Quando as pessoas chegam a um grupo de apoio na zona sul de São Paulo, carregam consigo não apenas uma imensa tristeza, mas também culpa e diversas perguntas.
“Por que isso aconteceu? Como eu não percebi nada? Será que pode acontecer de novo com a minha família?” são os questionamentos mais comuns entre quem acaba de perder uma pessoa querida para o suicídio.
“É um luto mais intenso, duradouro, repleto de ‘por quês’ e com muito estigma”, relata a psicóloga Karen Scavacini, mediadora do grupo de apoio, destinado a pessoas enlutadas pelo suicídio. “Muitas vezes a família estendida e os amigos se afastam ou não sabem como falar do tema, deixando essas pessoas em situação de grande vulnerabilidade.”
Essa vulnerabilidade se reflete no fato de que parentes e pessoas próximas de suicidas têm risco até dez vezes maior do que o restante da população de, eles próprios, tentarem tirar a própria vida.
E isso só será mitigado, segundo especialistas consultados pela BBC News Brasil, se a sociedade combater o estigma que envolve o suicídio e a saúde mental, bem como deixar de buscar “a causa” ou “o culpado” pela morte – que é multicausal e às vezes decidida de modo impulsivo, em um momento de desespero.
‘Não vamos encontrar causas’
“No grupo de apoio, dizemos que não adianta ficar preso na busca do ‘por quê?’, já que a resposta foi embora com quem morreu”, explica Scavacini.
“Na verdade, a gente não vai encontrar causas, porque o suicídio é sempre resultado de um conjunto de fatores”, afirma o psiquiatra Daniel Martins de Barros, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC).
Segundo a Organização Mundial da Saúde, quase 800 mil mortes por suicídio ocorrem anualmente no mundo, o que equivale a uma morte a cada 40 segundos. No Brasil, foram registrados 11,7 mil suicídios em 2015 (dado mais recente disponível no Ministério da Saúde), sendo que parte dos especialistas teme que haja subnotificações.
E, segundo a Associação Internacional de Prevenção ao Suicídio, cada morte por suicídio afeta outras 135 pessoas, que ficam psicologicamente abaladas e traumatizadas.
Como ajudar essas pessoas a lidar com tamanha dor?
‘Você se sente muito isolado’
A escritora e psicanalista Paula Fontenelle sentiu na pele o estigma que envolve suicídio quando seu pai tirou a própria vida, em 2005.
“Ninguém sabe como falar com você a respeito, então, simplesmente, ninguém fala nada. O luto acaba sendo muito diferente por causa disso”, conta Fontenelle à BBC News Brasil.
“Você se sente muito isolado. Certa vez, uma amiga me perguntou a causa da morte do meu pai e, quando eu respondi que era suicídio, ela ficou chocada. ‘Não fale essa palavra em público, não é bom’. As pessoas têm medo. O problema é que é no silêncio que o suicídio cresce. Porque nenhuma dor diminui se você não tiver com quem falar sobre ela.”
A franqueza em falar sobre o assunto e a empatia são, de fato, cruciais ao amparar pessoas de luto pelo suicídio, segundo Barros, do IPq-HC.
“É um momento de compartilhar a dor, oferecer o ombro e não evitar a pessoa enlutada. Em casos de mortes trágicas, às vezes a gente acha melhor não falar nada, mas isso é mais para evitar o nosso próprio mal-estar em torno da morte. Porque, para a pessoa enlutada, falar a respeito pode ser um alívio”, diz o psiquiatra.
“É preciso ainda fazer um grande esforço para não atribuir culpas – por exemplo, combatendo o pensamento automático de ‘Como será que era o relacionamento com os pais daquele jovem que se matou?’, porque ao se tentar atribuir uma causa, você estigmatiza as pessoas (envolvidas) e aumenta o risco de contágio do suicídio.”
Direito ao luto
Para além da família, amigos e pessoas próximas ao morto também requerem atenção especial, porque também estão extremamente vulneráveis.
“Consideramos sobreviventes do suicídio quaisquer pessoas que tenham sentido aquela morte de alguma forma”, explica Scavacini.
“Até um chefe ou um colega de trabalho (de um suicida) pode ficar abalado ou sentir-se culpado, talvez até igual a um parente. Essas pessoas também estão sujeitas ao efeito contágio (ou seja, a elas próprias pensarem em suicídio) e não adianta simplesmente dizer a elas ‘não se deixe abater’. Elas também têm de ter permissão de fazer seu luto.”
“Aprendi que não podemos colocar as coisas debaixo do tapete”, diz Paula Fontenelle, a respeito do luto pela morte do pai. “Na minha família, sempre conversamos sobre o tema, para ele não virar tabu. E sempre chamamos o suicídio pelo que ele é.”
O mesmo vale para crianças e adolescentes – expostas, por exemplo, ao suicídio de colegas, em casos que ganharam as manchetes em São Paulo e Brasília recentemente.
Em muitos casos, é a primeira vez que eles se deparam com a morte.
“Com adolescentes, é preciso explicar o que é o luto e os sentimentos envolvidos, bem como ensiná-los a identificar em si mesmos e nos amigos o que não está legal e quem procurar nessas situações”, afirma Scavacini.
Nessa faixa etária, é ainda mais crucial reforçar os vínculos pessoais, em vez de apenas os digitais.
“As relações estão mais líquidas hoje”, lamenta o psiquiatra Fabio Gomes de Matos e Souza, coordenador do Programa de Apoio à Vida (Pravida) da Universidade Federal do Ceará (UFC). “Existe (entre adolescentes) uma ausência de espaços para desabafar e conversar, em vez de apenas olhar a ‘revista digital’ do Instagram, onde você não vê quem está mal ou sofrendo, porque essas pessoas estão sozinhas em seus quartos.”
As fases do luto – e como lidar com ele
Em seu esforço para entender e processar a perda do pai, Fontenelle passou anos estudando o suicídio, pesquisa que levou ao livro Suicídio – O Futuro Interrompido: Guia para Sobreviventes e ao site prevencaosuicidio.blog.br.
“Ao estudar o luto, identifiquei que ele tem fases, que começam com a raiva, muito intensa: ‘como ele/ela fez isso comigo?’ É um mecanismo de proteção, por ser mais fácil lidar com a raiva do que com a tristeza. Mas é algo que obviamente te consome. Já conheci enlutados pelo suicídio que passaram anos presos a isso”, conta.
Depois, vem o que se costuma chamar de “autópsia psicológica”: a busca das pessoas por tentar entender as causas ou o que suportamente poderiam ter feito para evitar aquela morte. É o “Como eu não enxerguei?”
“Claro que é possível ficar atento a sinais de comportamento suicida, mas não temos como saber antes (que a pessoa vai se matar). Ninguém é culpado”, diz Fontenelle.
Em seguida vêm o estigma em torno da morte suicida e o medo: “será que eu ou algum outro parente meu também pode ser levado a cometer suicídio?”
“É que, quando alguém se mata, o suicídio, que até então era algo distante, passa a ser uma possibilidade para as pessoas ao redor”, agrega Fontenelle.
No grupo de apoio mediado por Karen Scavacini, a maioria dos participantes ao longo dos anos já mencionou ter tido, em algum momento do luto, vontade de morrer, em geral abalados pela culpa.
“Tentamos fazê-los entender que o suicídio é multifatorial e que nem sempre os sinais são fáceis de ler – muitas vezes, só são visíveis após a morte”, diz a psicóloga.
A maioria dos casos de suicídio costumam estar associados a problemas de saúde mental (diagnosticados ou não), como depressão, ansiedade e bipolaridade, o que torna importante conversar a respeito e focar em prevenção. Mas, depois de ocorrido o suicídio, especialistas consideram infrutífera a busca por causas individuais.
“Talvez aquele paciente estivesse com depressão, mas não era só aquilo – afinal, há milhões de pessoas deprimidas que não se matam. Por trás de cada suicídio, há muitas coisas que não sabemos e nunca saberemos”, diz Barros.
Grupos de apoio, terapia e conversas ajudam ao mostrar aos sobreviventes que a raiva faz parte do luto, que outras pessoas passam por situações parecidas, que a morte da pessoa querida “estava além do que eles poderiam fazer e que o suicídio não é uma escolha livre, mas sim um ato de um momento de muito desespero e dor”, afirma Scavacini.
No grupo de apoio mediado por ela, há atividades terapêuticas como escrever histórias sobre o luto e a pessoa perdida ou produzir murais de fotos para honrar a vida de quem morreu.
Muitos, como Paula Fontenelle, acabam encontrando conforto ao se dedicar a criar conscientização em torno do tema.
“Escrever um livro sobre isso foi catártico para mim, foi parte do meu processo de cura, ainda que tenha sido muito difícil – levei três anos para escrevê-lo e o interrompi duas vezes”, diz ela. “(Mas) eu precisava entender o que havia acontecido com o meu pai.”
Aos poucos, as pessoas também passam a identificar o que lhes faz bem ou mal – voltar a frequentar eventos sociais e familiares, por exemplo – “sem que nada seja considerado certo ou errado e sem que seja esperado um determinado comportamento delas”, agrega Scavacini.
“E eles precisam aprender que podem voltar a ser felizes, mesmo que o processo seja lento. O suicídio é como um tsunami, que destrói tudo. Mas dá para fazer uma reconstrução da vida. Haverá um antes e um depois, mas é possível ser feliz.”
* O Centro de Valorização da Vida (CVV) dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Se você está em busca de ajuda, ligue para 188 (número gratuito) ou acesse www.cvv.org.br. (Até 30 de junho de 2018, o CVV atende pessoas de Maranhão, Bahia, Pará e Paraná no número 141; após essa data, o atendimento ao país inteiro migrará para o 188.)
*O Instituto Vita Alere tem grupos gratuitos de apoio a sobreviventes de suicídio em São Paulo, Baixada Santista e Rio de Janeiro: www.vitaalere.com.br