Recém-casada, aos 18 anos, Ilza Feitosa deixou a vida pacata de Jaraguari e mudou-se para Campo Grande, na intenção de viver um grande amor. A mesma cidade onde foi acolhida e teve os quatro filhos foi também palco de grandes tristezas e decepções para a sanfoneira, que, aos 64 anos, não se esquece de nenhum detalhe das peças que a vida lhe pregou, mas que foram superadas. Depois de permanecer “enclausurada” por três anos, Ilza se apegou à fé e saiu da depressão. Hoje, além de fazer o que gosta, ajuda centenas de moradores do Bairro Estrela do Sul, onde vive há 40 anos e trabalha com o projeto “Sarau Raízes”.
O casamento durou 15 anos e, desde então, ela preferiu seguir sozinha. Filha de músico, o dom da arte “corre nas veias”. Acostumada a acompanhar o pai em eventos, começou a vida artística aos 13 anos.
“Como eu morava no sítio, minha diversão era ver ele tocar. Meu pai era muito bravo, então, desde cedo, acostumei a me esconder atrás do instrumento para que ninguém se aproximasse. Não podia olhar para o lado. Então, dessa maneira, aprendi a levar a vida. Se eu chegasse numa festa e um homem viesse falar comigo, eu ficava de castigo. Morria de medo disso”, contou Ilza.
Com voz calma e aparência tranquila, a musicista contou que se descobriu solitária mesmo após ter trabalhado 42 anos em meio à multidão. “Tenho dificuldade de me relacionar. Aprendi a viver num mundo só meu, que sempre foi de grandes sonhos, de ajudar as pessoas, tenho um amor incondicional pelo ser humano”.
Aos 58 anos, Ilza passou por experiência considerada um divisor de água da vida dela. Funcionária pública do Estado, atuava no setor administrativo da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Coronel Antonino, quando, durante uma crise de estresse, surtou. “Eu estava decepcionada com o egoísmo das pessoas, de não se preocuparem com o próximo e da inversão de valores. E isso acabou me afetando ao longo do tempo, então saí de lá e fui direto para um sanatório”.
Na Clínica Médica Carandá Bosque, Ilza permaneceu com amnésia por 20 dias. Após alta médica, se trancou em casa, de onde praticamente não saiu pelo menos durante três anos. “Saí da clínica tomando 12 psicotrópicos [tipos de antidepressivos]. Não queria ver ninguém, não abria a porta pra ninguém, estava muito decepcionada com tudo, com a vida em si. Naquela época, cheguei a pesar 103 quilos”.
Durante esse tempo que permaneceu fechada em casa, a sanfoneira conta que passou meditando. “Eu levantava cedo e cuidava só de planta. Não fazia mais nada”. Nessa mesma época, quando o casal de filhos mais novos saiu de casa, ela descobriu que sofria da síndrome do ninho vazio. “Perdi o sentido de viver de vez, pois criei eles pra mim”. Perto de completar três anos trancada em casa, começou a reduzir a medicação por conta própria e o efeito foi surpreendente. “Percebi que estava cansada e, além disso, cansando toda a minha família. Percebi que todos os dias um morria um pouco. As pessoas tinham que se revezar para cuidar de mim. Então, percebi que eu estava uma pessoa muito cansativa e me dei conta que precisava fazer alguma coisa. Então, parti para as orações. Foi aí que me reergui. A esperança foi tomando conta de mim”.
Depois que deixou de tomar as medicações, descobriu que tinha efeito rebote às drogas (retorno dos sintomas da doença, em alguns casos, mais graves do que no início) e foi ficando cada vez mais lúcida. “Descobri que os remédios estavam acabando comigo e que eu precisava de um gancho na minha vida”.
VOLTA POR CIMA
E foi a oportunidade que Ilza teve ao compor a chapa da associação dos moradores que fez nascer dentro dela uma nova pessoa, uma nova mulher. “Um belo dia percebi que eu precisava levantar voo e voltar à vida. Comecei a procurar um espaço, um gancho para recomeçar. Foi quando João Marcelo, presidente do bairro hoje, apareceu com a ideia de montar a chapa. Participei de uma assembleia extraordinária com ele e resolvi entrar na chapa. Ganhamos, e no dia da apresentação da nova diretoria, em dezembro de 2012, fiquei impactada com a história de um deficiente visual, Charles”.
Para a sanfoneira, ao se deparar com o cego de um olho cheio de “vida”, a consciência lhe veio à tona. “Quando vi que ele estava cuidando de um grupo de melhor de idade, fazendo a confraternização de fim de ano, fiquei impactada com a atitude daquele homem e pensei: eu estou doente?”.
“Na festa, tinha uma mulher tocando sanfona com um grupo. Pedi a ela que me deixasse fazer uma palinha com a sanfona dela. Foram cinco minutos que toquei e, ali, eu renasci e resgatei 10 anos da minha vida. Terminei aquela apresentação me sentindo uma menina. E dali, o projeto surgiu. Eu já tinha a vontade no meu coração”.
Sarau e projetos sociais, mais motivos para viver
Depois de 30 dias do momento em que Ilza conta ter “retornado à vida”, o “Sarau Raízes” já estava formado. Ela era a única mulher sanfoneira de um grupo com mais seis homens, que cantavam e tocavam outros instrumentos. Aos poucos, mais músicos foram chegando e o grupo aumentou.
Hoje, com quatro anos de formação, o projeto é realizado no Centro Comunitário do Bairro Estrela do Sul, às quintas-feiras, a partir das 19h30min, e tem como principal objetivo oferecer oportunidade para os músicos da terceira idade terem seu espaço e resgatar a música regional.
“Quando montei o projeto, já sabia que não íamos a lugar nenhum como músicos, já que somos da melhor idade. Além disso, tem músico com 300 quilos, músico safenado, manco, com marca-passo e cego”. Com o gosto pela vida de volta, Ilza começou a perder os quilos que ganhou durante os três anos em que passou trancada dentro de casa.
Atualmente, o projeto abrange mais de 250 pessoas, sendo 80% músicos. “Por ser eu uma mulher, e sozinha, exijo deles que tragam as esposas. Costumo dizer que o dia do sarau é o dia de gala delas”. Ilza considera que pode existir um entrave entre a música e um grande amor da vida. Por isso, tenta fazer esse “casamento”.
Ela conta que viveu na pele intensamente as consequências dessa inimizade. “Chegaram a fazer motim para me tirar de cima do palco. Passei por isso várias vezes. Por isso, quero zelar pelos relacionamentos”.
Um dos objetivos de Ilza é inserir a musicalização no calendário sul-mato-grossense. “Meu desejo é divulgar esses músicos, gerar renda para eles e propiciar que possam competir no mercado da música. A classe é de poder aquisitivo baixo. Eles não têm acesso a palco nem a equipamentos adequados”.
O Sarau também proporciona aula de violão, curso de reciclagem, de pintura, crochê, bordado e produtos de fabricação caseira para complementar a renda na casa do artista. “Atualmente, são 30 mulheres no curso. A ideia é que as esposas dos músicos aprendam essas artes para terem a própria renda”.
O sonho de Ilza, talvez o mais distante deles no momento, é construir um lugar para que, na velhice, o artista tenha onde se amparar: a Casa de Sobrevivência do Músico. Pelo Sarau, já passaram artistas regionalmente consagrados, como Gregório, Luciana Chamamezeira, Patricia e Adriana, Ivo de Souza, Danilo da Gaita, Lucas Monzon, entre outros.
Para o próximo ano, nos dias 5, 6 e 7 de maio, Ilza prepara a primeira edição do evento de rua chamado Chamanejo, alusivo ao dia do sertanejo, que é comemorado no dia 3 do mesmo mês. “Será tipo um carnaval de rua, mas voltado para o nosso gênero musical. Será uma maneira de chamar a atenção da sociedade para nossa cultura”. O nome é alusivo aos dois estilos musicais da região, o chamamé e o sertanejo.
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O evento está previsto para ser realizado na Esplanada Ferroviária e ela pretende arrecadar dinheiro para os cachês do músico, que terão oportunidade de mostrar o trabalho.“Assim como o Carnaval, quero que a data seja inserida no calendário sul-mato-grossense”, finaliza a sanfoneira, nascida na roça, que, apesar das peças que a vida lhe pregou, não desistiu de sonhar e agora tem como meta tornar a cultura campo-grandense valorizada.