Em janeiro de 2005, o pai da jornalista Paula Fontenelle se suicidou. Contando hoje, ela consegue identificar uma série de sinais dados por ele antes de acabar com a própria vida e que, na época, ninguém percebeu. “Meses antes, ele marcou um almoço comigo e me disse que queria abrir uma conta conjunta comigo”, diz, ilustrando um dos sinais clássicos de quem decide se matar: O planejamento financeiro dos que ficarão, que são chamados pelos médicos de sobreviventes.
Depois que tudo aconteceu, ela decidiu mergulhar no assunto. Da dor, Paula publicou, em 2008, o livro Suicídio, o futuro interrompido – Guia para sobreviventes (Geração Editorial), indicado ao prêmio Jabuti em 2009.
Paula é hoje, além de jornalista, psicanalista, escritora e autora do blog Prevenção Suicídio. O nome do blog é a aposta da autora para a redução do número de pessoas que se matam e que hoje cresce como uma bola de neve em todo o mundo. A Organização Mundial da Saúde estima que uma pessoa se suicida a cada 40 segundos. Na prática, os conselhos de Paula para a prevenção do suicídio giram em torno de perguntar e ouvir. “Tem duas perguntas que você deve fazer a uma pessoa que pensa em se suicidar”, diz. “Onde dói, e como eu posso ajudar?”.
Pergunta. O luto de quem perde alguém por suicídio é diferente daquele que perde alguém por doença ou acidente?
Resposta. Eu acho que tem um ponto que é muito diferente e muito nocivo. Quando alguém morre por qualquer outro tipo de morte, as pessoas se interessam, perguntam. Se, por exemplo, foi um acidente, perguntam como foi, como a pessoa está. Querem saber sobre todo o processo da morte. No caso do suicídio, não. No momento em que você diz que a pessoa se suicidou, quem está ouvindo muda de assunto. Você se sente muito só. O tabu é muito grande. Muita gente esconde. Eu conversei com pessoas que pediram ao legista para alterar o atestado de óbito para, por exemplo, “acidente com arma de fogo”, porque não queria o estigma. Então além de você estar triste e passando por um luto normal, você passa pelo luto da incompreensão das pessoas e do tabu, porque ou a pessoa não quer falar ou pior, ela tem preconceito. Sem falar dos que se sentem culpados naturalmente.
P. Existe um sentimento de revolta com a pessoa que se matou?
R. Sim, a revolta é uma das fases. A primeira é o choque, mas isso é comum em qualquer morte. A segunda, é a raiva. Eu entrevistei uma mulher uma vez que fazia 20 anos que o marido tinha morrido e ela ainda tinha raiva. Tem gente que não sai dessas fases. A raiva é muito comum, porque é como se a gente se perguntasse “como essa pessoa pôde fazer isso comigo?”. A gente internaliza a morte do outro. No caso dessa mulher, por exemplo, é compreensível, porque a filha tinha uns sete anos e encontrou o pai morto. E ficou super perturbada. Então essa mulher dizia “eu nunca vou perdoar que ele tenha feito isso com as minhas filhas”.
P. E quais são as outras fases?
R. A culpa, que é quase inevitável. Tem um outro sentimento muito forte, e aí eu acho que é exclusivo de quem perde para o suicídio, que é o medo da hereditariedade. A gente começa a pensar “será que eu vou fazer a mesma coisa?”. O suicídio não é hereditário. O que pode ser hereditário, obviamente, é o transtorno mental. Mas o transtorno mental tem cura, tem tratamento. A minha irmã, logo depois que meu pai morreu, começou a tomar antidepressivo, mas ela já tinha depressão há muito tempo. E nela, foi acionado o gatilho oposto. Ela disse “eu não vou terminar como ele”.
P. O que aconteceu depois que o seu pai se suicidou?
R. Eu queria entender. Como acontece com qualquer um, você fica cheio de perguntas. Por que ele fez isso? O que leva uma pessoa a isso? Como eu não identifiquei? Será que ele disse para mim de alguma maneira e eu não consegui entender? Na época que comecei a pesquisar mais, este assunto não existia no Brasil. Comprei vários livros fora [do país], em inglês, e aí resolvi escrever o livro, porque tantas pessoas passam por isso no Brasil e precisam entender, precisam de informação e não têm. Do mesmo jeito que eu não tive. Por isso eu decidi escrever.
P. Nos seu livro, você fala em sinais que a pessoa dá antes de se suicidar e que podem ser perceptíveis. Quais são esses sinais?
R. Tem vários, e que são bem parecidos com os sintomas de depressão: Recolhimento, mudança de hábito – as pessoas começam a não se cuidar muito -, tristeza, isolamento. Muitas coisas se parecem, até porque a depressão é o transtorno mais associado ao suicídio. Os números mundiais mostram que mais de 90% dos suicídios são associados a algum transtorno mental. Um sinal bem importante é você deixar de sentir prazer em coisas que te davam prazer anteriormente. E existem alguns sinais que são específicos de quem está pensando em suicídio, já avançou na ideia e já está planejando.
P. Quais são?
R. Organização financeira. As pessoas se organizam, principalmente para a família não ter problema. Meu pai fez isso. Alguns meses antes dele se matar, ele marcou um almoço comigo e me disse que queria abrir uma conta conjunta comigo. Ele fez isso porque sabia que eu poderia resolver qualquer coisa.
P. Mas quando ele fez isso, não daria para imaginar que ele planejava se suicidar….
R. Nem passou pela minha cabeça. Naquela época, ele estava com problema financeiro e eu estava ajudando ele. Achei que era por isso. Mas depois, pensando, percebi que aquilo já poderia fazer parte do planejamento. Outro sintoma muito importante é a despedida. As pessoas começam a se despedir, a ligar para amigo de infância, para o primo com quem não fala há muito tempo. Meu pai, um dia antes [de se suicidar], foi até a casa da minha irmã. E naquele dia ela me falou “acho que papai está pensando em se matar”. Despedida é muito comum. Outra coisa, é o discurso ficar muito nostálgico. Eles começam a só falar do passado. Qualquer referência que você fizer ao futuro, eles vão só puxar para o passado. Essas pessoas são as que já tomaram a decisão [de se suicidar]. Para elas já não existe futuro, então não faz sentido falar do futuro. E tem um quarto sintoma, que é começar a se desfazer das coisas materiais, inclusive das que têm valor sentimental. É uma forma de testamento em vida.
P. Quando chega a este ponto, da pessoa se organizar para cometer o suicídio, é reversível?
R. Grande parte dos suicídios podem ser prevenidos porque são associados a algum transtorno mental. Toda semana eu recebo pelo menos três mensagens no meu site de gente que está pensando em se matar. Ou de alguém que identificou [os sintomas do suicida], ou de alguém que perdeu alguém. O que eu sempre falo é: Se a situação é emergencial, procure um médico. Porque pode ser um transtorno que já esteja muito avançado. Sem tratar, você não vai conseguir. A primeira coisa é levar ao médico, porque às vezes a pessoa não tem condições de ir sozinha. Terapia e grupo de apoio também podem ajudar. O emergencial é tentar identificar se existe algum transtorno mental associado.
P. Uma outra parte do seu livro fala dos mitos do suicídio. Quais são esses mitos?
R. O principal é aquela história de que “quem fala, não faz”. Ouça. Sempre ouça. Não é natural que um ser humano diga que vai se matar ou que a vida não tem sentido ou que ele não aguenta mais a vida. Isso não é natural. Principalmente com os jovens. Quando é com adolescente, a gente tem mania de falar “ah, a pessoa está fazendo isso para chamar a atenção”. Não ache que a pessoa que fala não vai fazer. Edwin Schneidman, um dos principais especialistas em suicídio, que criou um centro de prevenção aqui nos Estados Unidos, sempre falava que a pessoa que fala em suicídio, que pensa em suicídio, ela não quer se matar, ela quer acabar com a dor. Tem duas perguntas que você deve fazer a uma pessoa que pensa em se suicidar: Onde dói e como eu posso ajudar?. Por isso que é importante você ouvir e tentar ajudá-la naquela dor específica. Essa história de que quem se mata é fraco, ou então é louco, não tem nada a ver uma coisa com a outra.
P. E como sobreviver a um caso de suicídio na família ou de um amigo próximo?
R. O principal é ter com quem conversar. No silêncio, o suicídio cresce. Ele aumenta, fica maior do que é. Isso é o principal. Cada pessoa tem um jeito de lidar, mas para mim, o que funcionou foi ter informação. Ter acesso a informação e tentar entender o que leva uma pessoa a fazer uma coisa dessa. Entender a dor. Para quem passa por isso é muito importante ter com quem falar. É importante ser ouvido sem julgamento, sem opiniões. Apenas ouvir a dor do outro.
P. Quais políticas públicas poderiam ser desenvolvidas para a prevenção do suicídio?
R. Tem alguns exemplos. Um deles foi na Flórida, onde o governador instituiu que todos os professores de jovens tinham que fazer um curso de prevenção e identificação dos sinais do suicídio em jovens para tirar a licença para lecionar. Essa é uma medida simples mas que pode ajudar muito. Outra medida é a distribuição de cartilhas. Em Teresina (PI), o prefeito reuniu profissionais da área da saúde do município e fez uma série de palestras sobre suicídio. É possível. Acho que o principal é passar informação e ajudar a acabar com este estigma e preconceito com o suicídio. Existe muito preconceito inclusive do profissional da área de saúde, médicos, enfermeiros. O pessoal que tá no hospital tentando salvar a vida, chega uma pessoa que acabou de tentar tirar a vida, eles dizem “por que eu vou perder meu tempo com alguém que não está querendo viver?”. Eles são muito maltratados na rede de saúde, porque as pessoas não entendem que aquilo é uma doença.
P. Os jovens são o maior grupo de risco?
R. Quando você pensa em números, e é no mundo inteiro isso, os idosos com mais de 70, 75 anos, são os que mais se suicidam. Mas a faixa etária que mais cresce é entre 19 e 24 anos.
P. E entre homens e mulheres, qual é a estatística?
R. A própria Organização Mundial da Saúde diz que os números são muito pouco confiáveis. Inclusive os dados do Brasil não sei se são confiáveis. Não dá pra confiar. Agora, sobre homens e mulheres, os homens morrem mais do que as mulheres, mas as mulheres tentam muito mais o suicídio que os homens. O que diferencia é que a mulher toma remédio e não morre. É o método que elas utilizam. Os homens utilizam métodos como se enforcar e arma de fogo, e morrem mais. Mas é preciso ter cuidado, porque o homem tenta menos do que a mulher. Se para cada tentativa houvesse um suicídio realizado, a mulher morreria mais.
P. Qual é o papel da imprensa no trato deste tema?
R. É importantíssimo. Eu entendo o por que do silêncio da imprensa. De fato, o contágio existe. Quando este assunto começa a vir muito à tona, uma pessoa vulnerável pode ficar estimulada a dar o próximo passo para o suicídio. Isso é verdade. Mas a mídia tem que ter muito cuidado em como cobrir o assunto. Se for pensar na prevenção e em sempre seguir as orientações pra isso, ela estará cumprindo um grande papel. Por exemplo, sempre ouvir especialistas e pessoas que passaram por isso, sempre falar dos fatores de risco associados e dos sinais. Dar orientações sobre o que fazer. A coisa principal é nunca levar para o lado do romance. Outra coisa é não falar do método usado para o suicídio detalhadamente. A imprensa tem um papel importantíssimo na prevenção, mas tem que ter um cuidado enorme para cobrir este assunto.
P. Você acha que falta se falar mais sobre este tema? Por que é um tabu?
R. Acho que todo mundo se escondendo por trás do silêncio não ajuda na prevenção do suicídio. Todo mundo deveria falar, mas com muito cuidado e responsabilidade, inclusive a mídia. E não falar somente quando uma celebridade se mata, porque é isso que acontece. Isso não é tema de celebridade. Não tem rico e pobre para o suicídio. O que a gente tem que fazer é falar continuamente, voltando para a prevenção e de forma responsável.
P. Sobre o jogo da baleia azul, que é feito de desafios, até que o último é o suicídio, e já teria causado a morte de alguns adolescentes…
R. A gente deveria mesmo estar falando deste jogo? Até que ponto a gente está estimulando os jovens a procurar o jogo? Eu teria muito cuidado para falar dele. Uma coisa é falar de uma série, que está abordando o tema [13 reasons why], falar das vantagens e desvantagens de se falar sobre isso. Agora falar de um jogo que tem como finalidade que os jovens se matem, eu não vejo nenhuma vantagem de falar disso.
P. Mas de alguma maneira este assunto precisa ser abordado, né?
R. Eu acho que pode ser abordado no sentido do alerta. Para alertar os pais para que conversem com seus filhos e, mais uma vez, fiquem atentos ao que eles estão fazendo na Internet.
http://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/24/politica/1493060585_262958.html