Sublimar a dor não é algo fácil para um pai que perdeu sua filha em suicídio. Enfrentar a morte de um filho nessas condições é pura devastação. Quem se mata, arrasta consigo a estrutura familiar. Tudo se desmancha à um raio de algumas gerações. A ferida difícil de se fechar. Suicídio de uma filha, relatos de um pai revela a dor diária de Arnaldo Freire, o mestre do violão. Ele abriu seu coração ao Boa Vida Online:
Suicídio de uma filha, relatos de um pai, com Arnaldo Freire
Sublimar a dor não é algo fácil para um pai que perdeu sua filha em suicídio. Enfrentar a morte de um filho nessas condições é pura devastação. Quem se mata, arrasta consigo a estrutura familiar. Tudo se desmancha à um raio de algumas gerações. A ferida difícil de se fechar. Suicídio de uma filha, relatos de um pai revela a dor diária de Arnaldo Freire, o mestre do violão. Ele abriu seu coração ao Boa Vida Online:
Suicídio de uma filha – Um olhar pode esconder a loucura
O que escondia esse olhar? Ninguém entende as razões, se ao menos elas fosse esclarecidas…
Suicídio de uma filha
Também não foi nada fácil para mim fazer contato com Arnaldo Freire e trazer a lembrança do suicídio de uma filha. Tocar na ferida, que nunca se fecha exige coragem. Porém, o suicídio é um tema maquiado, ainda rodeado de tabus. Não se fala sobre o assunto. Não se pergunta nada. Abafa-se o caso.
Há cerca de quatro anos, quando reencontrei Arnaldo Freire, ele estava em condições que eu jamais me esquecerei. Arnaldo estava debruçado sobre o caixão de sua filha e chorava copiosamente. Isso me marcou profundamente. Era ele, o pai de Isabella, colega de escola de meu filho. Arnaldo já havia sido entrevistado por mim. Ele é músico, concertista, um mestre do violão.
Que triste surpresa aquele reencontro. Arnaldo Freire era mesmo o pai de Isabella. Ela era a garotinha alegre, espontânea e festiva da turma. Eventualmente, Isabella e outros adolescentes iam até minha casa, nos encontros da turminha do meu filho. Essa garota não poderia ser exatamente a mesma pessoa que pulou da janela de um prédio alto, em Goiânia. Sim, é preciso aceitar a dualidade humana. Havia um outra Isabella escondida e que se revelou daquela maneira fatal. O suicídio de uma filha faz qualquer pessoa se transformar.
Relatos de um pai
Perguntei ao Arnaldo se poderíamos tocar na ferida e ele me disse que sim. Por mais cuidado com as palavras, até onde eu poderia ir com minhas perguntas, o limite, ele me deu. Quando perguntei sobre as lembranças do dia, ele se esquivou e rapidamente terminou a conversa. Eu entendo. Ainda dói. Ele pensa nela todos os dias.
Aurélia Guilherme – O que vem à sua mente, quando pensa em Isabella?
Arnaldo Freire – Quando penso em Isabella, me vem a imagem da pessoa sorridente e bem humorada que ela foi. Me vem a lembrança de quando tocávamos juntos. As pizzas, os filmes… Íamos insistentemente ao cinema. Acho que em 2005 ou 2006, quando toquei num evento com o ator Selton Mello, ganhei um cartão vip de cinema para duas pessoas. Bem ao lado do colégio de Isabella tinha um cinema. Nosso cartão vip foi válido por 1 ano. Os filmes que a gente gostava, víamos novamente três, quatro e até cinco vezes.
Aurélia Guilherme – Você consegue entender a razão pela qual ela se matou?
Arnaldo Freire – Ninguém consegue. A gente respeita a escolha do outro, mas não entende. Talvez, nem ela entendesse. Embora eu, pessoalmente, tenha investigado todas as possibilidades, todos ao redor, inclusive chats de Facebook, redes sociais, etc. Ela não demonstrou nenhum motivo, absolutamente nada aparente.
Naquele dia ela teve aula de violão, cerca de três horas antes… Pode ter sido um monte de coisas, né? Uma incompreensão, um desequilíbrio químico, uma coisa momentânea, uma curiosidade mórbida, etc. Mas ela, de modo nenhum, era o estereótipo de pessoa que está no “edge”.
Isabella era super talentosa em tudo o que fazia, já bem pequenina decorava todas as falas dos coleguinhas do teatro. Tinha um humor super ácido, comum a mim e a Simone, mãe de Isabella.
Aurélia Guilherme – Você acha que Isabella sofria de depressão?
Arnaldo Freire – De jeito algum. Mesmo em temporada na Rússia naquele ano, a gente sempre conversava. O caso de Isabella realmente foi e é um mistério absurdo.
Aurélia Guilherme – Nenhuma carta…
Arnaldo Freire – Várias cartas. Inclusive uma para minha ex-namorada. Ela escreveu em inglês. Em todas as cartas, o conteúdo era que ela nos amava e que não nos preocupássemos ou chorássemos, etc.
Aurélia Guilherme – Isso é de enlouquecer qualquer um!
Arnaldo Freire – Sim. No caso dela, mais do que em qualquer outro, foi uma surpresa inacreditável. Até hoje ninguém entende. Todos da nossa família amam a vida e viver. Veja! Depois do acontecido, muitas vezes eu quis morrer. Logo depois que Isabella se foi, eu me mudei para o México. Durante seis meses, eu fiquei com vontade de morrer. Fiquei uns dois anos no piloto automático. Chorava todos os dias, mas ainda assim nunca tive vontade de me matar. O suicídio de uma filha é mesmo assim, uma surpresa interminável.
Me lembro sempre de um colega que emprestou um violão a uma ex namorada. Na capa do violão, ele colocou um poema, escrito por ele. Um poema de amor, eles haviam terminado e meu amigo era totalmente apaixonado por ela. Ele não se conformava com o fim daquele relacionamento. Ela, distraidamente, não viu o poema. Quando devolveu o violão, o poema estava lá, um pouco amassado, ali, no fundo da capa.
Ele me disse: “a hora que eu tirei o violão da capa e vi o poema ali, meio largado e amassado… se eu estivesse em cima de um prédio teria pulado, com certeza”.
Então, são muitas as possibilidades dela ter feito aquilo. No caso de Isabella, eu tenho que aceitar que talvez nunca saiba a razão. Talvez eu somente saiba em algum outro estágio, como uma continuação da vida ou coisa assim.
Talvez ela tenha passado por alguma insanidade momentânea.
Aurélia Guilherme – O que a falta de certezas e de entendimento das razões de Isabella produzem em você?
Arnaldo Freire – Ah, o suicídio de uma filha é uma coisa muito complicada. O que aconteceu foi como ganhar na loteria ao contrário. Ou, como ser sorteado com uma dessas doenças raríssimas. Dá um sentimento profundo de falta de fé cristã.
Aurélia Guilherme – Como assim? Me explique isso melhor?
Arnaldo Freire – Me refiro à falta de fé no Deus dos Exércitos, dos castigos e das punições. Muita gente, que está sofrendo, aparentemente não merece. Quando uma pessoa, como Isabella se mata, mata um pouquinho de cada um daqueles que a amavam. No meu caso, por mais felizes ou fartos que sejam os meus dias e, muitas vezes o são, eu sempre me lembro dela, todos os dias.
Lá no meu íntimo, a morte de Isabella me fez uma pessoa pior. É essa “gosma cármica inexplicável” que a gente carrega. É uma coisa que muda você. Principalmente, quando se é otimista, positivo, cheio de fé no futuro, etc. Você, meio que liga o “foda-se” e vai tocando a vida.
Foi exatamente o que eu fiz. Andei muito pelo mundo, depois que tudo aconteceu. Mergulhei na música, toquei muito. Visitei mais de 30 países e, nunca mais voltei a Goiânia. Fiquei muito magoado na Hungria. Em visita a um cemitério local, vi que eles separam as pessoas que se suicidam, das outras. Me senti meio “separado”, por assim dizer. Católicos Calvinistas. Esses são os atrasos que a religião proporciona. Não que eu não creia em Deus. Apenas não permito que religião alguma atrapalhe isso.
Aurélia Guilherme – Isabella perdeu a mãe ainda menina?
Arnaldo Freire – Sim, ela perdeu a mãe aos 4 anos, vítima de câncer. Muito se cogitou a influência disso na decisão de Isabella, mas não se chega a lugar algum. Isabella tinha um gosto a mais pelo mistério, algo de terror, talvez. Assim, como eu. Mas, ela era muito consciente das coisas e paradigmas da vida.
Aos 7 ou 8 anos, ela me perguntou
-“Papai, todas as historias infantis tem lição de moral?”
“- Como assim minha filha?”
“- Aquela pessoa que negocia que a criança tem que aprender sem perguntar muito?”
“- Sim, meu bem todas historias infantis têm lição de moral”
Aurélia Guilherme – Você diz que ela ia sempre para o lado anti-herói, pela contramão dos fatos?
Arnaldo Freire – Sim, quando ela saiu do balé, eu pensei a mesma coisa. Por que? Porque ela queria outra coisa, algo mais rock´n roll.
Aurélia Guilherme – Como foi aquele dia?
Arnaldo Freire – Aí, você forçou, prefiro não lembrar nunca. Lembrar o dia do suicídio de uma filha é demais. Não, não. Tive aula de manhã, almoço normal e, a tarde, a noticia.
Aurélia Guilherme – Hoje é o Dia Mundial de Combate ao Suicídio, você tem algo a dizer?
Arnaldo Freire – Sinceramente eu não sei. Cada caso é totalmente único. Há uma névoa tão forte em torno desse assunto, que nem sei como falar sobre isso. Ter um suicida na família é uma carga enorme. Eu tenho isso já, relativamente, bem resolvido. Eu “aceito” a realidade de que há coisas na vida que a gente não descobre a resposta e tem que seguir. Mas é um sentimento que me incomoda todos os dias.
Aurélia Guilherme – Eu me lembro que quando o pai do meu filho morreu, senti certa culpa e tive que gestar isso. Você já se sentiu assim?
Arnaldo Freire – Sim, todos carregam um percentual de culpa. Culpa consciente ou inconsciente. A gente sempre pensa que poderia ter evitado. embora acredite em livre arbítrio. Todos, de certa forma, carregam culpa, mas não são culpados. É a tal “gosma cármica” que falei há pouco.
Aurélia Guilherme – Me conta, o que está fazendo e onde está exatamente?
Arnaldo Freire – Moro em Cancun. Aqui não é preciso passar todo o tempo trabalhando. Além de concertista, tenho 10 alunos, dou aulas de violão por skype, vivo muito bem. No Brasil, eu precisaria de 30 alunos todo mês. Hoje, posso dizer, pela primeira vez, que eu vivo mais da música que eu toco, do que da música que eu ensino. Então, hoje dou aulas e toco pelo mundo. Este ano, me reservei para ser sabático. Estou apenas estudando e gestando projetos para o ano que vem. O ano de 2016 foi fantástico, em termos de viagem e concertos, mas eu me cansei de estar “on the road”. Apenas toco em Budapest e Liubliana em dezembro. Estou compondo. E em novembro conduzo uma orquestra daqui tocando música brasileira.
“Como disse, no início da entrevista, Arnaldo desviou o assunto e se despediu de mim. Agradeço imensamente sua generosidade de abrir seu coração ao nosso público, ao falar do suicídio de uma filha. Peço perdão por provocar as lembranças, mas é preciso falar do assunto. Falar abertamente. Expor tamanha fragilidade humana não é vergonha. É uma realidade que precisa ser encarada de frente. Depressão, insanidade, loucura… seja o que for. Vamos falar do suicídio, sem julgamentos. Vamos diminuir as distâncias, enfrentar as culpas, vamos nos dar as mãos, chorar juntos, rir juntos, nos abraçar. Para terminar, um pouco da arte das cordas de Arnaldo Freire, Insensatez. Nada mais a dizer!”
***Se você ou alguém que você conhece está lutando com as questões abordadas neste texto, por favor, procure ajuda de um profissional de saúde (por exemplo um psicólogo ou psiquiatra) na sua região ou ligue para o número do CVV para obter apoio emocional no número gratuito 188 (141 para alguns estados).
Se você é um enlutado por suicídio, busque por grupos de apoio em sua região.