O sorriso da escrivã Maristela Duenhas, responsável pelo cartório de registro de suicídios da Delegacia de Proteção à Pessoa de Curitiba, contrasta com o ambiente tenso e agitado de qualquer distrito policial. Na pequena sala, cercada de processos e arquivos, ela exerce múltiplas funções: servidora pública, psicóloga, mãe, advogada, conselheira, ouvidora e até orientadora espiritual. “Os familiares e amigos dos suicidas quando chegam aqui estão fragilizados, desesperados. Eu tento acalmá-los, ouvi-los, mas não posso perder o foco.”
Graduada em Pedagogia e Direito e há oito anos na função, Duenhas sabe que, além da dor, os parentes e amigos trazem consigo muitas dúvidas e o peso de uma culpa nem sempre real. Ou tentam encontrar um motivo responsável pela atitude violenta de quem tirou a própria vida. “Procuro aliviar esse sentimento de culpa. Os familiares sempre acham que poderiam ter evitado e buscam os próprios erros. Converso, ouço e tento mostrar que ninguém tem culpa.”
Apesar do drama, a escrivã diz ter criado uma espécie de “divisória de vidro” para não se envolver emocionalmente. “Sinto a angústia, o desespero, mas não posso ultrapassar os meus limites. Como poderei ajudá-los se não mantiver o equilíbrio?”
Adepta da doutrina espírita, Duenhas tem uma visão muito particular da vida no “plano terrestre”. Encara a morte com naturalidade e tenta transmitir essa perspectiva a quem a procura: “A vida é apenas uma passagem obrigatória que temos de cumprir. A morte é parte desse processo”. Essa compreensão espiritual, acredita, ameniza a dor da tragédia. “Familiares de suicidas adeptos do espiritismo costumam ter uma visão menos desesperadora. Sentem a dor da perda, mas conseguem entender sob outro prisma.”
Em média, são registrados oficialmente em Curitiba dez suicídios por mês. O método mais usual é o enforcamento, seguido por armas de fogo. O número de mortes entre jovens, afirma a escrivã, tem aumentado. “Atualmente, 30% têm menos de 25 anos.” Um ponto comum entre os suicidas é o uso de drogas lícitas ou ilícitas. A depressão, a esquizofrenia e o alcoolismo são verificados principalmente entre os mais velhos.
Os mais jovens, pelo relato de familiares e amigos, normalmente usam crack ou cocaína. De uns anos para cá, um fator tem aparecido com maior frequência entre os jovens suicidas do sexo masculino: a questão de gênero. A não aceitação da homossexualidade por pais e familiares motiva o suicídio entre jovens e adolescentes.
Duenhas recorda-se de três casos nos quais os suicidas sobreviveram. Um jovem de 22 anos, filho de um médico que havia se matado, relatou não ter conseguido manter qualquer tipo de relacionamento afetivo. Não entendia os mistérios da vida e, consequentemente, faltava-lhe uma razão para viver. Após a tentativa frustrada, o rapaz, conta a escrivã, encontrou um objetivo: formar-se em medicina para auxiliar pacientes com problemas emocionais.
Outro, na faixa dos 50 anos, tentou se enforcar. Relatou ouvir “vozes de comando que o incentivavam a tirar a própria vida”. Era depressivo e sobrevivia sob efeito de medicamentos. Foi socorrido por um portador de deficiência. Os dois admitiram que a sobrevivência os fez repensar a existência.
A rotina de dores e dramas não tira o humor da escrivã. Sobre a mesa de trabalho, analisa mais um relatório para ser encaminhado à Justiça. Uma mulher de 46 anos, depressiva, se suicidara havia três dias por overdose de remédios. Não fora a primeira tentativa. “Não consigo encontrar uma razão. Precisamos nos reeducar e mudar nossos valores. O mundo tornou-se demasiadamente materialista.”
Após algumas anotações, Duenhas dobra o processo e o devolve à prateleira. São milhares de folhas de papéis que descrevem em detalhes os últimos momentos das vidas que se foram. Quem se importa? “Algumas famílias insistem para eu não escrever no laudo que a causa da morte foi suicídio. Isso não muda absolutamente nada.” Da sala da escrivã, os autos seguem os trâmites burocráticos até mofar, esquecidos, em um arquivo qualquer. São histórias que não deixam saudade, somente marcas e cicatrizes profundas na existência de quem sobrevive.
A vida, frágil e inexplicável, continua.