Taciturna, ela passeia entre nós. Sem temor, pois é o próprio medo, trafega entre os carros de uma avenida movimentada. Onipresente, vaga por corredores de hospitais a escolas. Quer para si ricos e pobres, bons e ruins, sem preconceito.
A morte é tão temida quanto inevitável. Definida por estudiosos da tanatologia — a ciência que a investiga — como o maior tabu da atualidade, destronou o sexo como principal assunto a ser evitado.
Ela segue invisível, até invadir a sala no meio do jantar ou ser anunciada pelo toque do telefone na madrugada. Chega no tom de voz do médico ou num olhar carregado de más notícias.
Uma pesquisa encomendada pela revista The Economist em parceria com o instituto norte-americano Família Kaiser traçou um perfil sobre o que as pessoas mais querem nos seus momentos finais. Brasil, Itália, Japão e Estados Unidos participaram do estudo, divulgado em 27 de abril de 2017.
Entre os entrevistados, os brasileiros (70%) foram os que mais priorizaram prolongar a vida o máximo possível, apesar da dor ou desconforto gerado por uma internação longa. Somente 15% dos japoneses, 42% dos italianos e 47% dos norte-americanos acharam válido manter a vida a qualquer custo.
A pesquisa ressalta que o Brasil tem o maior número de católicos no mundo e as explicações para esticar a vida seriam religiosas. A consequência disso é a “medicalização” da morte, que a deixa mais sofrida do que o necessário.
Os brasileiros (88%) também são os que mais se importam com “estar em paz espiritualmente” e “ter as pessoas amadas ao redor” antes de partir. Cerca de 70% deles se preocupam com a situação financeira da família, que pode ficar abalada com um falecimento. Esse foi o percentual mais baixo entre as nacionalidades pesquisadas. Os dados também mostraram que pelo menos um terço dos entrevistados brasileiros nunca conversou com familiares sobre o morrer.
Mas precisamos mudar essa realidade. Não importa como a morte vive no seu imaginário: se é uma mulher de capa preta, homem barbado ou anjo bíblico. Existe um pacto silencioso para ignorá-la, como se morrer fosse punição e não destino em comum que iguala a humanidade. O preço desse comportamento pode ser alto. O não dito torna-se maldito.
Durante seis meses, o Metrópoles conviveu com a morte. Frequentou alas de cuidados paliativos de hospitais, onde profissionais dão qualidade de vida a doentes e seus familiares, diante de enfermidades sem chance de cura.
Entrevistamos 17 pessoas, entre médicos, pacientes, terapeutas ocupacionais e psicólogos para dar voz a seus anseios e aprendizados diante do fim. Eles ressaltam a importância da educação sobre a morte — que inclui falar sobre o assunto desde a infância e não tratá-lo como um tabu.
“Crianças não têm medo da morte. São os adultos que transformam o morrer em uma questão obscura. Com isso, criamos pessoas ansiosas, que não sabem perder”
Explica a psicóloga Sílvia Coutinho, especialista em cuidados paliativos pediátricos e adultos.
Uma das consequências de fazer da morte um tabu é viver numa sociedade despreparada para lidar com o luto. “Quando alguém morre e estamos tristes, todos dizem: vai passar, não chora. Não damos ao outro o tempo de viver o luto, é estratégia para que a gente não se lembre que não tem controle sobre tudo”, explica Sílvia.
Conviver tão de perto com os momentos finais do ser humano é uma fonte de aprendizado. “A morte é um dia que vale a pena viver. Como será na nossa vez? Uma boa morte é resultado de uma boa vida”, defende a chefe da unidade de cuidados paliativos do Hospital de Apoio de Brasília, Érika Oliveira.
A maneira de se despedir é sempre singular. “O morrer e o nascer são solitários, apesar das pessoas ao redor. É sempre uma experiência muito pessoal. Pode ser belo e sublime, triste e comovente. Uma morte nunca é igual à outra”, descreve a médica paliativista do Hospital Universitário de Brasília (HUB) Cláudia Arminda Corrêa.
Há quem organize a própria festa de despedida e escolha virar árvore após morrer. Outros deixam o roteiro do funeral, querem samba, suor e cerveja. O último desejo pode ser comer hambúrguer, ganhar um carrinho, ir ao cinema pela primeira vez ou conhecer a praia.
Os que fazem dela ganha pão também a olham nos olhos e a seguram pela mão, como o dono da primeira funerária de Brasília. Ele diz já ter visto a morte mais de uma vez.
E quem há de honrar a memória dos que partem? O homem que anuncia os falecimentos da cidade em um carro de som, de graça, para que os enterros sejam mais prestigiados. Todos eles têm em comum o que ensinam: é possível viver a morte.
Todas as manhãs a psicóloga Elisa Walleska Krüger enche uma caneca de café e desce até um bosque que rodeia o prédio onde mora, na Asa Norte, para observar as árvores. Ela se permite apreciar o vento fresco, o cheiro, a luz tímida que passa por entre as copas. O ritual é novo. Foi incorporado à rotina há não mais que dois anos.
É uma forma de homenagem à filha Túlasi, de quem Elisa se despediu em 2015, vítima de um câncer de colo de útero aos 29 anos. Túlasi adorava a natureza. Suas cinzas estão sob uma imensa árvore na Floresta da Tijuca, no Rio, onde morava.
O mundo de Elisa e Túlasi começou a desmoronar em maio de 2014. A filha vinha sentindo cólicas insuportáveis. O doutor disse que Túlasi provavelmente tinha endometriose e pediu alguns exames. No dia em que buscou os resultados no laboratório, ela encarou os papéis por duas horas antes de tomar coragem de falar ao telefone com Elisa. “Mãe, não há uma forma boa de eu te dizer isso…Eu estou com câncer”, desabafou.
Elisa conta a saga no livro “Eterna Túlasi”, que escreveu como pagamento de uma promessa feita à filha em vida e publicado em 2016, de forma independente. Túlasi acreditava que sua história talvez pudesse servir de inspiração a outras pessoas.
O capítulo que abre o livro, “O pior dia de minha vida”, conta justamente sobre quando as duas receberam a notícia da doença. “Quem já acompanhou um paciente com câncer sabe da sensação de incerteza que toma conta de nós cada vez que afirmamos que ‘este foi o pior dia da minha vida’. No fundo, sabemos que sempre poderá vir (e geralmente vem) um pior que
aquele”, a mãe diz, no parágrafo que abre o livro.
Túlasi foi a segunda dos quatro filhos de Elisa. De todos, a mais “agarrada” com ela, conta. Por conta da vida profissional, Túlasi ficou no Rio e a mãe foi para Brasília. Mesmo assim, se falavam três ou quatro vezes por dia pelo telefone.