“Cheguei sem esperança alguma e saí de lá carregando uma semente de esperança no coração.”
Oito anos atrás, Sarah* entrou pela porta da frente do Maytree, o primeiro “santuário para pessoas suicidas” no Reino Unido.
Ela passou quatro noites e cinco dias expondo seus pensamentos mais tenebrosos aos voluntários ali presentes. Era um momento em que ela não via razão para continuar vivendo.
Aquela estadia curta transformou sua vida.
Depois de deixar a casa, Sarah conheceu o amor de sua vida, mudou-se para Nova York e conseguiu emprego novo. Recentemente, deu à luz seu primeiro filho.
A diretora da Maytree, Natalie Howarth, comenta, emocionada: “Acho que pôr uma vida nova no mundo, quando alguns anos atrás você estava pensando em pôr fim à sua própria vida, é uma coisa muito forte”.
Vista por fora, Maytree é uma casa como outra qualquer, numa rua comum da zona norte de Londres. Na realidade, quando fui para lá, passei pela casa sem nem perceber. Mas, quando ouço Howarth contar mais histórias como a de Sarah, percebo que as pessoas que trabalham nesta casa modesta estão realizando coisas extraordinárias.
Desde que abriu suas portas a homens e mulheres prestes a cometer suicídio, 14 anos atrás, a Maytree já recebeu mais de 1.300 hóspedes. Desde então, pelo que Howarth sabe, apenas sete dessas pessoas acabaram por se matar.
“Enquanto estão aqui, os hóspedes têm um espaço para descansar, refletir e falar livremente sobre os sentimentos e emoções sofridos com que se debatem”, explica a diretora. Estamos sentadas em uma das salas de estar da casa.
“Não damos conselhos às pessoas e não tentamos ‘resolver’ nada.
Por isso, muita gente me pergunta: ‘O que diabos vocês fazem, afinal?’”
“Fazemos algo que acho que é bastante difícil para um ser humano dar a outro: ficamos sentados com uma pessoa que está vivendo um momento realmente tenebroso. Não a julgamos. E manifestamos empatia e preocupação por ela.”
A casa já serviu de abrigo temporário para pessoas de todas as origens sociais e profissões, incluindo agentes de condicional, professores, médicos e desempregados. Qualquer pessoa que esteja tendo pensamentos suicidas pode contatar a equipe da Maytree pelo telefone ou por e-mail e combinar um encontro inicial.
Depois disso, a pessoa é convidada para uma estadia única e gratuita de cinco dias na casa.
“Sempre me perguntam: ‘Como é a cara de um suicida?’. Eu digo: ‘O suicida parece você, eu, seu vizinho, seu amigo’. O suicídio afeta todo o mundo”, diz Howarth.
Ela chegou à direção da Maytree em 2011, depois de passar anos trabalhando no setor voluntário, mas o conceito foi idealizado por Paddy Bazeley e Michael Knight, que Howarth descreve como “dois rebeldes corajosos” que tinham trabalhado anteriormente com a organização Samaritans (entidade beneficente britânica que dá apoio a pessoas que correm o risco de suicídio).
Bazeley e Knight viram a necessidade de alguma coisa que preenchesse o vazio entre o serviço de atendimento telefônico a pessoas com pensamentos suicidas e a internação hospitalar. Quando a Samaritans disse que não tinha condições de abrir um abrigo desse tipo, os dois decidiram criá-lo por conta própria.
Maytree é muito diferente de uma enfermaria hospitalar. Além do clima de calma e paz, há o som familiar de uma máquina de lavar funcionando na casa. Há toalhas felpudas e roupas de cama brancas em cada um dos quatro quartos para hóspedes, e nos fundos da casa há um jardim pequeno e tranquilo.
“Temos botões de alarme em cada quarto. Desse modo, se o hóspede estiver sofrendo muito à noite, por exemplo repassando coisas na cabeça, sem conseguir dormir ou se sentindo muito vulnerável, basta apertar o botão e um dos voluntários que estiver de plantão virá dar uma olhada e ver como ele está”, explicou Howarth.
“Se for o caso, o voluntário o levará para a cozinha, fará um chá e ficará conversando com ele até as 2h ou até a hora que for – até a pessoa se sentir bem o suficiente para voltar para a cama.”
Materiais de limpeza, tesouras e facas ficam trancados quando os funcionários da casa não os estão usando, e todas as janelas têm traves, de modo que só podem ser abertas até determinada altura.
Televisão, rádio e internet não são permitidos na casa, para dar aos hóspedes a oportunidade de refletir realmente, sem distrações. O entretenimento que há é feito de quebra-cabeças e jogos de tabuleiro à moda antiga.
“Foi preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre criar um ambiente seguro e aconchegante, de lar – quanto menos clínico, melhor -, mas também reduzir o acesso a ferramentas e objetos com os quais as pessoas poderiam se ferir”, diz Howarth.
O conceito pode soar simples, mas funciona. A Dra. Pooky Knightsmith se hospedou em Maytree em fevereiro de 2016 e conta que saiu da casa tendo redescoberto a esperança.
“Eu morria de medo de ir para lá, mas senti que não tinha alternativa”, ela conta. “Eu já não sentia confiança em poder chegar até o dia seguinte em segurança. Queria ir para algum lugar onde eu pudesse me sentir em segurança por alguns dias e dar uma folga à minha família.”
Knightsmith disse que a quebra com sua rotina, somada à “gentileza incondicional” dos profissionais de Maytree, a ajudaram a visualizar uma escolha diferente para sua vida.
“Ninguém esperava nada de mim, então o sentimento de culpa por eu não ser a esposa, mãe, amiga ou funcionária que eu achava que devia ser era aliviado por alguns dias”, ela diz.
“Houve inúmeras coisinhas que ajudaram. Eu poderia ficar falando disso por horas. Mas o principal é que não é como se eu tivesse chegado lá doente e saído saudável. Cheguei lá sem esperança alguma e saí carregando uma sementinha de esperança e a compreensão de que, com muito esforço e deixando que me dessem apoio, eu poderia encontrar um caminho para avançar.”
Uma das coisas mais surpreendentes de Maytree é que as pessoas que trabalham ali são quase todas voluntárias. Elas fazem um treinamento aprofundado de seis semanas, antes de poderem interagir com os hóspedes. Alguns dos voluntários perderam entes queridos que se suicidaram ou já ficaram na casa anteriormente, eles próprios, como hóspedes.
“O fato de que muitos voluntários tinham experiência em primeira mão de nutrir sentimentos suicidas, e o fato de agora estarem se virando bem no dia a dia, era tremendamente inspirador”, comenta Knightsmith.
“Não eram exemplos perfeitos de pessoas que tinham vidas incríveis. Eram pessoas normais, honestas, com empregos um pouco chatos, pessoas que vivem em casas desarrumadas, com aquecedores prestes a quebrar. Pessoas normais que em dado momento sentiram mais vontade de morrer que de viver, mas essa proporção se inverteu. Isso me fez acreditar que também comigo ela poderia se inverter.”
Hoje a casa tem 103 voluntários e nove funcionários assalariados. Pode parecer muito, mas, como a casa funciona 24 horas por dia, 365 dias por ano, Howarth está sempre à procura de mais pessoas para ajudar no trabalho.
Não existe um dia típico em Maytree, mas os voluntários geralmente dividem seu tempo entre tarefas domésticas, como a cozinha e a faxina, atender o telefone, responder a e-mails de possíveis hóspedes e “fazer amizade” com os hóspedes atuais.
Uma pessoa que já dedicou horas de seu tempo ajudando na casa é Dave Bain, que começou a trabalhar como voluntário quando era estudante de psicoterapia. Cinco anos mais tarde, ele continua a trabalhar aqui.
“É um privilégio poder acompanhar alguém que passa por uma transformação tão grande em apenas cinco dias”, ele diz.
“Trabalhar aqui às vezes é difícil, mas, por outro lado, é profundamente recompensador.”
Bain insiste que a vida na casa não é feita apenas de sofrimento e angústia. Na realidade, as conversas com os hóspedes podem até ser sobre coisas como futebol.
“Muitas das pessoas que chegam aqui vivem muito isoladas. Às vezes elas estão há três, quatro ou seis meses sem falar com ninguém”, ele explica.
“Você simplesmente encontra uma pessoa em um nível muito humano e reconhece a humanidade dela, assim como ela reconhece a sua. E às vezes isso tem um efeito poderoso.”
Para Bain e os outros voluntários, cuidar da própria saúde mental é tão importante quanto ajudar a melhorar o bem-estar mental dos voluntários.
Eles perguntam uns aos outros sempre como estão. Trabalham em equipe, para que seja mais fácil perceber quando alguém está precisando de uma folga.
“Nós aqui trabalhamos muito no momento presente”, diz Bain. “Quando entro por aquela porta, minha própria vida e todas as outras coisas ficam lá fora. Minha atenção fica focada aqui dentro.
“E é muito importante que, quando você sai no final do dia, não leve com você aquilo que ficou ouvindo naquele dia.”
Está claro que voluntários como Bain estão fazendo uma diferença positiva enorme na vida de pessoas. Há obras de arte espalhadas pela casa que hóspedes passados criaram para dizer “obrigado”, e Howard guarda um tesouro de cartas de familiares agradecidos.
“Uma carta que recebemos foi de um garotinho cujo pai passou uns dias aqui conosco. Era uma cartinha escrita em giz de cera. O menino tinha só uns 5 ou 6 anos”, diz Howarth.
“A carta dizia: ‘Querida Maytree, obrigado por fazer meu pai ficar bom de novo, agora ele brinca comigo’.”
Ouvir relatos como esses me provoca reações ambíguas. Não consigo deixar de me sentir indignada porque Maytree é o único abrigo desse tipo em todo o país.
À medida que a casa vem ficando mais conhecida, graças a seu envolvimento com documentários, incluindo “Professor Greene: Suicide and Me”, a equipe vem sendo inundada de ligações de potenciais hóspedes.
E é pouco provável que a demanda por vagas diminua no futuro próximo. As cifras mais recentes mostram que o suicídio ainda é a maior causa de morte de homens de até 45 anos no Reino Unido; 2.997 homens se mataram em 2015. Infelizmente, o número de mulheres que se suicidam no país também está aumentando constantemente; 902 mulheres morreram de suicídio em 2015, contra 832 em 2014.
Está mais que evidente que os serviços de saúde mental no país precisam de mais apoio. Mas há uma falta grave de verbas para o setor.
As doenças mentais representam 28% dos custos totais incorridos com doenças no Reino Unido a cada ano. Apesar disso, apenas 13% do orçamento do NHS (Serviço Nacional de Saúde) é dedicado a elas.
A Maytree funciona graças a financiamento de entidades como a Loteria Nacional britânica e a ONG beneficente Comic Relief, além de doações públicas. Howarth espera que uma segunda Maytree seja aberta nos próximos dois anos, esta na zona sul de Londres.
Mas o plano já ficou parado outra vez no passado devido à falta de recursos, então não existem garantias.
É claro que uma maneira de reduzir a sobrecarga de Maytree seria reduzir o número de pessoas, especialmente homens, que chegam ao ponto de querer cometer suicídio.
Howarth acha que um dos fatores que contribuem para os números preocupantes é a relutância dos homens em se abrirem sobre sua saúde mental.
“Pode ser uma generalização, mas os homens em geral têm grande dificuldade em falar de seus próprios sentimentos, porque eles se pautam mais pela lógica. E eles têm menos probabilidade de procurar ajuda. As mulheres têm mais probabilidade de conversar com suas amigas sobre como se sentem e de procurar o médico”, diz ela.
“Acho que isso tem muito a ver com a educação e a sociedade – a expectativa de que os homens devem aguentar tudo, dar conta de tudo, encarar os golpes da vida e não se abalar.”
Com campanhas de conscientização sobre saúde mental, como Time to Change e Heads Together, ganhando atenção crescente, Howarth tem a esperança de que a próxima geração de jovens, homens e mulheres, saiba falar abertamente sobre sua saúde mental, antes de chegar a um momento de crise.
Por enquanto, porém, está claro que ainda é preciso trabalhar muito para acabar com o estigma que cerca os problemas de saúde mental e romper o muro de silêncio que cerca o suicídio.
“Ainda há pessoas na sociedade que encaram o suicídio como um ato de tremendo egoísmo e pessoas que o veem como pecado –acham que a vida não nos pertence e que não temos o direito de acabar com ela”, fala Howarth.
“Então imagine que você se sente isolada e tem pensamentos suicidas, mas que sua comunidade julga os suicidas tão mal. O que você pode fazer? Com quem pode conversar?”
Os funcionários e voluntários da Maytree podem garantir refúgio seguro para quatro pessoas a qualquer dia, pessoas para quem a estadia na casa pode representar uma transformação em suas vidas.
Considerando o número muito grande de pessoas que chegaram à casa prestes a cometer suicídio e saíram de lá sentindo esperança no futuro, está claro que a casa é um modelo que funciona.
Com o número de suicídios aumentando, é imperativo que o governo, os serviços sociais ou as prefeituras sigam o exemplo da Maytree, procurando maneiras alternativas de aprimorar os serviços de saúde mental.
Os funcionários e voluntários da Maytree puderam ajudar algumas poucas pessoas de sorte, mas não têm como ajudar a todos.
Para saber mais sobre a Maytree, entre no site da casa na Internet ou entre em contato pelo e-mail: [email protected] ou, ainda, pelo telefone: 020 7263 7070. Veja abaixo alguns links e telefones que podem ser úteis.
http://www.brasilpost.com.br/2016/06/23/santuario-suicidios_n_10600418.html