Em 2009, Dayse Miranda entrou em um batalhão da polícia militar no Rio de Janeiro, rodeada por dezenas de homens fardados, para falar de suicídio. À época, a taxa de suicidas na corporação já havia sido quatro, até seis vezes maior que a da população fluminense, embora ninguém ousasse tocar no assunto. “Quando detalhei o problema, eles me olharam como se eu pudesse ler a mente deles”, conta.
Pós-doutora em ciências política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Dayse bancou “a coronel”, conta, para tocar um projeto inédito, encabeçado por um grupo de maioria feminina, na instituição formada por mais de 90% de homens.
Na liderança de uma dezena de PMs psicólogas e sociólogos, ela lapidou o Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (GePESP), responsável por Por que policiais se matam?, a principal publicação sobre suicídio de policiais militares em solo fluminense. Foi assim que ela conheceu histórias de PMs homens e mulheres que cogitaram tirar a própria vida e de viúvas da corporação. O resultado é uma análise que aborda o porte de arma de fogo, a ausência de serviço psicológico e a rígida hierarquia militar que tornam o suicídio uma realidade na polícia militar.
Nos próximos meses, policiais treinados irão ministrar palestras de prevenção em todas as UPPs do Rio de Janeiro. Com o feito, a cientista social – que carrega no currículo um longo histórico de estudo internacional sobre violência de gênero – foi alçada ao posto de uma das principais referências sobre suicídio em um país que registra 2,5 mulheres mortas por suicídio a cada 100 mil habitantes. Sobre as causas e a saídas para esse problema que afetam mulheres você lê a seguir.
Tpm – Mulheres tentam se matar mais do que homens no Brasil?
Dayse – Em comparação aos homens, o dobro de mulheres tenta o suicídio por aqui e basicamente no mundo [em 2014, o Brasil registrou 5,3 mortes a cada 100 mil pessoas; a ONU aponta um suicídio a cada 40 segundos no mundo]. Apesar disso, são eles os que mais morrem. Existe um motivo para isso: o meio. Mulheres costumam usar maneiras menos letais, como remédios, que podem ser revertidos caso haja um procedimento médico ágil. Os homens usam revólver, corda ou afogamento.
Há motivos específicos ligados a gênero nesses casos? As mulheres costumam ser vítimas de violência doméstica, estupros e violações sexuais, geralmente cometidas por familiares na infância. Os dados brasileiros são ruins, pois registram apenas o caso, e não a história completa por trás do fato. Mas, em minhas pesquisas e estudos internacionais, esse cenário de violência está presente. Mutilações, que são mais comuns entre mulheres de classe média, são alguns dos primeiros sintomas demonstrados por mulheres que tentam suicídio, por exemplo.
Os casos acontecem entre mulheres mais ricas? Não temos dados para afirmar isso em relação às mulheres no Brasil. O único paralelo palpável foi feito por pesquisadores paulistas que concluíram, a partir de dados do IBGE, que as mulheres brasileiras desenvolvem mais depressão do que homens. O motivo, relatado por elas, é sempre o acúmulo de funções – no trabalho e em casa – e a idade. E mulheres também têm mais estudo do que os homens, o que costuma indicar renda mais alta em alguns casos. Países em crise econômica, com famílias inteiras que ficam desempregadas, os números de suicídios aumentam. Um exemplo é a Grécia, durante a crise do Euro que quebrou o país em 2015, ou em Portugal, nos últimos anos. Nesses contexto, os indicadores sugerem que a mulher que tenta ou se mata é mais escolarizada e com renda mais alta, um reflexo do padrão social que a sociedade onde ela estava inserida. É preciso analisar a cultura de um povo para fazer esse tipo de análise sobre suicídio. Na China, por exemplo, o suicídio ocorre devido ao alto grau de problemas familiares, já que a economia diferenciada que impera por lá não opera no ocidente. Como disse, por aqui não há uma coleta sistemática de dados detalhados para fazer um perfil.
Por que não há uma coleta mais detalhada dessas mortes? A coleta de dados é ruim. Todo o número coletado no Brasil é feito pelo SIM [Sistema de Informação sobre Mortalidade]. Nesse sistema só entram números. A pesquisa qualitativa – quem era, de onde era, quanto ganhava – ainda é muito difícil de ser feita pela ausência de órgãos especializados. Depende de médicos dedicados, que se sensibilizam pelo assunto… Em países da Europa existem órgãos especializados.
A pesquisa que você coordenou começou dentro da polícia militar. Como a mulher é vista dentro da corporação? A instituição é naturalmente autoritária, tradicional e masculina. O grupo de mulheres, das coronéis às recém-formadas, é relativamente recente e com menos prestígio simbólico. O machismo existe em todas as instituições, mas elas sofrem problemas específicos de gênero na corporação. Existe assédio e abuso de poder. O machismo pode reforçar os problemas gerais da corporação que afetam a todos que trabalham ali – como baixo retorno salarial, violência e pouco auxílio assistencial. É um preconceito que acentua um quadro de adoecimento mental e, se não combatido, pode levar ao suicídio. Conheci uma mulher que se candidatava a um cargo no Comando de Operações Especiais, ligado ao Bope. Ela sofreu com um problema psiquiátrico e tentou se matar.
E ela fazia de tudo para parecer um homem e abafar isso. Se esforçava para correr tão rápido quanto um homem, treinava feito homem. Ela se masculinizou. Qualquer sinal de fragilidade era associado com o fato de ser mulher. Quando ela tentou se matar, o destaque que havia conquistado diminuiu e ninguém sabia como lidar. “Como alguém do Batalhão de Operações Especiais tenta se matar?”, eles pensavam. Até a maneira, utilizando a arma, foi uma tentativa de reproduzir o gênero masculino. Vale ressaltar que a questão de gênero apareceu nas entrevistas que fiz. Muitos dos homens relataram ter problemas com o casamento, especialmente divórcio e problemas domésticos. É preciso não generalizar, pois seria uma leviandade. É apenas mais um dos fatores.
Quando você iniciou seu trabalho com a polícia militar isso também aconteceu? É interessante. Pela minha postura, me tornei “a coronel”. Na verdade, me interessei pela pesquisa em suicídio em São Paulo, como doutoranda da USP. Lá, uma policial me indicou estudos relacionados ao suicídio policial na corporação paulista. O suicídio policial, ela me contou, foi seis vezes maior que o resto da população, embora houvesse um programa de prevenção da própria polícia que estava retrocedendo os números. Quando retornei ao Rio de Janeiro, fui até à polícia militar, coletei dados, fui juntando as peças e expliquei aos capitães o meu empenho no assunto. Como já era professora com certa bagagem sobre estudos de violência no Rio, me deram a permissão para iniciar palestras e a conhecer histórias sobre suicidas, promover palestras e remeter fichas. Me aproximei de mães e esposas viúvas da PM até detectar o problema. Sempre me trataram bem, sem interferência de gênero. Era uma realidade tão velada que, ao surgir por ali, fui acolhida por quem estava sofrendo.
Por não se fala pouco de suicídio na mídia? Esse tabu se reflete na sociedade também. A ausência de divulgação sobre assunto na mídia se chama Efeito de Werther, baseado na obra Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Quando o livro foi publicado na Europa, no século 18, representantes da imprensa e setores da comunicação chegaram a um consenso que falar sobre suicídio estimula surtos suicidas. Desde então, apenas casos de pessoas muito relevantes foram noticiados. Para mim, o problema é a forma como se é noticiado um caso. É preciso detalhar todo o contexto que envolve um suicídio e reportar toda a condição estrutural que levou alguém a essa decisão e o que fazer para evitar. Nas últimas semanas, o policial Douglas transmitiu a própria morte ao vivo, na internet. Muitas autoridades tiveram que dar uma resposta adequada, e eu fiquei mapeando tudo que era publicado na internet. Esse é um caso perigoso, que de certa forma criou um “evento” badalado em volta de uma morte. A maneira certa de noticiar isso seria problematizar, fazer uma análise analítica que fosse mais importante do que falar sobre como a morte ocorreu. Sem glamour e com problematização, é a maneira correta de se falar sobre uma pessoa que adoece.