Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Eclesiastes 3,1
Ao longo destes últimos vinte e cinco anos, venho praticando meu ofício de ouvir histórias de sobreviventes de processos de mortes. Pessoas que buscam ajuda para lidar com suas perdas, concretas ou metafóricas: a morte de uma pessoa significativa, tentativas de suicídio sem a consumação da morte, relacionamentos amorosos desfeitos, mudanças no status financeiro, frustrações de desejos não realizados, aposentadorias compulsórias, mudanças abruptas dos papeis sociais, a saída de casa dos filhos crescidos, o fim de cada etapa da vida – da infância, da adolescência, da “adultice” fértil acompanhada de produtividade quantitativa – ou mesmo, o nascimento do primeiro filho com a perda da “solteirice”; além disso, a perda da vitalidade física, seja por alguma patologia, ou pela própria senescência. Keleman e Kovács denominam estas vivências de “pequenas mortes”, enquanto Yalom de “experiências de despertar” (perdas seguidas de grandes transformações na vida). E um encontro com esses ‘eventos’ demanda um tempo de elaboração: o luto.
Na atualidade, nesta nossa “pós-modernidade líquida” [denominação que tomo emprestada de Zygmunt Bauman todas estas vivências de perdas – ou o que nós analistas junguianos chamamos de mortes simbólicas – são agrupadas pelo senso comum em um único termo: ‘depressão’, que nos diz muito pouco sobre estas experiências demasiadamente humanas, constituindo-se de um conjunto de sintomas selecionados para um rótulo retirado dos manuais diagnósticos e estatísticos de transtornos mentais (DSMs). Estes códigos diagnósticos se originaram por uma demanda específica de padronização da linguagem para a pesquisa psiquiátrica e acabaram, a meu ver, sendo mal utilizados na prática clínica.
Horwitz & Wakefield já criticavam o DSM-IV e o momento atual da psiquiatria (agora baseado na quinta edição), que faz diagnósticos ignorando a relação entre os sintomas e o contexto do paciente, patologizando o sofrimento, que poderia ser encarado como uma capacidade natural humana, uma função adaptativa de reações normais à perda, resultado de um projeto biológico.
Não se trabalha a história, não se respeita os valores individuais dos pacientes, que são atendidos por meio de entrevistas dirigidas e objetivas, com o propósito de se preencher categorias diagnósticas com um conjunto de sintomas, sem tempo para uma escuta respeitosa e cuidadosa, com real interesse no sofrimento do outro, e muitas vezes sem a capacidade de acolher angústias existenciais, que geralmente são mútuas, isto é, tanto de quem fala como de quem ouve.
De modo geral, o ‘deprimir-se’ é considerado desagradável e não desejável, assim como a morte. No entanto, parece fundamental para que se possa superar ou ressignificar a dor, encarar o sofrimento e vivenciar lutos, não apenas pela morte de pessoas queridas, como também em razão das “pequenas mortes”.
Moore denomina estes processos de “as noites escuras da alma” – expressão do místico e poeta espanhol São João da Cruz (1542-1591) – e os considera de grande importância para as transformações necessárias às demandas do cotidiano, dizendo-nos:
“Alguém que passa por uma noite escura pode dizer: “Ajude-me. Estou deprimido. Tire-me daqui”. Mas como você poderia tirá-la de um processo natural de mudança? Como pode curar alguém da autotransformação? O problema é que não pensamos mais em termos de passagens e transições.”
Atualmente, este “tire-me daqui” implica numa expectativa do paciente “impaciente” [termo sugerido pelo Prof. Dr. Dario Birolini no prefácio do livro “O Doente Imaginado”, de Marco Bobbio de que seu sofrimento só poderá ser resolvido com ‘uma bala mágica’ que os retire dessa ‘noite escura’ e rapidamente, “influenciados pelo “doutor Google” e por notícias divulgadas em jornais e revistas, claramente motivadas por interesses econômicos ou pessoais”. E de modo geral, acolher pacientemente a pessoa, ouvir atenta e respeitosamente o relato de suas dores, com empatia e compaixão, com o intuito de ajudá-la a elaborar sua perda, não satisfaz os ‘apressados’, que sentem como se nada fosse feito, e a consulta não tivesse valor por não obterem a receita do medicamento desejado e/ou a solicitação de muitos exames. A meu ver, um grande equívoco, aí está a pedra filosofal do ofício do psiquiatra: saber ouvir, saber o que e quando falar e calar. Tarefa nada fácil e, não só do psiquiatra, mas de todos os médicos de qualquer especialidade, ou mesmo de qualquer ser humano!
O processo psíquico de se refazer a partir das perdas, e não só das pessoas significativas, é um momento de afetos confusos, muitas vezes, paradoxais: de alívio e culpa, ainda acompanhado por “dor, tristeza, pesar, desgosto, angústia, entorpecimento, exaustão, remorso, (‘desejo de’) solidão”, entre outros, conforme relata ter sentido Butler após a morte de seus pais. É um momento de se experimentar as ausências e da oportunidade de se retomar a vida, compreendendo aspectos diferentes de nós mesmos, que só notamos após estas vivências.
É preciso um trabalho de elaboração psíquica frente a estas demandas, como respostas de adaptação, um trabalho de desconstrução da presença e reconstrução da ausência. É um tempo necessário de construção da presença da ausência, como a memória, que na mitologia grega é representada pela deusa Mnemosyne, mãe das musas, que inspiram os poetas e os profetas, aqueles que têm contato com o mundo dos mortos, o além, o mundo de Hades ou Plutão.
Saber lidar com a morte talvez possibilite, como dizem vários autores, saber viver a vida! Eros (a energia de vida) e Tânatos (a energia de morte) estão constantemente medindo forças dentro de nós. Temos células nascendo e morrendo a todo o momento. O morrer evidencia que não temos controle frente à nossa totalidade. A vida implica um movimento constante de abertura, a eterna renovação, um fluxo contínuo. Mas, constante, contínuo não significa rapidez, pois há que se respeitar o tempo apropriado para a transformação psíquica de cada um.
Porém, a insensibilidade, a intolerância, a dificuldade de lidar com a dor física ou psíquica, as mudanças de valores culturais, a pressa, a perda de contextos, a falta de tempo e de paciência com e das pessoas, a supremacia do biológico ao biográfico do ser, a hipervalorização da materialidade, do racionalismo, da objetividade, e o abuso de psicofármacos, que promovem uma anestesia e bloqueio da capacidade de reflexão crítica sobre questões fundamentais da vida – como a morte, por exemplo, que é negada, dissociada – além da anestesia promovida pelo consumismo desmedido, incapacita-nos ainda mais para esta vivência de ser mortal.
A pressa da atualidade, pressa de ter tudo na hora, pressa de resolver os problemas, as dores e os sofrimentos, esta sim é a verdadeira inimiga a ser combatida e não a morte.
Segundo Alves: “O tempo da alma é vagaroso. […] Desde que a pressa se instala, a alma se recolhe e somos projetados na voragem do tempo exterior.” E ainda:
“Quem observa os ritmos da natureza acaba por ganhar equilíbrio pessoal. […] Somos seres da natureza como os animais e as plantas. E a natureza é sempre vagarosa. É perigoso introduzir a pressa num corpo que tem suas raízes na lentidão da natureza .”
E muitas vezes, a pressa começa num momento muito delicado e íntimo. Quando temos um parente que morre no hospital ou outra instituição, nem se dá um tempo para que os familiares, amigos e cuidadores possam se despedir junto ao corpo – uma atitude que auxilia algumas pessoas a se organizarem emocionalmente após a notícia – pois o leito precisa estar disponível rapidamente, entre outros procedimentos logísticos das instituições (McCullough , 2009).
Para Pessini ,
“[…] vivemos em um momento cultural sócio-histórico, no âmbito das terapias de saúde dominado pela analgesia, em que fugir da dor é o caminho racional e normal. À medida que a dor e a morte são absorvidas pelas instituições de saúde, as capacidades de enfrentar a dor, de inseri-la no ser e de vivê-la são retiradas da pessoa. Ao ser tratadas por drogas, a dor é vista medicamente como um barulho disfuncional nos circuitos fisiológicos, sendo despojada de sua dimensão existencial subjetiva. Essa mentalidade retira do sofrimento seu significado íntimo e pessoal, e transforma a dor em problema técnico.“
Em entrevista sobre seu livro Antropologia da Dor, o antropólogo francês David Le Breton refere:
“A experiência mostra que o médico fixado no organismo só se interessa pela dor, e não pelo sofrimento. Ou seja: a experiência vivida por seu paciente, ele nem mesmo a escuta. Seus olhos estão fixados nas imagens ou nos exames. Para mim, o trabalho do médico implica capacidade de criação, de invenção, de recuperação, um jogo entre o conhecimento e o que ele sente, e que o leva a retomar uma conversa ou um sintoma. […] Penso que a eficácia terapêutica implica um mínimo de empatia. Acontece que o ser humano não é uma máquina nem a dor um mecanismo. O elo entre o primeiro e a segunda está costurado por ambivalências, afetividades e contextos socioculturais, que as tomografias não conseguem mapear (Manir).”
Pelo próprio significado etimológico de ‘psiquiatra’ – do grego: psykhè, alma; e íatros, médico – como médico da alma, fica muito difícil aceitar o manejo proposto na atualidade. Do ponto de vista pessoal, não consigo considerar o complexo comportamento humano como apenas um epifenômeno de uma sinapse, embora tal complexidade permaneça no campo do mistério, suspenso entre dois outros mistérios: a vida e a morte.
Retornando ao processo de elaboração das perdas, isto é, o luto, os processos necessitam de tempo. Assim como um processo de cura de uma ferida física precisa de tempo, assim como tudo demanda tempo para recuperar seu equilíbrio, a alma também precisa de tempo para cicatrizar. As cicatrizes, por vezes, até continuam doendo, incomodando, mas podemos ressignificá-las quando encontramos sentido no sofrimento e, além disso, estas marcas de momentos tão importantes de nossa existência nos dão identidade.
Antes de rotular com qualquer diagnóstico e medicar – o que geralmente é feito na primeira consulta – é necessário muito tempo de observação: da pessoa, de sua história de vida, de seus valores, como também, da compreensão da ‘depressão’ – ou, como utilizo aqui, a ‘vivência de perda seguida de luto’ – como uma expressão natural da psique (alma), que nos transportaria para um lugar simbólico promotor de reflexões sobre nossos valores e estilo de vida. Há muito trabalho a ser feito pelos sobreviventes! Muitas peças de si mesmo para serem reencaixadas.
Quando discutimos sobre a questão se um período de luto superior a duas semanas já deveria ser diagnosticado como doença, como está proposto no DSM-V, torna-se duvidoso se realmente estamos dispostos a dar o tempo necessário para nossas psiques se adaptarem às mudanças importantes, como à perda de pessoas significativas em nossas vidas, por exemplo. A psique está confusa, aflita e surgem novos problemas com os quais talvez não saibamos lidar neste estado ferido.
“E é nesta situação que esperam que voltemos a funcionar “normalmente” dentro de duas semanas? Luto não é doença e sim, uma reação normal e sensata frente à confrontação com a morte e que ajuda a lidar com a perda, reorganizar-se, harmonizar-se; é uma das experiências existenciais mais fundamentais (Kast).”
No entanto, do modo como as consultas psiquiátricas têm sido realizadas, seguindo os manuais diagnósticos e focando na tecnologia, ficamos obrigados a fingir que nada aconteceu, nada mudou e a vida deve continuar; não se pode chorar, ficar triste, ou perder a alegria de viver. “Com o crescimento do componente científico, a medicina perdeu o componente humano. Fala-se aos pacientes com números e não mais com o coração” (Bobbio).
Dentro desta perspectiva é que o movimento SlowMedicine – ou a medicina sem pressa – pode nos ajudar a promover um resgate de uma prática psiquiátrica mais humanizada. O movimento enfatiza o cuidado focado no paciente, com a escuta cuidadosa e respeitosa de sua história e seus valores. Apresenta como “eixo essencial do exercício da medicina: uma relação médico-paciente” (Birolini) sólida, criando laços estreitos e duradouros. Considera que o tempo e a atenção ao paciente melhoram a tomada de decisão. Cultiva a arte tanto de não intervir na autonomia e autocuidados, como da sabedoria da observação clínica. Tem como foco a humanização e não a tecnologia. E por fim, defende a aceitação do inevitável. Estes são princípios dos quais a psiquiatria da atualidade parece encontrar-se bastante carente.
E como diz Rubem Alves : “Os que bebem juntos da mesma fonte de tristeza descobrem, surpresos, que a tristeza partilhada se transmuta em comunhão”.
Ana Célia Rodrigues de Souza
Sou médica psiquiatra, formada pela FMUSP em 1992, obtive meu mestrado em Ciências do Comportamento pelo ICB – USP em 1998 e atualmente sou doutoranda do Instituto de Psicologia da USP. Analista junguiana , sou uma apaixonada por orquídeas e jardins botânicos, “cinéfila” e leitora voraz, que como Jorge Luis Borges, penso que o Paraíso deve ser uma espécie de Biblioteca. Buscadora, andarilha, caminhante, adoro viajar tanto para locais conhecidos – seguindo o conselho de Proust, com novos olhares para os mesmos lugares – como me aventurar por onde desconheço. Aos cinquenta anos, no climatério, vivencio minhas “pequenas mortes”: final da fertilidade biológica e um casal de filhos saindo de casa, mas deixando tempo e espaço para o ócio criativo.