Lâminas de apontador, compassos, estiletes. Esses simples objetos que fazem parte do material escolar têm sido usados por adolescentes para automutilação, também conhecido por cutting. Essa prática foi reconhecida como transtorno mental em 2013 pela Sociedade Americana de Psiquiatria e pode ser definida como uma agressão ao próprio corpo sem intenção consciente de suicídio. Segundo a psicóloga Cláudia Paiva de Magalhães, apesar de não existirem estudos no Brasil, pesquisas feitas nos Estados Unidos mostram que os casos ficaram mais frequentes na última década.
Como muitos deles ocorrem no início da adolescência, a escola precisa estar atenta a esses movimentos entre os alunos para tomar as medidas necessárias. Confira abaixo as principais dúvidas sobre o tema e maneiras de lidar com isso.
O que é automutilação?
A automutilação é uma prática de agredir o próprio corpo, que pode acontecer de diferentes formas. A mais comum é fazer pequenos cortes na pele, mas a pessoa também pode se bater, se queimar com cigarro, arrancar os cabelos, se furar com agulhas ou praticar qualquer outra autolesão. “Os ferimentos costumam ser feitos em lugares que podem ser escondidos, como braço, perna e barriga. Os adolescentes tentam escondê-los com pulseirinhas, deixam de usar shorts e passam a usar mais mangas longas”, explica Jackeline Giusti, psiquiatra assistente do ambulatório de adolescentes com problemas de automutilação, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).
O que motiva esse comportamento?
Muito diferente do que as pessoas acham, o autor não busca a dor física pelo prazer de senti-la. “Na maioria dos casos, a automutilação é reflexo de uma incapacidade de lidar com seus próprios sentimentos, como angústias, medos, tristeza e conflitos. Os adolescentes veem nessa prática a saída mais rápida para aliviar esse intenso sofrimento. É uma troca da dor emocional pela dor física”, explica a psicóloga Cláudia. O ato também pode ter relação com se punir por alguma atitude, raiva ou com a autoestima baixa. Em algumas situações, pode estar associado à depressão. “Não precisa existir um transtorno psiquiátrico, mas, geralmente, há uma tristeza envolvida”, aponta Jackeline, da USP.
Para João Paulo Braga, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará e autor da tese “Autolesão na Era da Informação: uma abordagem sociológica do cutting entre subculturas urbanas”, apesar dos estudos se concentrarem na área médica, é preciso considerar as razões sociais que levam ao crescimento do fenômeno. “A base do cutting está no empobrecimento das relações interpessoais das crianças logo no início da adolescência, somado a um grau de exigência muito grande, não só de estudo, mas de beleza física”, diz. Ele afirma que, apesar do aumento dos casos, a automutilação não é um modismo adolescente. “Quase todos os relatos que obtive durante os cinco anos de pesquisa apontam problemas familiares como abandono de um ou ambos os pais, rejeição e agressão pelo fato de serem homossexuais, abuso sexual, humilhações que o indivíduo sofre por parte de um dos genitores ou mesmo a vivência com pais excessivamente individualistas e ausentes”, indica.
A internet pode influenciar esse comportamento?
A internet em si, não, mas o material que o adolescente tem contato nela, sim. Diferente de outras experiências comuns à idade – como o primeiro beijo – não existe uma pressão de grupo para se automutilar. No entanto, um jovem pode começar a fazer isso ao se identificar com alguém que já passou por uma situação análoga a dele, especialmente artistas que ele admira, ou com uma comunidade que discuta temas vivenciados por ele. Dentro de algumas subculturas jovens, por exemplo a de bandas de hardcore e punk , os assuntos tratados nas letras, como melancolia, conflito ou raiva, acabam sendo reconhecidos como os que experimenta o indivíduo que se automutila. “A música de hardcore é uma forma de extravasar e aliviar as aflições e depressões adolescentes”, explica João.
Existe um perfil de pessoas que se automutilam?
A prática costuma se iniciar no começo da adolescência, por volta dos 12 anos, e vai perdendo força à medida que o adolescente se aproxima dos 18 ou 19 anos. Apesar de ser mais frequente entre meninas, Jackeline, do Instituto de Psiquiatria da USP, alerta que a automutilação costuma ser mais agressiva entre os meninos. “Às vezes, a intenção é fazer cortes superficiais, mas pela impulsividade e força, acabam fazendo lesões mais sérias do que planejadas”, diz.
O que fazer quando um aluno está se automutilando?
A instituição precisa estar atenta aos possíveis sinais – como blusas de frio em altas temperaturas, isolamento, sintomas de baixa auto-estima ou depressão, uma vez identificado um caso, chamar aluno e responsáveis para conversar. “Muitas vezes, os familiares acabam não percebendo isso dentro de casa, o que pode acabar agravando o quadro na medida em que o tempo passa. Muitos acham que usar roupas de mangas longas, se isolar, ou ficar deprimido é ‘coisa de adolescente’ ou ‘modinha’, mas não é”, comenta Cláudia.
Na hora de conversa com o estudante que se automutila, é necessário ter uma atitude acolhedora, sem julgamentos, se mostrar disposto a ouvi-lo e tentar entender. “Às vezes, o sofrimento está associado à uma dificuldade dele na escola, como não conseguir passar de ano, e uma conversa franca pode diminuir a tensão”, sugere Jackeline. A atitude acolhedora também vale para os pais que, geralmente, não sabem como reagir à situação.
A escola também pode sugerir que o jovem seja encaminhado a um especialista – psicólogo ou psiquiatra – para análise do caso e, se necessário, iniciar um tratamento até que o quadro seja estabilizado.
A escola deve trabalhar o tema, mesmo sem identificar um caso de automutilação?
Sim. Para Jackeline, a abordagem na escola tem que começar antes do problema. “Muitos dos adolescentes que eu recebo no ambulatório sofreram bullying por muito tempo. Por isso, é fundamental realizar um trabalho antibullying e atividades que melhorem a autoestima, desenvolvendo habilidades para expor ideias e lidar com as diversidades e adversidades”, explica. Essas atividades melhoram a capacidade de expressão e o sentimento de pertencimento dos estudantes durante essa fase da vida.