Falar de morte já é muito difícil. Que dirá falar da morte, escolhida por algumas pessoas, como alternativa à vida.
O suicídio está presente em toda a História da humanidade e ainda assim é um assunto obscuro, coberto por um véu pesado. Quase sempre está reservado ao silêncio do tabu e da perplexidade e aos ruídos da estigmatização. Suscita julgamentos, joga na cara nossas impotências e provoca uma lamentação que não se dissipa.
“Todos já pensaram, em algum momento de sua vida, que poderia ser melhor morrer. O suicida causa horror porque foi para além do pensamento”, explica ao HuffPost Brasil o psicanalista Roosevelt Cassorla, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e professor da Unicamp.
É o ato derradeiro de uma vida cujo sofrimento se tornou insuportável, intolerável. É querer morrer para fazer a dor de viver parar. “É um ato repleto de ambivalência, entre o querer morrer e o querer viver de maneira diferente”, define a Associação Brasileira de Psiquiatria.
Obscurecer uma situação porque ela é pesada ou difícil não faz dela menos real ou presente. Muito pelo contrário: atrapalha a possibilidade concreta de fazermos algo a respeito. A cada dia, pelo menos 32 brasileiros se matam. Ao fim deste ano, 11.712 pessoas terão encerrado a própria vida no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS).
No mundo, os números são ainda mais alarmantes: a cada 40 segundos, uma pessoa se mata, sendo 800 mil mortes autoinfligidas ao fim de um ano. E, para cada caso fatal, há pelo menos outras 20 tentativas fracassadas. Em uma dimensão comparativa, o suicídio mata mais jovens do que o HIV e a aids.
Se houvesse prevenção, 9 entre 10 pessoas ainda estariam vivas, de acordo com a OMS. “Como podemos prevenir o suicídio se não falarmos sobre ele? Como podemos perder o medo da morte se não falarmos sobre isso?”, questiona ao HuffPost Brasil o psicólogo chileno Marco Antonio Campos, representante do Chile na Associação de Suicidologia para América Latina e Caribe.
“É preciso falar abertamente sobre suicídio. Seja em família, nas escolas, ambiente de trabalho, igrejas ou na mídia”, explica Robert Paris, voluntário e presidente do Centro de Valorização da Vida (CVV), entidade sem fins lucrativos que oferece apoio emocional e prevenção do suicídio há 54 anos.
“[Falar de suicídio] Tem que se tornar tão natural quanto falar sobre câncer ou doenças sexualmente transmissíveis, pois são, igualmente, situações que podem levar à morte ou a sequelas permanentes, mas que têm prevenção que começa pela conscientização.”
“O suicídio foi e continua sendo um tabu entre a maioria das pessoas. É um assunto proibido e que agride várias crenças religiosas. O tabu também se sustenta porque muitos veem o suicida como um fracassado. Por outro lado, os homens, por natureza, não se sentem confortáveis para falar da morte, pois isso expõe seus limites e suas fraquezas. Esse tabu piora a situação de muitos”, alerta a cartilha Falando Abertamente sobre Suicídio, do CVV.
O silêncio, principalmente por parte da imprensa, acabou sendo justificado pelo temor de que falar sobre o assunto seria uma maneira de incentivar o ato, em uma espécie de contágio. O escritor alemão Goethe precisou vir a público se defender porque uma centena de jovens se suicidou depois de ler o livro Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774, em que o personagem principal se mata. Alguns se vestiam como o protagonista do livro, outros adotaram o mesmo método para morrer e a publicação foi encontrada no local da morte de alguns. A imitação de suicídios passou a ser chamada de Efeito Werther na literatura médica.
Outro exemplo de “contágio” ocorreu em Viena, na década de 80. Ocorreram 22 suicídios no metrô da capital austríaca em um período de 18 meses, o dobro do que foi registrado três anos anteriores, depois da cobertura sensacionalista de um caso em 1986. A percepção desse “contágio” deu início a um manual para os profissionais da imprensa sobre como divulgar suicídios, lembra a Associação Brasileira de Psiquiatria.
Em um relatório da OMS divulgado em 2014, o órgão inclui a cobertura sensacionalista da mídia como um fator de risco, seja por contribuir com “imitações” ou com a estigmatização das pessoas.
Imagens de corpos ou detalhes do método utilizado, indicação do local da morte, uso da palavra “suicídio” na chamada, descrições de como os corpos estavam e chamadas dramáticas ou carregadas de tensão, como foi visto recentemente nas coberturas dos casos de suicídio no Rio de Janeiro e em São Paulo, devem ser evitados e não contribuem para que o assunto seja debatido com profundidade.
A Associação Brasileira de Psiquiatria, em sua cartilha para profissionais da imprensa, afirma:
“Acredita-se que carregar a reportagem de tensão, por meio de descrições e imagens de amigos e familiares impactados, acabe por encorajar algumas pessoas mais vulneráveis a tomarem o suicídio como forma de chamar a atenção ou de retaliação contra outros.”
Depois de analisar todo o material de suicídio publicado no jornal O Globo em 2004, o jornalista Arthur Dapieve argumenta, em seu livro Morreu na Contramão – o Suicídio como Notícia (Zahar, 2007), que a cobertura acaba espelhando a sociedade:
“A maneira no mínimo receosa como a imprensa em geral lida com o o suicídio é muito mais determinada pela visão social do assunto, que determinante de como pensamos sobre ele. Trata-se de um espelho, onde podemos nos ver e a nossos medos.”
O psicólogo chileno Campos complementa:
“Essa é uma questão muito controversa. Na verdade, protegidos pelo Efeito Werther, muitos, se não a maioria dos meios de comunicação, se recusam a falar sobre o suicídio, sob o fantasma de imitação e possível ‘suicídio em massa’.”
Ou seja: nem o silêncio, nem o sensacionalismo, abordam o assunto mais importante do suicídio: a prevenção.
“Não se deve mostrar o suicídio como se fosse uma coisa sensacional. Deve-se mostrar a dimensão humana e como um problema de saúde mental. Não é um problema da polícia, da ‘celebridade’ ou da Justiça, como é frequentemente o foco.”
Pensamentos suicidas não são raros
A dimensão humana do suicídio talvez seja a mais atingida pelo tabu. Pensamentos suicidas não são tão raros quanto se pensa e podem ocorrer em qualquer pessoa, especialmente em momentos de desespero profundo, nos quais não se enxerga a saída.
Em 2003, a equipe do psiquiatra Neury Botega, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador de uma estratégia de prevenção do suicídio no Brasil, entrevistou 515 moradores de Campinas com mais de 14 anos que haviam sido sorteados aleatoriamente. De cada 100 pessoas, 17 já tinham pensando em se matar, 5 chegaram a elaborar um plano e 3 tentaram de fato, segundo artigo da revista Fapesp.
O que diferencia o pensamento da ação é a possibilidade de se aliviar ou amenizar o sofrimento. E é este o momento que mais convoca nossa empatia, pois nem todas as pessoas têm, naquela ocasião, as ferramentas emocionais e psíquicas para vislumbrar uma saída que não seja a morte. É por isso que a intervenção de outra pessoa e o enfrentamento aberto do problema são tão importantes.
O desafio de profissionais da saúde, da família e de amigos é identificar pessoas que estejam em risco e orientá-las a buscar a ajuda necessária.
“É importante que a pessoa que está sofrendo seja ouvida e compreendida”, explica o psicanalista Cassorla:
“Em geral a pessoa comunica, de alguma forma, seu desejo de morrer. ‘Não tem mais jeito’, ‘perdi a esperança’, ‘é melhor morrer’. Quem deve avaliar os riscos é o profissional de saúde.”
Os sinais de risco de suicídio se apresentam de várias maneiras, identifica o psicólogo e membro da Associação Internacional pela Prevenção do Suicídio (IASP) Carlos Henrique Aragão:
“Entre eles, podemos citar o isolamento social, a perda do prazer em atividades nas quais a pessoa antes tinha prazer, tristeza profunda, queda do rendimento na escola ou no trabalho sem motivos aparentes, frases com conteúdos de despedida e desesperança na vida, comportamentos de risco e mudanças bruscas de comportamento.”
Frequentemente associada ao suicídio, a automutilação também desperta preocupação e é um importante fator de risco, esclarece Aragão, autor de tese de doutorado sobre o assunto. “A automutilação geralmente se inicia sem a intenção suicida, mas não é dissociada do comportamento suicida. Parte das pessoas que se mutilam vai ter este comportamento.”
Os alertas podem também ser bastante sutis, destaca a psicóloga Blanca Guevara Werlang, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em um artigo para a Fapesp:
“Elas [as pessoas] podem dar indícios mais diretos e dizer: ‘Não quero mais viver’, ‘Um dia eu vou sumir’ ou ‘Vocês ainda vão sentir minha falta’. Ou dar pistas indiretas como alterar hábitos, começar a distribuir objetos pessoais ou visitar amigos e familiares que há muito tempo não vê.”
A dificuldade em falar do assunto com quem está em um estado de desamparo profundo aparece, inclusive, entre os profissionais de saúde. O motivo é o temor de que a conversa induza ao autoextermínio.
Porém, falar sobre planos de suicídio pode ajudar o paciente a procurar outras saídas para seu sofrimento, afirma a psicanalista Soraya Carvalho, coordenadora do Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio (NEPS), na Bahia, e autora do livro A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio (Campo Psicanalítico, 2014).
Segundo a especialista, sempre que alguém fala do seu interesse em acabar com a própria vida, isso deve ser levado a sério. O ser humano é um ser de linguagem; por isso, de maneira geral, diante do insuportável da existência, restam-lhe três alternativas: falar, adoecer ou recorrer ao ato — explica Carvalho:
Convidar um sujeito a falar sobre o que lhe atormenta e até mesmo sobre sua intenção suicida não irá incentivá-lo ao ato suicida; ao contrário, falar sobre o que lhe consome pode ser uma forma eficaz de prevenir o suicídio.
O CVV enfatiza a necessidade de se perder o medo de se aproximar das pessoas e oferecer ajuda:
“A pessoa que está numa crise suicida se percebe sozinha e isolada. Se um amigo se aproximar e perguntar ‘tem algo que eu possa fazer para te ajudar?’, a pessoa pode sentir abertura para desabafar. Nessa hora, ter alguém para ouvi-la pode fazer toda a diferença. E qualquer um pode ser esse ‘ombro amigo’, que ouve sem fazer críticas ou dar conselhos. Quem decide ajudar não deve se preocupar com o que vai falar. O importante é estar preparado para ouvir.”
O psicólogo Campos endossa o convite à conversa ou a uma terapia:
Todas as nossas emoções se processam em relação aos outros. Uma conversa aberta, sem preconceitos, sem críticas, é sempre um alívio. O importante é ter tempo para ser ouvido e que a conversa ajude a enxergar a dor sentida e que, a partir daí, se possam encontrar novas perspectivas.
Caso você — ou alguém que você conheça — precise de ajuda, ligue 141, para o CVV – Centro de Valorização da Vida, ou acesse o site. O atendimento é gratuito, sigiloso e não é preciso se identificar. O movimento Conte Comigo oferece informações para lidar com a depressão. No exterior, consulte o site da Associação Internacional para Prevenção do Suicídio para acessar redes de apoio disponíveis.