Grupos de apoio aos amigos e familiares de suicidas
A notícia é triste e urgente: o suicídio tem aumentado no Brasil e no mundo. Segundo a OMS – Organização Mundial da Saúde, a taxa subiu 60% nos últimos 45 anos. Essa realidade chama atenção não só para a necessidade de se trabalhar sua prevenção em todas as esferas, inclusive na saúde pública, mas também chama para um conceito ainda recente no nosso país, o deposvenção do suicídio, que seria a intervenção após o ocorrido, ou seja, o tratamento dos enlutados por morte devido ao suicídio.
A psicóloga e psicoterapeuta Karen Scavacini é a primeira brasileira a levantar sua bandeira e se especializar nesse conceito, originalmente criado pelo psicólogo americano Edwin Shneidman (1918 – 2009).
Segundo ela, esse tipo de luto difere-se dos demais e deve ser tratado com a especificidade que merece. Ela diz que se o psicólogo não tiver treinamento sobre os componentes do luto por suicídio, poderá confundi-lo com depressão e não trabalhá-lo da forma mais correta. Ele seria diferente em sua intensidade, duração e no impacto que tem no sistema familiar. Há um sentimento de rejeição, de responsabilidade e de julgamento que não necessariamente ocorre nos outros lutos. A culpabilização da família e dos amigos, por não terem percebido sinais, por exemplo, é muito grande. E segundo Karen, nem sempre há sinais claros. É possível uma família ser pega completamente de surpresa. Muitos desses sinais só farão sentido depois da morte e podem ser indiretos, difíceis de codificar.
“A dor do luto não pode ser quantificada, mas o impacto da perda por suicídio é maior. É um tsunami devastador. A forma como a família vai lidar com esse luto será muito singular e vai depender de como ela se relaciona entre si e seu conceito sobre o suicídio”, afirma Karen. A proibição do tema, que acaba virando um segredo familiar, também prejudica sua compreensão. “Quanto mais proibido ele fica, mais difícil de as pessoas poderem dar um sentido, mesmo que próprio, para essa perda”.
O tratamento de posvenção também deve ser levado às escolas, para minimizar o trauma dos colegas daquele aluno que se matou e evitar o suicídio por imitação. Karen diz que é indicado falar a respeito com naturalidade, mas evitar romantizar o ocorrido ou dar detalhes desnecessários.
Ela diz acreditar que o suicídio tem aumentado em função da observação clínica que sua profissão lhe permite fazer. Além de receber mais pacientes com tendências suicidas em seu consultório, notou o aumento de mais enlutados em função dele também. Nos congressos, Karen pergunta a seus colegas se observam a mesma realidade e ela afirma que todos, inevitavelmente, confirmam que sim.
E por quê? Para ela, as pessoas não estão conseguindo lidar com suas frustrações e não veem esperança e saídas para os problemas que encontram. O aumento seria um reflexo da sociedade contemporânea – indivíduos mais solitários e com maior dificuldade de se relacionar, de ter uma rede de apoio real e física. “Os contatos estão mais superficiais e menos genuínos. As pessoas não se encontram mais pessoalmente. O encontro virtual muitas vezes é ilusório”, afirma Karen.
Segundo a psicóloga, as redes sociais podem ter aspectos negativos, por naturalmente propiciarem uma comparação da sua vida com a do outro e daí concluir-se que sua vida não é tão legal assim, e como consequência, sentirem-se mais isoladas e menos felizes do que o outro. O bullying seria altamente prejudicial e um desafio a ser controlado, já que adolescentes têm menos consciência dos desdobramentos de seus atos e a velocidade da internet não permite “voltar atrás”.
Ao mesmo tempo, Karen afirma que é possível encontrar uma boa fonte de apoio no mundo virtual. “Ele prejudica e, ao mesmo tempo, ajuda. Vai depender da forma como o enlutado se relaciona”, ela afirma.
Ela indica dois mitos que contribuem para o aumento de sua ocorrência.
1) “Quem fala não faz” – essa desqualificação do pedido de socorro não ajuda em nada. E é comum o suicida avisar antes de cometer o ato.
2) “Não deve se perguntar sobre o pensamento suicida” – esse mito parte do pressuposto de que não se deve perguntar para uma pessoa cronicamente deprimida, por exemplo, se ela pensa em se matar. É um mito prejudicial porque, na maioria das vezes, o que ela mais quer é falar a respeito, o que segundo Karen, é o melhor remédio para a prevenção. “O interesse genuíno e a empatia têm um efeito curativo”, afirma.
Fundadora do Instituto Vita Alere, Karen faz a mediação de um grupo de enlutados por suicídio que se reúne a cada dois meses. “A ideia principal do grupo é ser um local de pertencimento, para que o outro sinta-se acolhido e possa dividir sua história”, afirma Karen. Contar sobre o ocorrido funcionaria como uma catarse – descrever como aconteceu, qual foi o último momento com aquela pessoa, se viu sinais ou não e tirar dúvidas.
“A dor é tão profunda que às vezes as pessoas acham que estão enlouquecendo de dor. É muito comum haver problemas de sono e crises de choro durante o dia e pensam no suicídio o tempo inteiro. Encontrar pessoas que passam por isso é muito benéfico, assim como ver como lidaram com datas difíceis, como o Natal, o aniversário de um ano da perda, etc”, diz Karen.
Karen quer abrir um grupo de discussão para terapeutas que muitas vezes precisam falar sobre como lidar com essa questão com seus pacientes. “Quanto mais você puder falar, mais você consegue elaborar”, ela afirma.
Outro grupo de apoio aos enlutados por suicídio é o do CVV.
O CVV – Centro de Valorização da Vida – é uma ONG fundada em 1962, formada essencialmente por voluntários, que se ocupa da missão de contribuir para a prevenção do suicídio. Disponibilizam diversos canais de comunicação para suporte: chat, Skype 24 horas, e-mail, linha telefônica e atendimento presencial. Toda primeira quarta-feira de cada mês, organizam o encontro de um grupo de familiares e amigos de pessoas que cometeram o suicídio. O grupo faz um ano em agosto.
Na cartilha do CVV “Falando abertamente sobre o suicídio”, afirma-se que 32 pessoas comentem o suicídio por dia no Brasil, e a cada 45 minutos, 1 brasileiro tira a própria vida e a cada 40 segundos uma pessoa se mata no mundo. Mas essa realidade pode ser mudada, porque segundo o CVV, o suicídio é possível de ser prevenido.
Segundo Tino Perez, facilitador do grupo, pode-se preveni-lo ao reparar na pessoa, observar os sinais, conversar e procurar ajuda médica.
Tino afirma que cada pessoa que se suicida impacta profundamente a vida de outras seis, em média. Ele observa algumas características comuns a esse luto: o sentimento de culpa, por achar que poderia ter feito mais para prevenir o ato, procurar motivos do ocorrido, principalmente nos casos em que o suicida parecia bem e não dava sinais aparentes de seu tormento. Há também o sentimento de raiva de quem foi embora, com sensação de abandono e impotência, ou ódio, por deixar o outro em situação de desamparo, como ter que explicar para um filho pequeno que um dos pais se suicidou.
“Não há receitas prontas sobre como lidar com essa dor, cada dor é única, mas os semelhantes podem se confortar ao ver como o outro está lidando com essa questão”, afirma Tino.
Assim como Karen, Tino também diferencia o luto por suicídio dos demais. Ele seria um luto permanente, seguido do questionamento do porquê a pessoa escolheu morrer.
Ele diz que as taxas do suicídio têm aumentado devido a algumas características do mundo contemporâneo, como o estresse e a cobrança nos jovens para serem bem sucedidos. Também haveria uma intolerância a certas preferências, como a homossexualidade. Ele afirma que o governo precisa começar a dar suporte para as questões emocionais do cidadão: “Dizem que em 2020 a depressão será a doença do século e o governo deve começar a prestar atenção nisso, ajudar nos tratamentos e, principalmente, na compra de remédios, que são muito caros”, diz Tino.
Ivo Oliveira Farias já participou desses dois grupos. Há um ano, encontrou sua filha de dezoito anos enforcada na varanda de casa. Ela deixou um bilhete terminado com algo como “gente morta não decepciona ninguém”. Ele diz que há uma série de possíveis justificativas para seu ato, mas nada concreto. Conversei com Ivo por telefone tentando entender como esses grupos poderiam ajudar na sua dor. Pouco consegui de informação sobre o funcionamento do grupo em si, até pela questão sigilosa do encontro, mas o relato extensivo de Ivo comprovou o que Karen e Tino mencionaram: é muito importante falar a respeito e, talvez, necessário.
“Sou um guerreiro, encaro todas as lutas da vida, e essa é uma luta pela minha vida e pela dos meus familiares sobreviventes”, afirma Ivo. Para sobreviver, como ele diz, procura se fortalecer. Uma forma é se aprofundar em conhecimentos sobre o tema.
Ivo diz que os dados sobre o suicídio são alarmantes, como 32 pessoas se matarem por dia. Mas eles seriam baseados apenas em dados oficiais, o que indica que os dados reais são muito maiores. Muitos suicídios não são registrados como tal e não contribuem para as estatísticas, como em caso de acidentes de trânsito. Sua filha teve “morte por sufocamento” e não se mencionou o suicídio nos registros.
Ele diz que tem visto nos grupos que frequenta que o luto por suicídio “crucifica o sobrevivente. Ele não suaviza com o tempo como normalmente ocorre com os outros lutos, ao contrário, só aumenta. Ele toma conta da nossa cabeça a todo instante. É saber que a pessoa que você ama preferiu ir embora por sua própria vontade. Ela abdicou da vida e preferiu morrer a ter que continuar convivendo com você. Por mais que entendemos que foi uma decisão dela, a gente se sente responsável. É um misto de culpa e responsabilidade”, ele diz.
Para ventilar a dor, Ivo não chora, ele grita. “Não é grito histérico, é um grito rouco, abafado e grave. Ele é estranho, mas não assusta muito”, diz Ivo ao pensar se as pessoas o escutam na rua, quando se abaixa para gritar em seu carro.
Oficial de Justiça Federal, Ivo tem visto muitos suicídios na sua categoria, que tem os salários congelados há nove anos, segundo ele. Um dos motivos para essa realidade seriam dívidas e inadimplência.
Ele se policia para não entrar em depressão. Como termômetro, Ivo pensa no nascer e pôr do sol, e no cantar dos pássaros. “O dia em que não os perceber mais, vou acender o sinal amarelo, de atenção”.
Os grupos são importantes porque são um ponto de apoio. “Vale a pena porque eu considero uma oportunidade preciosa para inclusive ouvir as histórias dos outros e saber que não sou o único que lida com essa dor. Não estamos sozinhos. Isso me dá mais força para eu me resignar com essa condição”. Ivo pausa e finaliza, “a empatia é uma troca, você ajuda e é ajudado”.
Serviço
Encontros do CVV
Quando? O próximo será hoje – 3 de junho. Ocorre toda primeira quarta feira do mês.
Onde? Rua Abolição, 411 – Centro – São Paulo
Que horas? das 19:30 às 21:30 hs.
Quanto? Gratuito
Anônimo? São grupos abertos, anônimos e sigilosos.
Contato: Tino: (011) 98318-9663. E-mail: [email protected]
Novo Hamburgo – Rio Grande do Sul: O CVV também organiza um grupo em Novo Hamburgo, que ocorre toda a primeira terça feira do mês, das 19h30 às 21h30 na rua Almirante, 261 (Plenarinho da Câmara Municial). Contatos: 51-9236-7971 / e-mail: [email protected]
Encontros do Instituto Vita Alere
Quando? O próximo será no dia 16 de junho. Ocorre a cada dois meses.
Onde? Espaço Natureza do Ser – Alameda Uananá, 200 – Moema – SP
Que horas? Das 19h30 às 21h.
Quanto? Gratuito.
Anônimo? Sim. Sigiloso também. Não é necessário inscrição prévia.
Contato: [email protected] / (11) 5084-3568.
Vão começar a fazer em breve grupos virtuais.
“Campo de Trigo com Corvos” (1890) – de Vincent Van Gogh. Segundo a versão mais popular sobre sua morte, esse teria sido o último quadro que pintou antes de cometer o suicídio.