“Na escola em que eu trabalho, a gente teve uma aluna que se suicidou em 2014. Abalou muito a todos e, de uma forma geral, eu acho que ninguém soube muito o que fazer. Nem os professores, nem a direção. Ficou todo mundo em choque. Aparentemente estava tudo bem com ela. Mesmo depois de um tempo que recebemos a notícia, o sentimento pra gente não passa. Continua em nós que éramos funcionários e acredito que pros alunos também, principalmente para os que tinham mais convívio.”
A série “13 Reasons Why” (“Os 13 Porquês”) trouxe à tona alguns temas tabus dentro e fora das escolas. Suicídio talvez seja o maior deles. Não é algo que a mídia trate com abertura ou que a sociedade, de forma geral, debata sem julgamento. O tema é delicado, difícil de abordar e, exatamente por isso, temos poucas informações sobre como tratá-lo.
O depoimento que abre esta reportagem surgiu no evento sobre Clima Escolar realizado por GESTÃO ESCOLAR e Nova Escola no último dia 27. Reunimos 30 educadores para debater bullying, saúde mental, automutilação, campanhas preventivas e a parceria da escola e família a partir de situações de “13 Reasons Why” que perpassam corredores, salas de aula, pátio, banheiros e outros ambientes. Dezenas de relatos mostraram a ânsia e necessidade de trabalhar o clima escolar. “Nós sabemos ensinar Português ou Matemática, mas não sabemos o que fazer com um tema que é o calcanhar de Aquiles da escola, que é a convivência”, diz Luciene Tognetta, professora de psicologia escolar da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem).
De acordo com Gustavo Estanislau, especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência e integrante do grupo Cuca Legal, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que promove a saúde mental nas escolas, o diálogo e a escuta sensível com os alunos é essencial. “A pessoa que se suicida, geralmente, dá um sinal duas semanas antes para alguém. Saber um pouco sobre transtornos mentais pode ajudar mais nesse momento”, indica.
Ao desconfiar que algo não vai bem com um estudante, vale chamá-lo para uma conversa – mas não só nesses casos, para que o estudante não associe que toda conversa ao fato de algo estar errado. “Um fator de risco psicológico muito grande para uma pessoa que pensa em cometer suicídio é a desesperança. Parece um sentimento difuso, mas uma forma de acessar a desesperança em uma pessoa que está triste é perguntar, por exemplo, quais são os planos dela para um momento futuro, por exemplo, o que ela pensa em prestar no vestibular”, propõe o psiquiatra. “A pessoa que está muito desesperançosa vai falar que não está pensando naquilo. Quando a pessoa demonstra que está pensando no futuro, ela mostra que tem pelo menos uma perspectiva”, explica.
Com os funcionários
Como a saúde mental é importante para a convivência escolar e a aprendizagem, este tema deve também ser proposto como pauta de formação. “Muitas vezes não se faz nada porque não se sabe o que fazer”, indica Luciene.
Nesse contexto, é preciso pensar a formação não apenas dos docentes, mas de toda a comunidade educativa – inclusive os pais. “É preciso aprender como lidar com essas questões, como observar melhor essas situações na escola, entender o que causa e quais consequências de um sofrimento que leva ao suicídio”, comenta.
A consequência é que, além de estarem mais preparados para identificar possíveis casos que precisam de um acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, a escola também começa a repensar como lidar com a aprendizagem de alunos mais quietos, tímidos ou tristes, por exemplo. “Ter informação e estar presente são as chaves para a prevenção”, concorda Gustavo. “A gestão pode trabalhar isso promovendo debates sobre fatores de risco, a discussão de mitos e formas de aproximaçao aos alunos neste tipo de cenário”, indica o psiquiatra.
Com os alunos
“O suicídio está ligado ao sofrimento, que é uma forma de se sentir violentado. Ninguém se mata à toa. Por isso, quando trazemos esse assunto para a escola, falamos de bullying e cyberbullying”, explica Luciene. Trabalhar a intimidação, a indiferença, a fragilidade da vida e a morte como conjunto de todas as experiências que os estudantes passam na vida dentro e fora da escola, por exemplo, são formas possíveis de abordar o assunto. “É preciso um trabalho preventivo que não seja de um só dia, mas que seja contínuo e que traga consequências para os alunos pensarem temas polêmicos como suicídio ou a tendência à automutilação. São temas inerentes à adolescência e à natureza humana que devem, sim, ser discutidos na escola”, recomenda a especialista em psicologia escolar.
A escola também pode formar redes de suporte para mediação de conflitos entre os próprios alunos. De acordo com Luciene, a comunicação entre pares é mais eficaz por eles terem condições de saberem muito antes dos problemas dos colegas. Eles podem ajudar a acolher e reduzir riscos de morte. Para isso, também é preciso fazer uma formação específica com esses alunos. Grupos como o Gepem oferecem formações e desenvolvem projetos relacionados em escolas públicas em Campinas, interior de São Paulo.
Pós-venção
Quando um caso acontece entre estudantes ou funcionários, é preciso agir com a comunidade para garantir que ela se sinta acolhida. Não há uma receita única, mas as estratégias devem passar pela informação, busca de diálogo e estímulo a fatores protetores. Intervenções como arte, apoio social à família ou a criação de um espaço em que as pessoas possam se expressar são algumas alternativas.
Também é possível acessar as pessoas individualmente – principalmente as que eram mais próximas – para que se sintam mais à vontade em compartilhar o que sentem. “Aqueles que têm alguma ligação com alguém que cometeu suicídio estão em alto risco de desenvolverem intenções suicidas ou algum problema de saúde. A culpa dos que estão ao redor é muito maior do que em outros casos de mortes próximas, mesmo quando se tratam de mortes brutais”, explica Gustavo.
O luto é parte importante desse processo. Juntos, gestor e todos os envolvidos podem pensar o que fazer dentro da comunidade – um minuto de silêncio, um memorial, uma carta ou envio de flores para a família, por exemplo. “Esse é o primeiro passo. Eles precisam viver a dor e não têm como escapar dela. Após esse momento, cabe discutir além do suicídio, como lidar com as causas dele e o que fazer para evitá-lo”, aponta Luciene. Segue-se a mesma linha das conversas e ações de prevenção a partir de discussões sobre bullying, o próprio caso que aconteceu ou de outros exemplos reais ou fictícios – como a própria série “13 Reasons Why”.