Até o fechamento deste texto, 42 homossexuais haviam tirado a própria vida em 2017. A conta é do site “Quem a homofobia matou hoje?”. Trata-se de banco de dados virtual vinculado à associação de defesa dos direitos LGBT Grupo Gay da Bahia, que tem servido de base para um estudo acadêmico sobre o tema, liderado pelo antropólogo e doutorando da Universidade Estadual de São Paulo Renan Antônio da Silva.
Os resultados da pesquisa devem ser apresentados já no primeiro semestre de 2018, mas, em linhas gerais, mostram como a homofobia é um fator de risco ao suicídio.
“O conhecimento empodera. Um homossexual desprovido de conhecimento sobre seus direitos, sua história e a militância acaba sofrendo mais do que aquele empoderado de conhecimentos pertinentes para sua rotina, lutando por um espaço de sociabilidade e não permitindo a discriminação”, comenta o acadêmico. “Mas o fato de sofrer, muitas vezes dentro de casa, perseguição por ser homossexual causará danos negativos para tal jovem”, afirma.
Um levantamento do Grupo Gay da Bahia, cujo fundador é coautor do projeto, mostrou em 2015 que 3% dos homens homossexuais e 5% dos bissexuais já tentaram cometer suicídio no Brasil, contra 0,4% da população masculina geral brasileira. Um em cada 16 homossexuais com idades entre 16 e 24 anos tentou tirar a própria vida alguma vez, contra 1% dos homens da mesma idade.
Em setembro passado, o primeiro boletim epidemiológico do Ministério da Saúde sobre o assunto mostrou que o suicídio é a quarta principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos, e cerca de 11 mil pessoas se matam todos os anos no país. Mas a própria pasta admite o conservadorismo dos dados, porque muitos diagnósticos de causa da morte estão errados.
Risco menor em ambientes mais receptivos
No Brasil, o estudo de Silva e dos colegas é inédito, mas o assunto já é debatido há mais tempo no exterior. Uma das principais pesquisas acerca do tema é de 2012, publicada pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Os autores, na época, entrevistaram 32 mil jovens anônimos com idades entre 13 e 17 anos.
A conclusão foi de que adolescentes gays, lésbicas, bissexuais e transexuais estão cinco vezes mais propensos a tentar o suicídio, em comparação com os heterossexuais da mesma faixa etária. Ainda segundo o estudo, o ambiente também influencia as taxas: quanto mais receptivo, menores os números.
Outra análise, publicada na revista científica “Pediatrics” em 2011, mostrou que gays, lésbicas e bissexuais tinham seis vezes mais chance de tirar a própria vida, em relação a heterossexuais (21,5% contra 4,2%). O mesmo público, ainda de acordo com a pesquisa, tinha risco 20% maior de suicídio quando convivendo em ambientes hostis à sua orientação sexual, na comparação com meios menos conservadores.
“Quando uma família suspeita que um filho ou filha tem tendências homossexuais, todos os recursos são acionados para corrigir e curar a indesejada ‘anormalidade’. Podem ser surras, broncas, idas a psicólogos, psiquiatras, igrejas, sessões de descarrego, etc.”, lista o antropólogo Renan Antônio da Silva. “Sendo assim, muitos homossexuais escondem seus sentimentos e atividades, por medo de reprovação ou de violência por parte da sociedade e de seus familiares”, comenta.
Prestes a publicar os resultados do seu levantamento, o pesquisador conversou com o Metrópoles sobre o assunto. Para ele, embasamentos acadêmicos pouco valem se o respeito e o combate à homofobia não forem efetivos. “Respeito é vivenciar o outro com toda a dignidade”, ele diz. Leia mais abaixo:
Além da homofobia, qual a origem da depressão em jovens homossexuais?
A noção de uma sexualidade normal – cujo desvio, a depravação, é definida como “contra a natureza” – encontra sua base na concepção teológica de uma Natureza Humana. Essa posição filosófica foi incorporada à tradição judaico-cristã acrescida da ideia de pecado e passou a constituir as bases dos valores morais da cultura ocidental.
Sempre que a sexualidade desvia da finalidade primeira, natural e universal que a referência animal nos mostra – união de dois órgãos sexuais diferentes para a preservação da espécie –, estamos diante de uma ‘perversão’, ou seja, de uma ‘prática sexual contra a natureza’: pedofilia, masturbação, heterossexualidade sem fim de procriação, homossexualidade, sodomia…”
A psiquiatria clássica, surgida no século 19, dá continuidade às posições teológicas e jurídicas com esse viés. Por outro lado, alega: aqueles que têm práticas sexuais contra a natureza devem ser tratados e não punidos. O que é penal passa a ser da ordem médica. Algumas práticas sexuais são então qualificadas de “patológicas”. Isso tudo leva os jovens homossexuais para o fundo do poço, pois são cercados por pensamentos a seu respeito como “pecaminosos e imorais”.
Os médicos e psicólogos estão preparados para lidar, orientar e tratar essa população que, segundo os números, é mais propensa ao suicídio?
Os médicos, psicólogos e psiquiatras estão preparados para tratar qualquer tipo de distúrbios mentais, mas minha preocupação, infelizmente, são as ondas que querem colocar a homossexualidade como “doença”, gerando tratamentos que só vão servir para o real adoecimento dos pseudo-pacientes.
Você diz que, para esses jovens, se assumir para os pais já é um fator de risco associado ao suicídio. Qual o papel da família nesse momento da vida dos filhos?
Quando uma família suspeita que um filho ou filha tem tendências homossexuais, todos os recursos são acionados para corrigir e curar a indesejada “anormalidade”: podem ser surras, broncas, idas a psicólogos, psiquiatras, igrejas, sessões de descarrego, etc. Sendo assim, muitos homossexuais escondem seus sentimentos e atividades, por medo de reprovação ou de violência por parte da sociedade e de seus familiares, sentindo-se, muitas vezes, “excluídos”.
Como em todo momento de mudança, a realidade de hoje guarda várias contradições. Ao mesmo tempo em que vemos e convivemos, cada dia mais, com uma diversidade sexual mais rica e menos rotulada, ainda existem atitudes preconceituosas, discriminatórias e violentas de pessoas, grupos e instituições conservadoras. Esse embate entre o novo e o conservador, entre a conquista dos direitos e a repressão, se dá em todo o corpo social. Na família, em especial, os pais sofrem com uma realidade inesperada [quando o filho se assume]. Uma conversa franca e sincera inibe, e muito, atos suicidas – que destroem todo o vínculo afetivo e social.
Você acredita que, pela comum falta de apoio dentro de casa, esse público está ainda mais próximo do suicídio, em relação a outras minorias?
Sim. Nos últimos anos, alguns tabus foram por água abaixo, como a concepção de que homossexuais não poderiam adotar. Desde 1984, quando a “homossexualidade” foi retirada [internacionalmente] do rol das doenças, o argumento de que a taxa de suicídio de jovens gays é maior que a de heterossexuais deixou de respaldar práticas abusivas, como tratamentos psiquiátricos. A melhor notícia parece ser a censura social: hoje em dia, é politicamente incorreto defender qualquer causa que se mostre preconceituosa. Se a discriminação racial e a de gênero já são crimes, por que não a homofobia?
Como abrir um diálogo com o filho ou o amigo sobre o assunto?
O pensamento social conservador permanece tão forte que a homossexualidade, transexualidade ou a travestilidade ainda sofrem com a visão da anormalidade, e o mais preocupante é pessoas que expressam essas sexualidades, tão rotuladas e estereotipadas, também se considerarem anormais. É necessário buscar nessas pessoas, as quais muitas vezes sofrem no silêncio, uma voz e vez para se abrirem.
Que fatores expõem mais esse jovem à depressão do que os heterossexuais?
O conhecimento empodera. Um homossexual desprovido de conhecimento sobre os seus direitos, sobre a sua história, sobre a militância, acaba por sofrer mais do que aquele empoderado de conhecimentos pertinentes para sua rotina do dia a dia, lutando por um espaço de sociabilidade e não permitindo as expressões da discriminação. Mas o fato de sofrer perseguição por ser homossexual, muitas vezes dentro de casa, causará danos negativos para tal jovem.
No seu livro mais recente, você discute a educação de gênero e iniciativas feministas. A publicação vem em um momento sensível ao tema, quando se discute a inclusão ou não do tema na grade escolar. Você acredita que ensinar sobre gênero e sexualidade pode ser uma maneira de baixar as estatísticas de suicídio?
Damos força para qualquer preconceito quando o temos em nosso interior, mesmo camuflado. O ensino minimiza qualquer tipo de preconceito, mas o convívio social em ambientes nos quais o respeito não é bem-vindo deturpa qualquer sentimento de bondade e aceitação. Sempre digo, em minhas palestras, que títulos acadêmicos, livros publicados e outras formas de obtenção de conhecimento são meios duvidosos para se conquistar mentes abertas, as quais buscam valorizar o diferente. Respeito é vivenciar o outro com toda dignidade pela qual lutamos individualmente.