Um número considerável de pessoas entrou em contato comigo a respeito do último texto sobre o suicídio, escrito semana passada em virtude da campanha de valorização da vida impulsionada pelo Setembro Amarelo. Esse fato mostra a importância de falarmos sobre a morte autoinfligida e não tratá-la como tabu, como algo do qual não podemos falar. Por esse motivo, retorno essa semana abordando outros pontos do relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) juntamente com dados de outras fontes para uma reflexão crítica acerca desses índices quando em comparação com taxas de homicídios e de acidentes de trânsito, por exemplo. Afinal, o Setembro Amarelo é uma campanha de valorização da Vida, e vida é vida sempre! Neste texto, pretendo mostrar de forma sistêmica que agir para a redução das taxas de suicídio pode implicar na redução dessas outras taxas (homicídios e acidentes de trânsito). A experiência clínica nos ajudará a sustentar o argumento justamente onde as estatísticas não dão conta.
Segundo a OMS, envenenamento, enforcamento e armas de fogo estão entre os métodos mais comuns de suicídio global. Evidências da Austrália, Canadá, Japão, Nova Zelândia, Estados Unidos e vários países europeus revelam que limitar o acesso a estes meios pode ajudar a impedir que as pessoas morram por suicídio. Consideremos que deva ser complicado restringir o acesso a cordas e bancos, o que levaria a pensamos que evitar a morte por enforcamento não seria razoável por meio desse método. Mas certamente a discussão sobre a proibição ou permissão do porte de armas e a restrição na compra de venenos e medicamentos influi diretamente nas taxas de suicídio no país. Se acrescentarmos o problema das mortes acidentais e as mortes por brigas envolvendo armas de fogo, chegamos facilmente à conclusão de que o armamento da população representa muito mais riscos do que segurança para todos os cidadãos. Segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, gerido pela Secretaria de Vigilância em Saúde, ao analisar o período de 2004 a 2012, o Mapa da Violência estima que 160.036 vidas foram poupadas, em virtude da política de controle de armas decorrente da aprovação do Estatuto do Desarmamento. Desse total de mortes evitadas, 113.071 foram de jovens, de acordo com a projeção.
Outra medida apontada pela OMS como eficaz para a redução das taxas de autoextermínio, inclui a veiculação de informação responsável sobre o suicídio nos meios de comunicação, evitando linguagem sensacionalista e a descrição explícita dos métodos utilizados pelos suicidas. Isso é tudo o que os programas de televisão policialescos não fazem. A televisão aberta, de muito baixa qualidade, que fique registrado, todas as tardes oferecem um circo sensacionalista sobre homicídios e suicídios. Isso não serve para nada! Apenas para incitar a violência e gerar o medo na população. A sociedade organizada deveria empunhar grande campanha para a proibição desse lixo cotidiano que é despejado na casa de todos os brasileiros, sobretudo na das famílias mais humildes.
Sendo executadas as medidas acima, a OMS estima que seja possível reduzir a taxa de suicídio em 10% até 2020. A estimativa é, vejam, além de frear a crescente na taxa, poder reduzi-la. E isso sem contar nas taxas de homicídio que também caem na simples ação de desarmar a população e acabar com os programas policialescos. Como podem ver, as taxas de suicídio e homicídio caminham lado a lado e executando ações concretas de prevenção de suicídio estaremos poupando mais vidas do que o esperado.
Em outro âmbito, a experiência clínica nos aponta para um fato que pode trazer nova luz para a compreensão do suicídio e desvelar situação ainda mais alarmante. Segundo a OMS, 1,3 milhões de jovens morrem todos os anos no mundo. Desses, 11,6% morrem no trânsito e 7,3% cometem suicídio. Sabemos que as mortes no trânsito só serão computadas como suicídio se forem incontestáveis as evidências de ação voluntária visando o autoextermínio. Contudo, muitos dos acidentes de trânsito poderiam ser compreendidos como um ato deliberado de suicídio. Dentre as frases mais comuns de ideação e planejamento suicida estão aquelas envolvendo veículos automotores: “Pensei em pegar o carro e socar no poste”, “Eu estava no carro e pensei, não!”, “Estou nem aí, se morrer, morreu!” falando da maneira imprudente de dirigir, “Vou me jogar embaixo de um ônibus!” e assim por diante… A experiência clínica que tive durante o tempo em que fui psicólogo responsável pela Unidade de Internação de Ortopedia e Traumatologia do Hospital São Paulo sustenta o argumento de que muitos dos acidentes de trânsito poderiam ser uma das formas preferentes de autoexecução.
A coleta desses dados de suicídio no trânsito são difíceis de serem realizadas por questões de ordem técnica, pois não há como saber, senão com aqueles que sobreviveram ao acidente. Contudo, do ponto de vista da prevenção em saúde, não podem ser negligenciados. Quando uma pessoa está psiquicamente abalada é extremamente perigoso ela dirigir. Além de causar um rebaixamento da atenção voluntária, o que é importantíssimo para o cuidado na direção, fortes emoções também podem causar o aumento de reações impulsivas, sobretudo as autodestrutivas.
Vale chamar atenção para a interação com o álcool. Quem nunca ouviu que “para curar a fossa nada melhor que um porre”? A associação direção e bebida já é perigosa por si só, mas quando acontece num momento onde a pessoa está emocionalmente abalada, pode ser letal. Novamente a experiência clínica nos vale para sugerir a existência de uma correlação entre uso de drogas, principalmente o álcool, e abalos ou conflitos emocionais importantes em acidentes de trânsito. Dentre os pacientes que eram internados por acidentes de transito envolvendo álcool e direção, eram bem mais raros os casos onde as pessoas que se acidentavam estavam de fato estáveis psiquicamente, e sem problemas importantes a serem resolvidos na vida. Não há estudo epidemiológico sobre isso (e estou dando a dica para quem quiser realizar), e por esse motivo coloco essas questões no âmbito de hipóteses clínicas a serem consideradas. Ao mesmo tempo, essas informações serão de grande valia para que possamos atentar à proteção de nossas vidas e daqueles que amamos, podendo identificar fatores de risco e prevenir a morte de quem nos é tão importante. Até o próximo texto!