O mês de setembro foi dedicado à prevenção do suicídio, tema motivado pelas estatísticas alarmantes e pelo silêncio que paira em torno desse fenômeno. Existem várias condições situacionais, subjetivas e sociais que determinam uma falta de horizontes de existência na vida de uma pessoa. Entre os grupos vulneráveis, estão os grupos minorizados: velhos, crianças, desempregados, pobres, vítimas de desenraizamento cultural forçado (povos nativos no Brasil, expulsos de sua própria terra, são um exemplo lamentavelmente), violências de gênero e raciais.
A questão do sofrimento psíquico, que é vivida solitariamente, precisa implicar a nós todos coletivamente, por meio do fortalecimento de laços comunitários e de redes de apoio onde sofrer emocionalmente não seja “coisa de louco”, mas coisa de gente que está aí, que é afetada pela experiência do mundo.
Quando pautamos nesse espaço a desconstrução da estereotipia de raça, estamos falando de um problema político e também de um problema psicológico. Afinal, ela atinge o psiquismo de quem é estereotipado e interioriza percepções negativas a respeito da própria competência e da viabilidade de ser desejado. E, ao mesmo tempo, daquele que estereotipa, pois quando um sujeito fixa aquilo que o indivíduo de um grupo diferente do seu é, e pode ser, fica impedida a formação de verdadeiras conexões amorosas, onde alteridade e particularidade deveriam ser consideradas.
A subjetividade dos asiáticos no Brasil foi marcada por rupturas em diferentes momentos históricos: interdição da entrada de chineses e japoneses em função do ideal de branqueamento na política imigratória do país, racismo antiamarelo institucionalizado pelo Estado e restrição de direitos civis, impactos na assimilação à nova cultura nos diversos grupos asiáticos, cujas condições de estabelecimento foram diversas, recente emigração dos nipodescendentes ao Japão e constatação em muitos de não pertencer culturalmente, nem como cidadãos integrais à terra de origem, entre outras.
As pessoas biculturais, em quaisquer contextos, passam por stress ao lidarem com escolhas pessoais entre valores conflitantes (por exemplo, “você tem que falar o que pensa e sabe!” X “não se destaque no grupo, seja discreto!”) em muitas áreas da vida: vocacional, familiar, amorosa… No caso dos brasileiros asiáticos, aliás, estamos falando de culturas de origem onde a existência se dá justamente pelo pertencimento ao grupo. Uma identidade étnica fortalecida, que diz respeito aos sentimentos e laços compartilhados de língua, raça, ancestralidade e cultura, que organizam nossa compreensão individual da realidade, está ligada ao bem-estar psicossocial, desempenho escolar e profissional.
E quando no meio em que se está acontece uma valorização desigual na integração dos elementos culturais de origem e do novo contexto?
Nos dias atuais, o racismo tem formas complexas e se expressa através de mecanismos bastante sofisticados – mais indiretos, ambíguos, dissimulados. Derald Sue, psicólogo intercultural de ascendência chinesa nos EUA, publicou pesquisas acerca da experiência de americanos asiáticos com as microagressões raciais, que são ataques sobre a identidade e a autoestima, intencionais ou não, que variam de atos de discriminação agressivos a incidentes menores no cotidiano, sofridos repetidamente por membros de grupos étnicos minoritários na sociedade (ter um traço de seu fenótipo ridicularizado, ou seu estilo cultural de comunicação intuitiva e menos verbal interpretada como desinteressada e ser excluído por um professor, só para citar alguns). Podem gerar sentimentos de irritação, raiva, ameaça, desconsideração. Sutis, mas altamente nocivos, trazem desgaste e frustração que podem perdurar. Demandam desafios de percepção e comportamento: a pessoa precisa avaliar se ocorreram e decidir como reagir a eles.
Que dilema! Como respondo, dada a rapidez de um flash do assalto sofrido? Quando a microagressão vem de um conhecido, como lidar com o mal-estar, a acusação de hipersensível, o abalo numa relação significativa?
Tenho observado que muitos estudiosos das relações raciais insistem em afirmar que, no caso dos amarelos, minoria bem sucedida, a sociedade reage à diferença com um estranhamento natural, mas não com racismo. Com esse ponto cego, acabam contribuindo para a invisibilidade de sofrimentos coletivos contundentes constatados largamente pelo grupo asiático e que geram graus variáveis de angústia: de não fazer parte, existir numa espécie de limbo, não ser visto como sujeito, viver entre lugares, desespero e confusão de identidade. Ficamos sem proteção, negligenciados nas discussões, nas pesquisas e nas intervenções sobre discriminação e saúde mental. O discurso dominante revela um orientalismo incrustado que conserva o asiático no imaginário da estrangeirice distante, incidindo inclusive numa estereotipia: é expresso sem ouvir experiências heterogêneas de um mesmo grupo, sem considerar como operam na vivencia dos amarelos determinados gaps na articulação linguística e no domínio do discurso dentro da estrutura social, citando-se por vezes a amiga japonesa de longa data, a vizinha coreana, algum caso anedótico. Ou então, ressalta-se o caráter positivo de ser considerado estrangeiro no Brasil. Ora, mas para gerações que sente falta de raízes remotas, a demanda é pertencer a esse solo, em que semeamos já nossas casas e sementes.
O mito da minoria modelo produz idealização e paranoia na relação com os asiáticos, duas faces de um mesmo mecanismo que se alternam. Provoca uma armadilha, inclusive, para os próprios asiáticos, em sua heterogeneidade ocultada: os que são de classes mais baixas, os que são de gerações recentes, tendem a se envergonharem, e a se rebelarem respectivamente com a imagem de perfeitos e melhores, com a ideologia do esforço e da meritocracia, rejeitando com isso, porém, a própria cultura e seus saberes. A fim de cabermos no ideal pouco flexível da sociedade, da família, refletido em nós mesmos, e assim sermos amados, adoecemos, mas nos desumanizamos quando ficam interditados em nós sinais de falta de performance pessoal, raiva ou descontrole emocional.
Decifrando alguns enigmas… É numa postura empática e curiosa que se deve ver e escutar com bastante atenção os companheiros de outras raças ou etnias a respeito de suas vivencias e queixas envolvendo preconceito. Mesmo amigos, movidos por sentimento de culpa e sem consciência, costumam reagir com negação, amenizando os conflitos. O que é ruim, pois impede o reconhecimento dessas vivências, perpetuando uma dinâmica inadequada. Essa falta de ressonância é relatada comumente por pessoas não-brancas a respeito das relações psicoterapêuticas, principalmente quando o status do psicólogo ou do psiquiatra é superior nas hierarquias de gênero, raça e classe social. Cabe ao profissional ler os discursos e ideologias a que estão servindo: “Como responder de modo a auxiliar efetivamente e eticamente?” Quando as reações do oprimido são explicadas exclusivamente em termos de sua personalidade, cultura e história familiar, a pessoa revive uma solidão, impedindo-se, entre outras coisas, a possibilidade de enfrentamento político. Se por um lado o enfrentamento psicológico tem a ver com o contato, o reconhecimento, o cuidado e o amadurecimento da dor interna. A outra faceta é o fortalecimento dos laços de identificação e de resistência na luta coletiva dos grupos oprimidos.
Ou seja, não estamos sozinhas/os…
Dar visibilidade ao sofrimento e a algumas possibilidades de acolhimento é uma maneira de desconstruir certos tabus. Que histórias e afetos têm sido produzidos nas experiências pessoais de asiáticos no Brasil?
Laura Ueno é psicoterapeuta intercultural. Nipodescendente, viveu desde cedo conflitos de lugar e pertencimento entre suas mudanças entre Brasil e Japão. Arte, amizade e pesquisa sobre relacionamentos interétnicos são recursos que lhe trazem importantes conexões. Atende em consultório em SP e pelo Consulta do Bem. contato: [email protected]
Referências:
Centro de Valorização da Vida
Dantas, Sylvia; Ueno, Laura; Leifert, Gabriela & Suguiura, Marcos (2011). Identidade, migração e suas dimensões psicossociais. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, 18 (34).
Sue, Derald W. et. al (2007). Racial Microaggressions and the Asian American Experience. Cultural Diversity and Ethnic Minority Psychology, 13 (1)