No premiado documentário ‘Elena’, a cineasta mineira Petra Costa aborda um drama familiar: o suicídio da irmã mais velha que dá título ao longa-metragem. A diretora tinha 7 anos à época. Nesta entrevista, ela enfatiza a importância de quebrar o estigma que envolve esse tema e conversar sobre o assunto. “Acho importantíssimo achar lugares e pessoas com quem se possa compartilhar a dor e buscar pessoas que tiveram uma dor parecida e que poderão compreender a dimensão da sua dor”.
Saúde Plena: O que pautou a sua decisão de fazer um filme que – além de abordar um tema familiar e expor momentos de intimidade – toca num assunto que é tabu?
Petra Costa – A arte não teria sido suficiente para eu me reencontrar, ter apoio terapêutico foi muito importante. Mas a arte (e principalmente o filme ELENA) é muito prazerosa porque possibilitou que eu pudesse compartilhar e ver quanto da minha história pode ecoar na história de outras pessoas e inspirá-las a ressignificar seus traumas e memórias inconsoláveis, como a gente fala no filme. Serviu tanto para ressignificar minha própria memória, como para compartilhar e sentir o eco dela na vida dos outros.
SP: De que maneira conversar sobre suicídio ajuda os familiares e pessoas queridas de quem tirou a própria vida? O filme ajudou sua família e você?
PC – Eu fiz terapia dos 7 anos até hoje, mas nunca fiz terapia com alguém que fosse focado na questão do suicídio. Quando fui fazer o filme, entrevistei alguns sobreviventes. Particularmente uma mãe nos Estados Unidos que era líder de um grupo de apoio, que tinha perdido o filho. E quando conversei com ela, foi a primeira vez que eu falei com alguém que entendia a dor pela qual eu e minha mãe tínhamos passado, que falava a mesma língua. Se eu tivesse, naquele tempo, participado de algum grupo de apoio para crianças sobreviventes, teria feito muita diferença. Porque a gente passa por coisas muito parecidas. Primeiro, vem a culpa, depois tememos a morte dos outros (eu comecei a temer a morte da minha mãe), depois pensa que a mesma coisa vai acontecer com a gente. Ninguém me falou que isso eram respostas normais. Se eu tivesse tido uma terapia com um profissional que tivesse essa experiência, teria me poupado muito. Eu nunca falei com ninguém, até esse encontro 20 anos depois.
Acho importantíssimo achar lugares e pessoas com quem se possa compartilhar a dor e buscar pessoas que tiveram uma dor parecida e que poderão compreender a dimensão da sua dor.
SP: Quando a Elena morreu você ainda era criança. Consegue explicar qual o impacto do suicídio para uma criança? É diferente do adulto – teoricamente capaz de compreender os aspectos que envolvem essa decisão?
PC – Foi difícil para mim, por várias razões. Eu conversei pouco com alguém que entendesse o que eu tava passando quando criança. No colégio, falei uma vez, quando tinha 8 anos, e todo mundo achou horrível o fato de eu falar em Elena. Foi uma experiência traumática. Lembro também de familiares falarem para eu não chorar, porque a minha mãe já estava triste, que eu ia deixá-la mais triste. Minha mãe me deu bastante atenção, e os terapeutas também, mas eu faltou um olhar mais atento para o que eu estava sentindo.
SP: Pensando na sua experiência em si e no fato de ter refletido sobre essa experiência com um filme, você acha que poderia deixar uma mensagem para quem está passando por essa situação (o pensamento de tirar a própria vida) e também para quem é parente/amigo/companheiro de alguém que morreu assim?
PC – É difícil. Eu poderia dizer tanta coisa para quem pensa em se matar, mas ao mesmo tempo não tenho uma resposta. Mas eu diria que é importante poder compartilhar a dor, tentar buscar formas de poder falar sobre essa dor e essa angústia que levam a pessoa a pensar em se matar e tentar ter a consciência de que essa sensação de urgência vai passar. Que é cíclico, como as ondas do mar, tem momentos de ápice, mas que passam. Eu acredito que se a pessoa conseguir ultrapassar essa maré, com certeza vai ganhar em complexidade, força e dimensão humana. Eu sinto que quem passou por experiências assim, artistas principalmente, depois têm muito mais força, conseguem entender o sofrimento humano de forma mais profunda. Tem que encarar isso como desafio para uma outra fase.
Para quem está em luto, também é importante compartilhar a dor. É preciso achar espaço para digerir esse luto, deixá-lo ecoando dentro de você, e não ignorá-lo e sentir que é algo que deve ser deixado de lado e mudar de assunto. Para mim, fez muito sentido falar, escrever, criar coisas em cima desse luto e não tentar esquecê-lo. Para mim é impossível esquecer. A elaboração é a única forma de deixar isso aquietar e se transformar em potência. Quando falo que “Elena é minha memória inconsolável e que é disso que tudo nasce e dança” quero dizer que ela é um potencial inspirador que me ensina sobre a morte, portanto sobre a essência da vida.