O Seminário “Suicídio entre a população trans: Limites entre vida e morte”, o primeiro a debater o assunto com o recorte em travestis, mulheres transexuais e homens trans, reuniu cerca de 150 pessoas na tarde de sábado (30) na Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), em São Paulo. Ele contou com reflexões de especialistas, como o médico Drauzio Varella, e relatos de militantes como Daniela Andrade e Thais Azevedo.
Em mesa mediada pelo advogado Dimitri Sales, e pelas militantes Angela Lopes e Renata Peron, Drauzio declarou que o suicídio é o resultado das várias experiências de exclusão social e preconceito que a pessoa trans vive: não aceitação na família, na escola, no mercado de trabalho. E denuncia que a ausência de dados sobre esta população mostra que a sociedade em geral não se preocupa com essas vidas.
“É uma ignorância total. Não existem dados, essas pessoas sequer são contabilizadas e não conseguem ter acesso à medicina. É como se a sociedade não quisesse que essas pessoas existissem, pois não pega bem”, afirmou o médico, que teve contato com a população trans quando atendia o extinto presídio Carandiru. “Em um dos casos, uma travesti presidiária relatou a sua vida e querer um suicídio aparentou ser uma reflexão bem razoável”.
Ele disse ainda que tema do suicídio ainda é tabu porque não costumamos pensar na morte e vivemos como se fôssemos eternos.
Diversos relatos de pessoas trans foram expostos, com recorte de classe, raça, idade e região. Thais Azevedo declarou que quando era jovem os LGBT morriam por medo. “Existia uma tradição de levar os rapazes não-heterossexuais para perder a virgindade com as profissionais do sexo e muitos se matavam. Hoje, é diferente. É como se dissessem: ‘vocês não souberam aceitar e lidar comigo em vida, então lidem com a minha morte para o resto de suas vidas”.
Daniela Andrade destacou o descaso da saúde pública e os vários preconceitos que sofreu. “O meu direito a me matar não é só garantido como é incentivado nesse país, que tem durante toda a minha vida dito que eu não servia, eu não cabia, eu não estava adequada, eu tinha que mudar, eu era marginal, um simulacro de gente. Hoje estou aqui, amanhã pode ser eu a engrossar as estatísticas de suicídio entre as pessoas trans que, diga-se de passagem, inexistem oficialmente, invisível que somos no Brasil”.
Já Heitor Marconatto, que é homem trans, falou sobre o contato próximo que teve com uma mulher transexual, que cometeu suicídio. “Tentamos diversas vezes salvá-la. Inclusive, teve uma vez em que conseguimos e eu vi nos olhos dela a frustração de não ter conseguido (…) Até que ela conseguiu neste ano e, só assim, conseguiu mobilizar parte da cidade para as questões trans”.
O público também teve voz, pode tirar dúvidas e relatar as suas experiências. A cabeleireira Dêmily Nobrega (foto), natural de João Pessoa, relatou que aos 12 anos tentou se matar com medicamentos e peixeira, pois sabia que a família não aceitaria a sua transexualidade.
Neon Cunha, que é diretora de arte na Prefeitura de São Bernardo do Campo, falou sobre a vivência trans – tendo, sim, um corpo de mulher – e não um “corpo errado”, como dizem – e pedindo na Justiça o direito de mudar nome e gênero sem a necessidade de laudo ou cirurgias. Caso contrário, quer que seja permitida a sua morte assistida. “Se não me dão o direito de ter uma vida com dignidade, que ao menos permitam e reconheçam a minha morte”.
A MORTE QUE ANTECEDE O SUICÍDIO
O professor William Siqueira Peres relatou os diversos momentos em que travestis e transexuais também perdem o direito à vida antes mesmo do suicídio. E se emocionou ao relatar um momento em que uma amiga travesti chorou ao participar de um almoço em família, dizendo que não esperava ser recebida tão bem. “Vocês conseguem perceber o que esta sociedade fez com ela?”.
O jornalista Neto Lucon – da página NLucon – declarou que a mídia tende a ser transfóbica e que ainda trata as pessoas trans como “alguém que se passa por quem não é”, desrespeitando artigos, o nome social e a identidade de gênero da pessoa. Ele também destaca que o suicídio também é tabu no jornalismo, pois se entende que noticiar casos de suicídio ajuda a trazer uma série de novos casos motivados por repetição. Porém, quando se trata de suicídio de trans, a ética e abordagem são facilmente corrompidas.
Lucon anunciou que planeja ao lado da Kallango Produções, produtora que tem recorte na população trans, uma ação que visa combater o suicídio. “Temos várias ações semelhantes fora do Brasil, mas aqui ainda estamos discutindo se devemos falar ou não sobre o assunto”.
Segundo Drauzio, até mesmo a medicina tende a ignorar essa população. Ele afirmou também que no Carandiru era constantemente abordado para falar sobre questões específicas de saúde – como a de uma presidiária trans, que ficou sem hormônio e viu os seus seios murcharem – mas que não tinha conhecimento e tampouco encontrou na literatura embasamento. O médico declarou que a ciência tem lavado as mãos para discutir transexualidade e entregou para a psiquiatria. “Mas há pesquisas que mostram que, quando uma gêmea univitelina é travesti, o outro tem chance de 20% a 50% de ser também”.
REFLEXÕES
De acordo com Dimitri, o Seminário cumpriu com a missão de jogar luz, com seriedade e serenidade, “este grave problema que afeta a população trans”. “Sob a marca da transfobia e de outras formas odiosas de preconceitos, travestis, mulheres transexuais e homens trans encontram como saída única para os dilemas de uma vida marcada pela intolerância o suicídio. É preciso que tanto a sociedade civil organizada amadureça e perceba a necessidade de discutir esta questão, quanto os poderes públicos entendam que as ações de enfrentamento das discriminações transfóbicas são urgentes”.
Drauzio frisou que, sem dados que tenham recorte da população trans, fica difícil elaborar políticas públicas específicas. E também pensar nas estratégias para combater o suicídio e a motivação pelo suicídio.