelo Ministério da Saúde, as faixas em que as taxas de suicídio mais cresceram no Brasil, entre 2002 e 2012, foram as dos 10 aos 14 anos (40%) e dos 15 aos 19 anos (33,5%).
No Rio Grande do Sul, de acordo com estatísticas da Secretaria Estadual da Saúde, ocorreram 60 suicídios nesse grupo em 2013, o maior número desde 2009.
Essas mortes são a face trágica de um problema muito mais abrangente, que diz respeito às tentativas de tirar a própria vida. De acordo com os registros existentes no Centro de Informações Toxicológicas (CIT), 4.658 crianças e adolescentes gaúchos tentaram se matar, apenas por autointoxicação, entre 2005 e 2013.
“Até hoje, jamais tínhamos constatado tentativas em idade tão tenra. E agora está acontecendo isso. É uma novidade, uma coisa pouco estudada, um novo mundo. Por enquanto, estamos apenas detectando o problema. Precisamos de pesquisas e de uma política específica. Porque a metodologia de prevenção para criança e adolescente tem de ser outra. Para começar, é mais difícil de detectar o risco, porque eles não verbalizam tanto quanto a pessoa mais velha” – observa o psiquiatra Ricardo Nogueira, coordenador do Centro de Promoção da Vida e Prevenção ao Suicídio.
Para o médico Vitor Stumpf, voluntário do Centro de Valorização da Vida (CVV), as tentativas de suicídio ente crianças e adolescentes são um problema muito negligenciado, pouco conhecido até mesmo por profissionais:
“A massa dos pediatras não tem conhecimento nessa área. Neste mês de outubro, tentei de todos os jeitos incluir uma mesa sobre suicídio em um congresso de pediatria. Negaram.”
Pesquisa aponta particularidades do problema
Os dados do CIT foram dissecados em uma dissertação de mestrado defendida na UFRGS em maio. De autoria da psiquiatra da infância e da adolescência Berenice Rheinheimer, o trabalho trouxe dados alarmantes, indicando tendência de forte aumento nas tentativas no universo dos oito aos 17 anos (abaixo dessa idade, os casos são automaticamente classificados como acidente). Em 2005, foram 492 episódios. Em 2013, apesar de a população da faixa etária ter recuado consideravelmente, os casos subiram para 626.
“Uma das coisas que chocam em relação a esses números é que a comunicação de casos ao CIT é voluntária. A realidade pode ser bem pior do que a registrada” – sustenta Berenice.
Se o suicídio entre adultos já está envolto por silêncios e tabus, é ainda mais entre crianças e adolescentes. A sociedade, em geral, não aceita a ideia de que eles possam querer se matar. Pais de adolescentes que se mataram tendem à negação, uma reação ao sentimento de culpa. Além disso, é escasso o conhecimento sobre que lógica rege os suicídios juvenis e sobre como preveni-los – os estudos e a experiência existentes dizem respeito basicamente a pessoas mais velhas.
A pesquisa de Berenice ajuda a iluminar algumas das diferenças e particularidades. Ao analisar os dados do CIT, ela descobriu que crianças e adolescentes tendem a tentar o suicídio no segundo semestre do ano – com destaque para o mês de outubro –, talvez como um reflexo de dificuldades escolares. Entre adultos, existem estudos demonstrando que a preferência é pelo verão.
Berenice percebeu também que as crianças atentam contra a vida em dias de semana – nas outras faixas etárias, o ato tende a ocorrer no sábado ou no domingo.
“Chamou a atenção que a véspera de Natal foi o dia com menos casos ao longo de nove anos. Depois, veio o Dia das Crianças. É um achado que não esperávamos. Não há relato sobre isso em lugar nenhum. Pode ter relação com o fato de nessas datas as crianças estarem em casa, com as famílias, mais satisfeitas. É uma hipótese” – observa a pesquisadora.
As tentativas de suicídio por autointoxicação envolvendo crianças e adolescentes também espantam em razão das substâncias utilizadas. Enquanto em outros países os relatos envolvem a ingestão de analgésicos, por aqui as tentativas relacionadas a medicamentos são principalmente com antidepressivos (23,47%), ansiolíticos (20,76%), antitérmicos (15,20%) e anticonvulsivantes (13,01%). Em 98,5% das situações, a tentativa é realizada em casa.
“Como é que nossas crianças estão tendo acesso a essa medicação? É uma falha das famílias e da área da saúde, por não orientar que esses medicamentos têm de ficar escondidos” – alerta Berenice.
Por que eles tentam se matar?
É difícil aceitar que uma criança ou adolescente possa querer se matar. Mais complicado ainda é explicar por que esse comportamento está em ascensão. O que existem são indícios e hipóteses.
O sentimento de abandono, a experiência de abusos físicos ou sexuais, a desorganização familiar, o desajustamento na escola ou em casa e a desesperança em relação ao futuro são alguns dos fatores que aparecem como motivadores. Pesquisa feita na década passada em escolas de Porto Alegre revelou que 36% dos estudantes com idades entre 15 e 19 anos manifestavam “ideação suicida”, ou seja, pensavam em se matar.
Quando se combina isso com certos fenômenos recentes, o resultado pode ser explosivo. O uso cada vez mais precoce de álcool e drogas seria um desses gatilhos.
“O álcool e a droga provocam dano no sistema nervoso central e causam depressão, o que tem consequências” – diz o psiquiatra Ricardo Nogueira.
Outro elemento que parece contribuir é o acesso fácil, instantâneo e detalhado a qualquer tipo de informação, propiciado pela web. Nos últimos anos, houve exemplos de adolescentes brasileiros que tiveram o suicídio assistido e incentivado via internet.
O primeiro caso foi o de um porto-alegrense de 16 anos, em 2006.
A rede também facilita atos coletivos. No ano passado, um suposto pacto de suicídio feito por meio de redes sociais levou a duas mortes e seis casos de automutilação em Gramado e Canela, semeando o pânico em pais da região. Os envolvidos tinham de 12 a 18 anos.
Sabe-se que, quando um suicídio acontece, há um risco considerável de que outro venha a ocorrer, não muito tempo depois, na mesma família, escola ou comunidade. No caso de crianças e adolescentes, esse fenômeno gera preocupação extra.
“Nas crianças e nos adolescentes, isso é mais forte, porque eles são mais sugestionáveis. Começamos a ver que, em cidades de pequeno porte, havia dois, três casos em um intervalo de tempo curto. Nossa hipótese é que essas pessoas se conhecessem. Pelo fato de saber que alguém fez uma tentativa, outro adolescente vai lá e também faz. Isso mostra o quanto é importante ter um trabalho nessa idade” – diz Berenice Rheinheimer.
Entre os mais novos, a situação é especialmente cruel, porque a total consciência sobre a morte se consolida apenas por volta dos 12 anos. Nessa faixa etária, estão se tornando frequentes casos de automutilação com lâminas – o que os especialistas interpretam como uma forna de aliviar a dor psíquica por intermédio da dor física.
Os sinais
Conheça fatores que, em crianças e adolescentes, podem dar indício de que há algum risco.
-Abuso de drogas
Álcool e drogas são muitas vezes uma forma de fugir dos problemas e, além disso, podem favorecer algum estado depressivo. Há relatos de uso cada vez mais precoce.
-Desorganização familiar
A sensação de abandono e de falta de atenção pode levar a criança a atitudes extremas.
-Quadro de depressão
Os adolescentes, especialmente, têm dificuldade em lidar com a depressão. Podem reagir com raiva e agressividade.
-Alterações de conduta
Tornar-se agressivo, começar a faltar às aulas, piorar o desempenho escolar, dormir demais ou muito pouco, comer muito ou quase nada e isolar-se são mudanças de comportamento que devem ser acompanhadas de perto.
-Gestações precoces
Em alguns casos, meninas que tentam abortar e não conseguem acabam fazendo uma tentativa de suicídio.
-Abusos e maus-tratos
Abusos sexuais e físicos podem estar relacionados às tentativas. No Estado, há uma estimativa de que 10% dos adolescentes já os tenham sofrido.
-Casos conhecidos
Crianças e adolescentes são mais sugestionáveis. Dados mostram que muitas das tentativas são feitas por quem conhece outra pessoa que já tentou se matar, seja na família ou na escola.
-Autolesões
Está mais comum entre crianças e adolescentes a prática de infligir lesões em si mesmo com lâminas ou estiletes.
-Tentativas anteriores
Quem já tentou se matar uma vez tem mais probabilidade de tentar de novo.
Como agir:
-Observe sintomas de depressão
Apatia pouco usual, letargia, falta de apetite.
Insônia persistente, ansiedade ou angústia permanente.
Abuso de álcool, droga ou remédios.
Dificuldades de relacionamento e integração.-Dizer adeus, como se não fosse mais ser visto.
Preste atenção nos adolescentes
– Mantenha uma atitude não julgadora.
– Desenvolva uma escuta atenta sobre os problemas e angústias dos adolescentes.
– Ressalte a esperança na possibilidade de melhora pela psicoterapia ou pela medicação antidepressiva.
– A melhora inicial do paciente em meio ao tratamento não descarta hipótese de suicídio. Pelo contrário: em alguns casos, eles buscam a morte no momento da melhora.
– Não tenha preconceito com internação, caso especialistas recomendem.
Fique atento aos riscos da internet
– Mantenha-se vigilante em relação aos sites frequentados.
– É comum pessoas doentes buscarem na internet uma forma de se aliviar. Por vezes, acabam encontrando pessoas tão ou mais doentes ou com grupos anônimos que estimulam o suicídio.
“O bullying está fortemente associado”
Carlos Estellita-Lins, coordenador do Grupo de Pesquisa de Prevenção ao Suicídio da Fundação Oswaldo Cruz (RJ)
Por que aumentou o suicídio na infância e na adolescência?O que há são explicações epidemiológicas. É como na economia. Por que a bolsa subiu?
Você encontra três ou quatro eventos importantes relacionados e diz que deve ter sido por isso. Esse tipo de critério cientítico é bastante frouxo, mas é o melhor que a gente tem. A partir dos nove anos, você tem dados de suicídio. A partir dos 12 anos, já é relevante. O modelo do suicídio é sofrimento psíquico grande, depressão, ansiedade. No caso do jovem, é importante mencionar, existem situações de violência. A violência no Brasil não diminuiu, ela cresceu.
A violência da sociedade tem um impacto no suicídio?
Tem, por alguns mecanismos obscuros e outros claros. Situações de violência geram sofrimento psíquico, geram perdas. E especialmente o abuso, a violência física, com humilhação. Uma forma de violência institucional, que é o bullying, está fortemente associada ao suicídio no adolescente.
Alguma pressão social nova surgiu sobre os adolescentes nos últimos anos?
O aumento é, na verdade, uma curva de elevação. Não está marcando um acontecimento novo. O ponto que a gente pode discutir é a digitalização da sociedade, a virtualização. Há vantagens, mas cada vez mais a gente começa a observar as perdas, os malefícios, que ainda estão sendo estudados.
Que tipo de impacto teria a onipresença da internet?
No adolescente, a gente discute se há síndromes e distúrbios novos. A pessoa ficar vivendo num mundo virtual, levando a um maior afastamento, introspecção, a mais depressão, a um isolamento.
A internet facilita também o acesso a informaçõoes sobre suicídio
Isso é preocupante, porque o conhecimento dos meios muitas vezes é buscado por quem está com ideação suicida. Ele pode começar a planejar, e isso auxilia. Outro aspecto são ambientes virtuais onde se pode falar tudo, exortar o jovem a fazer. Onde, de modo inconsequente, protegida pelo anonimato, a pessoa exorta o suicídio, dá conselhos, banaliza. A gente viu casos de meninas que foram humilhadas, que tiveram suas imagens eróticas divulgadas de maneira ilegal. É uma forma de cyberbullying. Isso gerou uma forma de suicídio menos típica, que não está relacionada com sofrimento psíquico continuado, e sim com o amor-próprio. Isso é uma novidade. É muito grave.
Número gratuito para facilitar acesso à prevenção
Uma dificuldade adicional para a prevenção do suicídio entre crianças e adolescentes é o fato de esse público ser menos afeito a buscar ajuda por meio de uma ligação telefônica, afirma o médico Vitor Stumpf, do Centro de Valorização da Vida (CVV).
É no teclado e na internet que as novas gerações sentem-se mais à vontade. Esse é um motivo, explica ele, para o CVV ter passado a oferecer atendimento por chat ou chamadas de voz online.Desde setembro, em uma parceria com o Ministério da Saúde, o CVV do Rio Grande do Sul passou a ser o primeiro do país a oferecer ligações totalmente gratuitas. Por causa do projeto, que será estendido a todo o país em caso de êxito, o tradicional número do CVV foi abandonado no Estado. Agora, a organização atende pelo 188. A mudança torna mais ágil o atendimento: o sistema do CVV conta com um roteador que consegue direcionar os telefonemas para unidades de atendimentos que estejam ociosas em outras cidades.
“A gratuidade é muito importante. Acredito que fomos escolhidos para começar esse projeto porque somos o Estado com mais notificação de suicídios” – observa Stumpf.
Como contatar
Por telefone: 188 (as ligações são gratuitas, inclusive por celular)
Por chat ou chamada de voz online: acesse cvv.org.br
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