Depressão e suicídio são como sombras que pairam sobre o glamour e o ideal da carreira médica. Até bem pouco tempo, quase nada se falava sobre isto, desde o momento em que o jovem estudante se debruça sobre os ideais para realizar seus sonhos até o desenrolar de seu trabalho, confrontando com uma realidade bem diferente daquilo que imaginara. As dificuldades para exercer seu trabalho, como condições precárias e excesso de carga horária (muitas vezes correndo de um hospital para outro e daí para seu consultório particular) vão se acumulando ao longo do tempo, testando sua capacidade de resistência, ao mesmo tempo em que elevam sua ansiedade até que o nível de estresse o leve às frustrações diante de tantas decepções.
Além disto, o sentimento de onipotência e a aura de semideus são minados pela consciência de que o Médico é um ser humano normal como qualquer outro profissional, que tem sua vida particular, muitas vezes esquecida pelo seu compromisso com a Medicina e a saúde do próximo. E com frases que martelam o cérebro em um torvelinho de angústia: “Doutor, minha vida está em suas mãos”, “Eu não posso morrer agora, Doutor, tenho duas filhas para criar, por favor, me salva”… E nem todas as vidas em declínio ele poderá reter com sua sabedoria, esforços, dedicação e ciência médica. Tem se revelado difícil para o médico assumir que necessita de ajuda, optando na grande maioria das vezes pela automedicação que tanto condena o uso pelos pacientes.
Em seu artigo “Um alerta – Depressão e suicídio entre médicos estagiários e residentes”, o médico Meraldo Zisman revelou que o “suicídio entre os médicos é uma ocorrência comum. Segundo a Fundação Americana para a Prevenção do Suicídio, 300 a 400 médicos cometem suicídio a cada ano, cerca de 1 médico por dia. A formação médica envolve inúmeros fatores de risco para a doença/distúrbios mentais, tais como transição de papéis, diminuição do sono, traumas, mortes, doenças, tragédias e muitos outros acontecimentos inerentes à sua vida profissional”. Além da depressão e do suicídio, a falta de cuidado com a saúde mental do profissional da Medicina apresenta outro fator de preocupação: a dependência química.
Em seu livro “Médico como Paciente”, a autora Alexandrina Meleiro, doutora em Psiquiatria, ressalta que, no Brasil, a discussão ainda engatinha, enquanto a categoria apresenta uma alta taxa de incidência nos três fatores como consequência da automedicação. Em 2004, a Escola Paulista de Medicina divulgou o “Perfil Clínico e Demográfico de Médicos com Dependência Química”, trabalho realizado por sua Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Unifesp) ao coletar informações de 198 médicos em tratamento ambulatorial por uso nocivo e dependência química. Conforme o estudo, os médicos apresentam taxas similares de uso nocivo e dependência de substâncias em relação à população geral, com a incidência variando entre 8% e 14%.
Alexandrina Meleiro afirma que a utilização de opióides (anestésicos derivados da morfina) é motivo de suicídio principalmente entre os anestesistas. O uso frequente e a dependência de opióides e de BZD ou benzodiazepínicos (os medicamentos conhecidos popularmente como tranquilizantes de tarja preta) pelos médicos ultrapassa em cerca de cinco vezes o uso pela população como um todo. Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), coordenadora da Comissão de Estudos e Prevenção de Suicídio da ABP e membro do Grupo de Atenção da Saúde Mental do Médico, ela destaca que “os médicos se suicidam cinco vezes mais que a população geral”, constatando-se que os mais vulneráveis estão na faixa etária de 35 a 50 anos.
Dentre os 198 médicos acompanhados no estudo da Unifesp, as drogas mais consumidas, abrangendo dependência e uso nocivo foram, pela ordem: álcool, cocaína, BZD, maconha, opiáceos, anfetaminas e solventes. Profissionais de Clínica Médica ficaram disparados na liderança, seguidos pelos da Anestesiologia e da Cirurgia, que empataram em segundo, com boa distância para os demais: Pediatria, Ginecologia, Psiquiatria, Saúde Pública, Radiologia e demais especialidades.
Coordenador da Comissão de Atenção à Saúde Mental dos Médicos e membro emérito da Academia Mineira de Medicina, o psiquiatra José Raimundo da Silva Lippi enfatiza que as pessoas podem alcançar um elevado nível intelectual, mas também apresentar um estado emocional de grande fragilidade. “A saúde mental é um estado que vai sendo alcançado através da capacidade que o ser humano tem de tolerar níveis cada vez maiores de tensões e de frustrações. O homem saudável não é aquele que vence as frustrações, porque elas não são elimináveis, mas sim o que tolera bem os níveis de decepção”, explica. Ele foi o idealizador e coordenador da I Jornada Brasileira de Saúde Mental dos Médicos, realizada de 28 a 30 de março do ano passado em Nova Lima (MG).
Sua advertência é de que, se a pessoa não procurar ajuda imediata, quando o estresse ultrapassar o limite de resistência, a ansiedade pode evoluir perigosamente para o suicídio. Os sinais (insônia, dormir mal, perda de apetite ou fome exagerada, diarreia), que podem parecer suportáveis para uma pessoa normal, podem ensejar o caminho da queda para quem estiver com fissuras em seu equilíbrio emocional. Para ele, os profissionais precisam esquecer o lado onipotente e assumir a fraqueza humana, deixando de lado a vergonha para buscar a ajuda que necessita.
“Nenhum médico é obrigado a saber toda a Medicina, os colegas estão aí para isso”, destaca, acrescentando que a depressão é a doença mental mais comum entre os médicos, inclusive entre os psiquiatras: E rejeita a automedicação: “Todos são suscetíveis a patologias de ordem mental, principalmente aqueles que não se cuidam. É importante lembrar que o remédio cuida do sintoma, mas as causas precisam de atenção na psicoterapia. O médico pode ser um bom ‘receitador’, mas se não souber o que o cliente tem, não vai resolver o problema”. Para José Raimundo da Silva Lippi, a facilidade de acesso aos anestésicos derivados da morfina funciona como porta de entrada para a dependência química entre os profissionais: “Drogas medicinais que só são encontradas em hospitais, principalmente as medicações usadas em anestesia, aparecem como solução para o alívio de tensão”.
A depressão lidera os diagnósticos mais encontrados, seguida de transtorno afetivo bipolar e transtornos de personalidade. A relação detectada pelos pesquisadores apresenta depois: esquizofrenia e transtorno de ansiedade generalizada. Dentre as situações facilitadoras para dependência de drogas, o “Perfil Clínico e Demográfico de Médicos com Dependência Química” relacionou:
-Acesso fácil aos medicamentos
-Perda do tabu em relação a injeções
-História familiar de dependência
-Problemas emocionais
-Estresse no trabalho e em casa
-Busca de emoções fortes
-Autoadministração no tratamento para dor e para o humor
-Fadiga crônica
-Onipotência e padrão de prescrição exagerada
-Os de especialidade de alto risco (Anestesiologia, Emergência e Psiquiatria).