Tinham uma casa na beira do rio. A família todo assistiu ao dia em que o pai saiu de casa sem motivo aparente e entrou na canoa. Não cruzou rio, não voltou. Deixou sua canoa ali, nem numa margem, nem na outra. Flutuava pelo meio. Nunca mais falou palavra nenhuma. Seu corpo no meio do rio vira uma terceira margem.
A estranha história do homem que abandona sua família para viver em uma canoa é o enredo de um dos escritos mais misteriosos do mineiro Guimarães Rosa. Batizado de “A terceira margem do rio”, o conto revela uma vida feita nem do lado de lá, tampouco do lado de cá. Se faz na via do meio num processo de dor, frustração e morte.
Foi citando as dores causadas numa vida dividida entre as tradições culturais indígenas e a cultura do homem branco que Ara Miri lembra o recente suicídio da jovem Adriana, de 14 anos. A menina foi à escola no período da manhã, ao voltar à tarde fez almoço e cuidou dos irmãos. Por volta das 17h30, entrou no quarto e se enforcou.
“Acredito que o motivo foi falta de perspectiva de vida. Não tem terra, não tem espaço para plantar, nem emprego. Isso é causa de sofrimento. É muito duro saber que um jovem se mata por falta de justiça social para os indígenas”, reflete Ara, que é uma das lideranças da Aldeia Jaraguá que abriga indígenas guaranis na zona norte de São Paulo.
A morte voluntária que surge como uma alternativa para essa vida do meio não é novidade entre os povos indígenas. Porém, os números crescem velozmente.
A taxa de mortalidade por suicídio entre indígenas é quase o triplo da média nacional, segundo o Ministério da Saúde. Enquanto o Brasil registra 5,7 óbitos a cada 100 mil habitantes, o índice é de 15,2 na população indígena. A maioria das mortes (44,8%) ocorrem na faixa etária de 10 a 19 anos, ao contrário do panorama geral, em que os adultos de 20 a 39 anos respondem pela maior proporção dos registros. “O suicídio dos povos indígenas pode se tornar um fenômeno epidêmico, que vai se alastrando”, avalia Lucia Helena Rangel, antropóloga e professora da Pontifícia Unidade Católica.
Diferentemente do cenário de anos atrás, em que parecia que o suicídio era recorrente apenas entre os guarani-kaiowás, muito presente no Mato Grosso do Sul, os últimos anos revelaram que há caso em outras etnias. “Em lugares que aparentemente não haviam casos, logo começou a surgir registro de mortes autoinfligidas no Alto Rio Negro, região noroeste da Amazônia, em São Gabriel da Cachoeira e Alto Solimões no Amazonas e Alto Solimões, com povos como Tikuna e Yanomani”, conta Rangel que também é assessora do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Citada pela pesquisadora, a cidade de São Gabriel da Cachoeira é a recordista nas estatísticas de suicídio por habitante dos municípios brasileiros. As 23 etnias que há pelo menos 3 mil anos ocupam as margens do rio Negro e de seus afluentes correspondem a 80% da população. De um total de 73 mortes ocorridas entre 2008 e 2012, apenas cinco não foram de indígenas, segundo o Mapa da Violência 2014. Entre os indígenas, 75% eram jovens.
Rangel reafirma que os casos atingem mais o sexo masculino, sobretudo jovens a exemplo da cidade do Amazonas. O que leva essas pessoas tão novas à violência auto infligida é um conjunto de fatores. Nessa época da vida, o jovem é um ser vulnerável do ponto de vista emocional e psíquico.
Dados do relatório anual de violência contra os povos indígenas divulgado pelo CIMI revelaram que ao longo de 2016, 106 indígenas tiraram a própria vida, com crescimento expressivo para o Alto Rio Solimões que saiu de 13 casos em 2015, para 30 em 2016.
O suicídio é envolvido por profundos sofrimentos psíquicos, onde o sujeito se vê numa condição onde parece que ele não tem escolha. No caso dos indígenas, podem ser jovens que não mais se reconhecem. Não pertencem ao mundo branco regido pela lógica capitalista, embora por vezes almejem o que o branco faz ou o poder que ele possui.
Mesmo os indígenas consciente e orgulhoso das suas raízes são muitas vezes impedidos de viver plenamente suas tradições. É nesse momento que aspectos culturais e individuais que levam ao suicídio passam a ganhar também dimensões políticas.
Teoká, a terra tirada
No ranking fúnebre dos suicídios indígenas, o estado do Mato Grosso do Sul ocupa o primeiro lugar. De acordo com o CIMI, dos anos 2000 até 2016, 782 indígenas tiraram suas vidas apenas no Mato Grosso do Sul, lugar conhecido pelo poder do agronegócio que seria fator primordial para o extermínio silencioso dos povos indígenas da região.
Teoká é a palavra usada para denominar o local em que vivem os kaiowás. Muito mais do que moradia, a palavra diz respeito ao território relacionado a aspectos culturais, religiosos e de subsistência.
Para pesquisadores, a questão fundiária no Brasil e a falta de demarcação de terras para os povos originários também seria fatores determinantes para esse espantoso número de suicídios entre os indígenas por falta de perspectivas melhores.
A menina indígena Adriana, citada por Ara seria um desses casos. “Ela como tantos jovens aqui na aldeia do Jaraguá não tinha espaço para viver como um jovem indígena”, afirma Ara. Ela cita rituais de passagens indígenas ligados a terra e natureza. “Os meninos aprendiam a caçar, as mulheres a plantar, éramos livres e agora estamos presos no menor território indígena do Brasil, são 1,7 mil hectares para 700 pessoas”, conta.
Para Alessandro de Oliveira Campos, psicólogo com atuação no campo da saúde mental e na luta antimanicomial, o estado é cúmplice desse cenário de morte. “Ele participa ativamente dos processos de colonização e de genocídio dos povos originários. Raramente a gente vê o estado cumprindo um papel de proteção, de respaldo, de reconhecimento dessas populações”, afirma.
De acordo com ele, o principal ponto que expõe a ineficácia do estado diz respeito às demarcações de terras indígenas. No Brasil há 1.296 terras indígenas, 63% não estão demarcadas, ou seja, não garantem nenhum direito básico ao povo dali. Além disso, historicamente os governos têm confinado os indígenas em pequenas parcelas de terras, a exemplo do que ocorre com os guaranis da aldeia Jaraguá de São Paulo, com pouca ou nenhuma natureza ou possibilidade de caça, pesca e plantio.
Para Campos há um tripé que ajuda a explicar as reações autodestrutivas de alguns povos indígenas. “O alcoolismo, o suicídio e a prostituição são elementos que operam em paralelos nos territórios ou próximo aos territórios em que vivem os povos indígenas”, avalia o também pesquisador de relações raciais para quem o genocídio dos povos originários nunca se encerrou. A falta de opção de viver de acordo com sua tradição imposta pela falta de terra empurra os indígenas para o subemprego e muitas vezes para o trabalho escravo.
A terra, mais uma vez, aparece para o pesquisador como ponto central de deterioração da vida indígena. Esse processo é batizado por ele de desterritorialização. “Para os povos indígenas significa a destruição do seu estilo de vida, pois é nos territórios originais que estão presentes os elementos da vida comunitária, é onde eles se conhecem, cantam, dançam, fazem seus rituais, se relacionam da maneira mais completa e complexa”, define.
O psicólogo afirma também que os povos indígenas precisam lidar ainda com o que ele chama de “atualização do processo de colonização” incentivado pelo capitalismo e consolidado quando os indígenas sofrem pressões dos grandes fazendeiros e do agronegócio com a invasão dos seus territórios originais.
Enquanto os índices de morte voluntário entre indígenas sobem, as demarcações tendem a diminuir ainda mais. Desde que assumiu a Presidência, em maio de 2016, Michel Temer não finalizou a demarcação de nenhuma terra indígena, segundo acompanhamento do CIMI.
Quando uma pessoa próxima comete suicídio, quem fica se pergunta se fez o possível para evitar a tragédia. Quando há um povo sendo destruído e se auto destruindo, o estado e a sociedade devem se perguntar o que poderia ter feito. O triste, porém, é que o mesmo silêncio que tira a vida de muitos indígenas por enforcamento, o método mais utilizado, se mantém na comoção seletiva da maioria das pessoas.
A via do meio para os povos indígenas não surge como escolha, mas como uma imposição juruá, nome usado para se referir a todos os não indígenas. Mais do que desistência da vida, o suicídio indígena é um protesto silencioso de quem escolheu romper com o excesso de folclore e a escassez de direitos.