A posvenção, mais especificamente posvenção ao suicídio, é tudo o que se relaciona aos cuidados necessários com enlutados por alguém que tirou a própria vida. Cuidados esses que devem ser oferecidos por leigos e profissionais de saúde mental. Alguns países têm estratégias de posvenção bem implementadas, como o Canadá, Austrália, Estados Unidos, Inglaterra e países da Europa.
De acordo com o psicólogo especialista em assuntos ligados à prevenção do suicídio, Carlos Henrique Aragão, o trabalho de posvenção é de grande importância. Ele destaca que Edwin Snheidman, considerado o “pai” dos estudos contemporâneos da suicidologia, foi quem colocou o termo posvenção em destaque já no início dos anos 70. Ele alertava que o cuidado aos “sobreviventes” de um suicídio, os enlutados, é uma forma de prevenção de outras mortes autoprovocadas, “prevenção para futuras gerações”.
Tal preocupação se justifica, visto que indivíduos que perdem um ente querido por suicídio são um grupo de risco para o comportamento suicida. Ou seja, é comum que o sobrevivente tenha desejo de tirar também a sua vida por causa da intensa dor da perda, além de fatores mais específicos ocasionados por especificidades desse tipo de morte. Sentimentos de culpa, raiva, vergonha e desamparo são intensos. Dúvidas e questionamentos sem respostas atormentam a mente do enlutado (ex.: e se eu tivesse feito isso, será que teria evitado a morte dele? Por que ele fez isso?).
“Nesse sentido, há que ter um cuidado especial com esse grupo de pessoas. Entretanto, ressalto que a intensidade do sofrimento é sempre variável, e nem todos os enlutados por um suicídio terão, certamente, comportamento suicida no futuro. Cada caso deve ser tratado de forma individualizada, humanizada e contextualizada”, orienta.
Um livro intitulado Tratado Brasileiro sobre Perdas e Luto, da editora Atheneu, lançado em 2014, reúne conteúdo de 50 especialistas do Brasil que escreveram sobre os diferentes aspectos do processo de luto. O psicólogo clínico especialista em tanatologia, prevenção e posvenção de suicídio, Carlos Aragão, escreveu sobre o luto de um suicídio e ressalta que o ideal é que a pessoa enlutada tenha suporte, assim que possível, após o evento traumático. Neste momento, normalmente, não oferecem resistência, pois desejam falar e desabafar com alguém que possa efetivamente dar uma escuta e acolhimento adequados. Ele reforça que qualquer pessoa pode fazer isso.
Uma avaliação por parte de profissionais de saúde mental deve ser feita em função da possibilidade do declínio da saúde física (a imunidade é rebaixada) e emocional do sobrevivente. De acordo com o pesquisador sobre o assunto, clichês e frases de efeito devem ser evitados. Algo como “foi Deus quem quis assim ou você tem que ser forte” não surtirão efeito algum ou vão aumentar ainda mais a angústia de quem está padecendo de intenso sofrimento.
“Nessas horas, o melhor é estarmos verdadeiramente ao lado, tolerar a expressão e validar a dor do outro. Não é fácil, mas necessário. Muitos enlutados procuram se afastar de pessoas até muito próximas quando não se sentem acolhidos ou quando sabem que serão expostos a conversas triviais e banais. No caso de atendimento clínico especializado, a Terapia de Luto trabalha numa perspectiva de processo, trabalho de curto, médio e longo prazos para facilitar a elaboração e processamento da dor da perda com seus respectivos quadros de dor emocional, saúde física e psíquica”, avalia.
“Luto complicado”
Segundo o psicólogo, a maioria das pessoas tem um processo de luto normal, enquanto alguns desenvolvem o que é conhecido por “luto complicado”, quadro mais provável por consequência de mortes súbitas, violentas e traumáticas, como o suicídio. Existe também o “aconselhamento de luto”, voltado para questões mais pontuais e que não tem a mesma frequência da psicoterapia.
Ponto de partida é expressar dores e angústia
Carlos Aragão, doutorando em Psicologia Clínica e Cultura (UnB) com o tema do suicídio, explica que o luto é um processo natural que se inicia após uma perda significativa. O trabalho a ser feito deve contemplar os dois lados: o da dor e o da vida que continua. “Não devemos negligenciar um ou outro. A dor não vai sumir num toque de mágica nem pelo apelo da comunidade. Deve ser processada num contínuo, com o investimento do enlutado nesse processo e a ajuda necessária da família, grupos, amigos e colegas, e dos profissionais, se for o caso”, comunica.
O profissional da Psicologia diz ainda que há que se investir na vida que segue, também. Pessoas que estão ao seu lado, no trabalho e escola, atividades que desenvolve, enfim, tudo aquilo que uma pessoa possui e lhe faz bem. “Penso que, para aqueles que têm alguma crença religiosa, vivenciar a sua fé de forma madura é um fator de proteção”, considera.
Expressar as dores e angústias é o ponto de partida para elaborar melhor o processo de luto. Portanto, sem a expressão dos sentimentos, o enlutado só vai acumular sofrimento sem qualquer válvula de escape. Daí a relevância de poder contar com uma rede de apoio que suporte efetivamente esse momento difícil. “Sempre é possível fazermos essa travessia em direção a um lugar melhor, onde teremos o ente querido que morreu no nosso coração, sentiremos saudades, mas a vida não se torna inviável, pesada a ponto de paralisarmos e não conseguirmos seguir em frente. Não é fácil, mas é possível”, pondera.
É possível superar fase do luto
O funcionário público federal Elson Nogueira perdeu o irmão há 10 meses e tem transformado toda a dor em solidariedade, ao contar seu testemunho, deseja mostrar que qualquer família pode passar por essa situação, assim como buscar evitar que outras pessoas cometam tal ato e, acima de tudo, que é possível superar, mesmo com toda dor e dificuldade. Segundo ele, o impacto de qualquer morte é grande, mas em casos de suicídio, é muito mais forte. Ele definiu a ocorrência como um turbilhão de sensações que invadem a cabeça e que o enlutado perde a noção de tudo.
O cearense mora em Teresina há 22 anos, e por estar distante do irmão que faleceu na cidade Fortaleza (CE), relata que a notícia trouxe um impacto maior ainda e que surgiram inúmeros questionamentos sobre a condição de como sua família estaria no Ceará, por isso fez questão de ir imediatamente participar do sepultamento.
“Esse impacto é muito violento. É como se fosse um terremoto e o epicentro fosse o seu coração. É como se você tivesse sido comprimido, por um momento você perde a noção de algumas situações. Mas logo depois com apoio da minha esposa e filhos consegui recuperar as forças”, destacou.
Elson Nogueira destaca ainda que após quase um ano, ainda é difícil falar sobre o acontecido. “Você nega que aquilo seja verdade, até que você tem que encarar a realidade”, acrescenta. Vindo de uma família de 15 irmãos, sendo 10 vivos, ele destaca que na cabeça de todos, alguns questionamentos passam a ser frequentes, como o porquê daquilo ter acontecido.
Em Teresina, Elson Nogueira já havia acompanhado dois casos de filhos de pessoas próximas que haviam passado pela mesma situação e pôde perceber que as suas sensações eram comuns entre as famílias. Ele reconhece ainda a dificuldade de se pensar racionalmente no calor da emoção, mas após um período, inicia-se a fase dos “ses”. “E se ele tivesse conversado comigo, se eu tivesse feito isso, se ele tivesse feito isso e são várias as perguntas que você vai ter que aprender a conviver”, completa.
Pouco antes do ocorrido, o funcionário público havia sido convidado para participar de um grupo com a proposta de debater temas que afligem a sociedade, e o suicídio era uma temática forte dentro do “Projeto Despertando Ideias”, formado por membros da Igreja Católica.
Elson revela que o fato de ter participado de algumas reuniões e uma mesa redonda que discutiu o assunto, lhe deu um preparo maior para que pudesse ser o suporte e manter a razão da família.
“Após o ocorrido com meu irmão, eu entendi que precisava entender mais sobre o problema para conseguir tirar dessa dor um lado de poder ajudar outras pessoas a não passar por essa mesma situação”, disse. Ele ressalta que o tema ainda é cercado de muito preconceito e tabus, em que a própria imprensa tem dificuldade em abordar de forma séria o assunto, mas que a partir de atitudes pioneiras, como a criação do Núcleo Mais Vida, do Grupo Meio Norte, a realidade começa a se modificar.
Suportes ajudam a enfrentar a dor
Por ter a oportunidade de conviver com pessoas que estudam sobre a problemática, ler pesquisas e estudos, Elson Nogueira entende que o luto nesses casos é difícil superar, pois os familiares, amigos e pessoas próximas ficam com a dúvida dos motivos para aquilo ter acontecido, mas é preciso conviver com a dor, se superar e seguir a vida.
Ele considera que encarar a realidade, buscar entender, seja na fé ou nos estudos e dados científicos, tentar entender que aquilo aconteceu e infelizmente aconteceu com você são primordiais para sair de um quadro de luto profundo. E assim como em outras perdas, a vida tem que continuar, pois é preciso estudar, trabalhar, cuidar da família e cuidar até mesmo daqueles que estão mais fragilizados.
“É possível passar por esse furacão. E para que você consiga fazer isso, é preciso ter três suportes básicos. Primeiro a família, por mais que tenha seus problemas, é o principal alicerce para superar. Segundo, os amigos, pessoas que se preocupam com você, que te conhecem, e em terceiro a fé, não importa a sua crença, sua religião, mas você tem que ter. Com esse tripé, você consegue uma boa base para se manter de pé”, expôs.
Por experiência própria, Elson compartilha que é possível sair dessa situação e conseguir enxergar uma possibilidade de conviver com a dor e assim passar a ajudar alguém, seja dizendo que é possível passar por isso, seja divulgando que são essas as bases que vão trazer condições de passar pelo luto ou seja levando testemunhos para que outras pessoas não cheguem a passar por essa situação.
Ele destaca ainda a importância de ficar atento aos sinais que a pessoa que está passando por algum problema psicológico dá e, às vezes, as pessoas mais próximas não conseguem identificar, por isso, ressalta a importância de abrir um espaço para o diálogo e para procurar ajuda de especialistas.
É preciso preciso querer se ajudar
A jovem Maria Francisca* revela que não é fácil conviver com a ideia de que a pessoa em que você confiava, que idealizava como um exemplo de vida, dedicada aos estudos, calma, tranquila, inteligente e que não era problemática, passa por uma situação de desilusão com a vida a ponto de querer deixar de existir. Assim, aconteceu com seu único irmão, que morava com ela, há cerca de um ano.
Após o fato, ela confessa que entrou em um quadro de desespero e que no momento em que mais precisou de ajuda, se sentiu sozinha e invadida por curiosos. Segundo Maria, só quem passou pela situação é capaz de compreender de fato a dor e o sofrimento. Ela conta que não sabia se tinha força para suportar toda a carga.
“Naquele momento, eu não pensei na minha gestação e nem no meu outro filho. Eu estava com medo da situação. Eu não conseguia dormir, não estava acreditando, eu me sentia culpada por não ter tido mais atenção, por não estar mais próxima dele, achava que estava faltando mais alguma coisa, que faltou atenção, amor, que não estava fazendo o suficiente”, declarou.
A estudante conta que não conseguiu perceber os sinais que o irmão dava para mostrar que estava passando por problemas. Ele se trancava no quarto e estudava, se isolando mais ainda e sem demonstrar que estava com problemas internos. “Ele estava cansado, tinha perdido a esperança na vida”, acrescenta.
De acordo com Maria, são dias muito difíceis após a perda, conviver com o sofrimento dos pais e ao mesmo tempo com o sentimento de revolta, por isso passou a ter acompanhamento psicológico. Depois de um tempo, ela considerou que não precisava mais, abandonou e se viu desesperada, em um quadro em que chorava muito e vivia com medo. Foi quando decidiu pedir ajuda e voltou ao tratamento. “Hoje faço acompanhamento, tenho todo suporte, pessoas que me escutam. A saudade parece que aumenta a cada dia, mas decidi que precisava voltar a trabalhar, me dedicar aos estudos”, diz.
Maria revela que, às vezes, tem a impressão de que nada aconteceu, que está tudo bem, que o irmão está no quarto, mas logo depois vem a realidade e por isso tenta se manter firme para dar suporte aos seus pais. No entanto ainda sofre com a perda do seu único irmão.“Eu passei muito tempo sem conseguir dormir, mas agora com ajuda de tranquilizantes já consigo descansar mais e diminuir um pouco a dor e a angústia no meu peito. Estou tentando me ajudar”, ressalta.
Procurar ajuda e é sempre a melhor saída
Ela conta ainda que para tentar amenizar um pouco da saudade, passou a conviver com os amigos do irmão, em especial uma que ele gostava bastante, para desabafar e não se sentir sozinha.
“É tudo ainda muito confuso. Às vezes eu tenho um pouco de medo, embora eu tenha me esforçando. Eu sei que preciso conviver com essa dor e sei que não é fácil e por isso precisei procurar ajuda”, pondera. Maria acrescenta que tenta mostrar para as pessoas que está bem, sai, conversa, dá gargalhadas, faz as pessoas rirem, mas por dentro ainda sente seu coração machucado, pois é muito difícil conviver com dor da perda, mas seus filhos pequenos têm ajudado a superar a dor.
Ela revela que por vezes se sente impotente, pois segundo a jovem, depois que alguém passa por tudo isso, as pessoas julgam os sobreviventes como fortes e chegam procurando ajuda. “Muitas pessoas me buscaram pedindo ajuda. Eu dou atenção, tento, mas não é fácil ajudar o outro, principalmente depois que você passa por uma situação dessa, você tem que estar muito bem preparado psicologicamente”, frisa.
A jovem voltou a estudar e tem se apegado à fé, através do espiritismo, como mais um elemento para superar o luto e a dor da perda. Ela também busca realizar um trabalho de prevenção. Maria lembra que no início não conseguia atender telefonemas, não falava com ninguém, nem saia na rua, mas não por vergonha, e sim porque estava tão ferida e as pessoas não se aproximavam para ajudá-la, mas para fazer questionamentos.
“Parece que nesse momento ninguém o compreende. Apontar o dedo, mostrar os erros, é fácil, contudo só quem passa pela dor é que compreende o quão difícil é seguir essa caminhada. Eu espero que as pessoas que pensam em fazer isso sejam tocadas e que procurem ajuda, pois não é fácil a situação por que a família passa quando isso acontece”, pondera.
*O nome da personagem foi alterado para preservar a sua imagem.