Sempre me importei com problemas muito pequenos, com coisas tão irrelevantes que a única pessoa com quem eu conseguia conversar sobre isso era o meu irmão. Mais que um irmão e meu companheiro, ele fazia parte de mim. Mesmo morando em cidades diferentes por um tempo, os canais de comunicação não paravam, cada um atualizando o outro sobre qualquer acontecimento no dia-a-dia. É fato que eu não estava sozinha.
Há dois anos e um mês o meu irmão se tornou uma lembrança e uma tatuagem no meu antebraço. Lembro que, quando a fiz, pensei bastante o local onde iria colocá-la e decidi por um lugar onde as pessoas pudessem ver e eu pudesse sempre falar sobre ele e contar uma história nossa.
Lembro que, no seu enterro, um funcionário me falou: “se alegra pelo irmão que você teve, foi uma pessoa querida. Aqui nunca enche desse jeito”. O Heitor conseguiu unir, naquele dia, parentes que não se falavam há mais de 20 anos, amigos de mais de 5 estados diferentes e pessoas que tinham conversado com ele algumas vezes, mas que sentiam que deveriam se despedir. Não podia ser diferente. Com 27 anos ele conseguiu conquistar muitas pessoas, realizar grandes sonhos da sua vida e, claro, deixar saudades para sempre.
Apesar de muitos dizerem que viveu pouco, ele sempre foi uma pessoa muito “pra frente”. Em uma família conservadora, ele abriu as portas para coisas que ninguém nunca tinha visto. Enquanto eu penso muito antes de realizar alguma coisa, ele tinha a ideia e já executava. Heitor queria morar fora, economizou o dinheiro do almoço e foi. Quis se tornar jornalista e conseguiu. Não satisfeito, decidiu ser publicitário e se tornou um ótimo redator. Queria ir para São Paulo e se mudou. Lá chorou, sorriu e me disse que viveu os meses mais felizes de sua vida, os seus últimos meses.
Quando meu irmão se foi, eu me senti sozinha por muito tempo. Do meu luto ninguém sabia, nem mesmo a minha própria psicóloga. Chorar em público era sinal de fracasso e não suportava um olhar de pena. Mas com quem falar sobre um assunto se a única pessoa com quem eu teria coragem para falar morreu?
Por isso, nunca tinha conversado, nunca tinha chorado com alguém, sempre senti o luto sozinha. Uma amiga uma vez me disse que me achava muito forte porque via que eu estava superando de uma forma muito controlada. Mas ela não sabia que eu tive que tirar a foto dele da minha parede, porque toda vez que eu acordava e olhava para a foto, eu não conseguia levantar. Que toda vez que eu e meus pais lembramos de alguma história do Heitor e nos olhamos, é como se eu sentisse uma facada no meu peito. Que as roupas que usei no dia em que ele morreu eu não consegui vestir nunca mais.
Ninguém sabia porque eu não conversava sobre, porque quando a morte acontece, as pessoas te consolam, mas depois a gente simplesmente não fala sobre o luto. E é contraditório porque, às vezes, o que mais me conforta é quando as pessoas falam sobre o Thor, quando encontro um amigo e recordamos histórias. A saudade é menos doída ao saber que ele se mantém vivo na vida das pessoas. Elas acabam não comentando pelo medo de causar tristeza, o que é totalmente compreensível. Mas o que elas não sabem é que falar sobre o luto é também falar de alegria, recordar boas memórias.
E foi quando eu falei sobre o luto pela primeira vez que eu entendi. Foi quando me tornei voluntária deste site e conheci a Karina. A Karina perdeu o marido no seu aniversário de 40 anos e aproveitou a sua profissão como psicóloga para se especializar no luto e ajudar as pessoas por meio do grupo de apoio. Em uma conversa de duas horas, pelo telefone, contamos as nossas histórias e cada uma sentiu a dor da outra. Como todo ser humano, tem horas que nem a gente que passou por algo sabe o que dizer, mas sabe quando o outro entende. Nessa conversa houve tristeza, mas também boas recordações, histórias compartilhadas. A Karina me fez entender que para eu falar sobre o luto, eu preciso saber se o outro está pronto para ouvir ou não. Se não quiser ouvir, não tem problema, podemos conversar sobre qualquer outro assunto, eu vou entender.
Isso me fez perceber que, na minha família, não estamos prontos ainda para ouvir sobre o luto um do outro, mas que isso nunca nos impediu de demonstrar a saudade e o amor que temos pelo Heitor. Eu entendi que quanto mais falamos sobre a normalidade da morte, mais as pessoas podem se familiarizar com o assunto. Assim, vamos estar melhor preparados para amparar alguém que perdeu um ente querido, não só no momento da morte, mas também anos depois, quando quisermos compartilhar uma lembrança.
Hoje, aos poucos, eu me abro para as pessoas com quem construí certa intimidade. Isso acontece quando a minha cicatriz é tocada por algum sonho ou uma lembrança muito forte e, consequentemente, dói. E nessas horas em que tenho necessidade de falar, eu me abro. Posso não receber uma palavra em troca, mas sinto que recebo um abraço e que sou ouvida. Assim, pela receptividade das pessoas que me ouviram, pela existência daqueles que se importam comigo e, com o Thor ao meu lado, eu não me sinto mais sozinha.
Bárbara é irmã mais nova de Heitor: “o nosso sangue, esse que importa, para sempre”, como ele deixou registrado nas redes sociais pouco antes de morrer. É publicitária, mora em Brasília e vem descobrindo que o sentido da vida está na empatia e no bom humor.