Segundo dados da OMS (Organização Mundial da Saúde), no mundo, a cada 40 segundos, uma pessoa se suicida. Ainda assim, quase não se fala sobre o tema. “É um tabu. Tanto a sociedade quanto os sobreviventes do suicídio têm dificuldade em falar do assunto. Tirar a própria vida é um contrassenso em relação a tudo o que normalmente buscamos em nossa existência”, explica a psicóloga Valéria Tinoco, do Instituto Quatro Estações, especializado em luto, em São Paulo.
Quem enfrenta a perda costuma ter culpa, vergonha, fracasso e até raiva. “É importante que o enlutado entenda que o suicida estava adoecido emocionalmente e que procure encontrar um significado para o que aconteceu”, diz a especialista. Veja, a seguir, três depoimentos de pessoas que perderam entes queridos para o suicídio:
Kátia Maria de Fátima Arantes, 58, aposentada, Rio de Janeiro (RJ)
“Meu filho Daniel tinha 25 anos quando se matou, em casa, com um tiro, no dia 23 de agosto de 2001. Morávamos eu, meu marido (hoje ex), minha filha de 15 anos e minha avó de 88 anos. O Daniel era fruto de um casamento anterior, mas foi criado pelo meu segundo marido, pois o pai biológico dele sempre foi ausente. Éramos uma família feliz. Daniel, no entanto, já havia tentado o suicídio antes, ingerindo remédios. Apesar de ser deprimido desde a infância, estava passando por acompanhamento com uma psicóloga e uma psiquiatra. Além disso, era recém-formado em Psicologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Isso nos dava uma falsa tranquilidade. Na hora em que meu marido ligou para avisar o que tinha acontecido, tive forças para tomar um calmante e consegui chegar em casa. Meu corpo ficou sem coordenação, como se eu tivesse tido um AVC. Do meu emocional, não sobrou nada. Nessa situação, você não encontra saída, pois a morte é a única coisa que não tem volta. Nos primeiros meses, às vezes, eu dava com a cabeça na parede de tanto desespero. Tive muito apoio dos meus irmãos, do meu cunhado, dos professores e dos colegas do curso de Direito que eu fazia. Eles não deixaram que eu trancasse a faculdade e me formei no final de 2001. Minha filha amadureceu dez anos em um com a perda e o trauma. Foi ela que encontrou o irmão após o acontecido. Hoje, depois de mais de 14 anos, tenho momentos de alegria, mas a angústia da falta nunca passou. Perder um filho é perder a continuidade da sua família, perder todos os descendentes que poderiam vir, é perder o futuro, os netos e os bisnetos. Acho que o tabu a respeito do suicídio começa quando se fala em doença mental. No entanto, são problemas que acontecem em quase todas as famílias.”
Júlio César de Moura Nunes, 25, motoboy, Extremoz (RN)
“Meu irmão Paulo Vitor se matou quando tinha 25 anos. Era casado e trabalhava como técnico em informática. Foi no dia 1º de julho de 2009. Sabíamos que ele tinha depressão, mas já havia sido tratado. Um dia, ele saiu de moto como se fosse trabalhar. No meio do caminho, ligou para minha mãe e meu pai chorando, avisando que ia pular da ponte Milton Navarro (atração turística de Natal, sobre o rio Potengi). Ligou também para a polícia, avisando onde deixaria a moto e o capacete. Soube pela minha cunhada, que era mulher dele na época. Fiquei desnorteado, sem saber o que fazer. Andava pela casa e ficava pensando nos meus pais. Acho que todo mundo se sentiu um pouco culpado. Por que deixamos ele sair? Ele era estudioso e trabalhador. Cursou Filosofia na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). Vivia me dando conselhos: não beba demais, não use drogas, estude, tenha um trabalho. Hoje, não sou muito de falar sobre isso, pois é doloroso. Lembro dele e tenho muita saudade, pois ele cuidava de mim. Na virada do ano, minha mãe estava aqui em casa e, quando me abraçou para desejar feliz Ano-Novo, falou: ‘Tenho tanta saudade do seu irmão’. Disse para ela ter um pouco de paciência, pois, um dia, todos vamos nos encontrar de novo.”
Patricia Fanteza, 44, empresária, Rio de Janeiro (RJ)
“Perdi meu pai, Jorge, há 20 anos, quando ele tinha 52 e eu, 24. Ele foi até a casa da mãe dele, que havia falecido uns seis meses antes, ligou o gás do forno e fechou a cozinha. Ele era uma pessoa amorosa, presente, benquista por todos. Não era aparentemente depressivo, mas não falava muito sobre as próprias emoções, era reservado. Em 1995, me casei e fui morar em Santa Catarina. Três dias depois, recebi por telefone a informação de que ele tinha falecido. Por algum motivo, pude sentir isso. Meu ex-marido atendeu e perguntei para ele: ‘Meu pai morreu, não?’. Depois, soube pela minha mãe que, três dias antes do suicídio, ele estava mais recolhido, deitado e sem vontade de sair do quarto. Na noite em que tirou a própria vida, chegou a ligar para dois tios meus. Um deles era mais próximo, mas não pôde atendê-lo naquele momento. Jamais saberemos se a ligação era um pedido de ajuda. Eu me lembro de que, no início, tinha vergonha de falar a verdade na cidade pequena onde morava. Dizia que meu pai teve um infarto fulminante. Chorava dia e noite, foi muito difícil aceitar. Um dia, meu ex-marido falou: ‘O que posso fazer para não te ver triste desse jeito?’. E eu respondi: ‘Só queria dez minutos com meu pai, para dar um beijo nele e abraçá-lo’. Nesse dia, fui dormir chorando e sonhei com ele. Cerca de um ano depois, em uma noite de tristeza profunda, vi na TV uma propaganda do CVV (Centro de Valorização da Vida), entidade que oferece serviço gratuito de apoio emocional, feito por voluntários. Liguei e foi um alívio. Finalmente, falava com alguém que me ouvia de maneira neutra, carinhosa e respeitosa, sem me vitimizar, nem julgar. Alguns dias depois, voltei para o Rio e acabei me tornando voluntária também.”