Desde que idealizou e começou a apresentar a peça “Processo de Conscerto do Desejo” (assim mesmo, com sc), sobre o suicídio de sua mãe, o ator Matheus Nachtergaele tem notado que as pessoas ficam preocupadas com ele. “Todo mundo fica muito impressionado quando eu falo disso com tranquilidade. Me perguntam: ‘Mas você está bem? Como é que você aguenta?'”, diz o ator à repórter Letícia Mori em uma lanchonete nos Jardins, em SP.
Aos 47 anos, ele conta que, de alguma forma, o tema da morte da mãe se transformou em trabalho –tem uma música, um público, um horário. “Apesar de ser um texto extremamente íntimo, a montagem é como para qualquer outro espetáculo. Horas de preparação de texto, de voz. Minha grande preocupação é não atuar de forma neurótica, como uma espécie de autoajuda pra mim mesmo”, afirma.
“Não quero alegrar o que foi triste, essa não é minha seara. Mas as coisas ruins eu resolvo na análise. No teatro, eu quero uma celebração do que mamãe deixou de bonito e do que ela deixou de vivo -as lembranças que as pessoas tiveram dela, os poemas e um filho”, diz, apontando pra si mesmo.
Ele fala gesticulando, como se recitasse poesia, e sem tirar o sorriso dos lábios. Diz que o suicídio não precisa ser um tabu. “É uma grande dificuldade lidar com isso porque, pra família, é como se fosse uma espécie de falha, um fracasso. Muitas religiões ainda veem como um pecado. Acredito que é um serviço que eu presto, falar disso abertamente.”
Diz que o ato é, em última instância, um direito. “Sou filho de uma suicida, se não achar isso estou perdido. Mas claro que a gente vai fazer de tudo para evitar que a tristeza chegue nesse ponto.” E diz que, até hoje, não entende de suicídio. “Acho que ninguém entende, né?”
“Na minha família durante muitos anos a gente não pôde falar sobre a morte da mamãe, mesmo depois que me deram a notícia.” Ficou sabendo aos 16 anos. Seu pai lhe entregou os poemas que Cecília fez antes de tirar a própria vida, em 1968, quando Matheus tinha três meses. “Até então, quando eu perguntava, [a resposta] era ‘ah, é complicado’ ou ‘um dia explico melhor’.”
Pelos poemas, vislumbra que ela tenha desistido da vida pela tristeza e melancolia que sentia. “Mas ninguém imaginava, ninguém esperava. Foi um choque”, afirma. Sobre a própria morte, diz que lida com ela como a maioria das pessoas. “Eu a evito”, afirma, rindo.
Com montagem de baixo orçamento, o monólogo foi criado no improviso, sem patrocínio, em um teatro pequeno do Rio. “Apostei na bilheteria. Ninguém da produção dependia disso, me deram muito apoio. Eram duas apresentações durante a semana. Depois voltávamos para nossas atividades.” Só mais tarde conseguiu apoio do Itaú por meio de leis de incentivo.
No começo ele não sabia se iria só recitar os poemas ou fazer algo “mais candomblesco”. Decidiu por incorporar a mãe, usando um vestido. “Resolvi fazer a gira”, diz, brincando. Impressões do público e de amigos foram ajudando a moldar o espetáculo para que não ficasse muito pra baixo. “Um amigo levou uma amiga e disse que ela saiu de lá meio mal. Então fui mudando algumas coisas.”
Seu pai assistiu só quando a peça chegou a São Paulo. “Achei que ele ia ficar muito triste, mas não, ele ficou emocionado, não deprê”, diz o ator, que chamou Jean Pierre Nachtergaele para dançar no palco no fim da apresentação. “Precisamos fazer uma celebração do que é possível diante de uma tragédia. Quero que seja emocionante, mas que termine com um sorriso.”