AUSTRÁLIA
Especialistas indicam que crianças aborígenes abaixo dos 14 anos de idade estão nove vezes mais suscetíveis do que a restante população a acabar com a vida.
“Quando é que se deve dizer basta? O que é que é preciso para nos tirar desta complacência? Quantas mais mortes desnecessárias vão ser precisas para nos mostrar que a Austrália indígena está a atravessar uma profunda crise?”
Assim escreveu esta quarta-feira Stan Grant, editor do “The Guardian Australia” para os assuntos da comunidade indígena, em reação ao aparente suicídio de uma menina de 10 anos na remota vila de Looma, no oeste do país.
O corpo da criança, cuja identidade não foi revelada, foi encontrado na vila da região de Kimberly este domingo, mas só agora é que o caso está a ganhar expressão internacional. Foi o 19.º suicídio de indígenas australianos desde dezembro.
“Foi totalmente inesperado e abalou a comunidade”, disse aos media o sargento Neville Rip, do departamento de Looma, explicando que a vida da “adorável menina” foi manchada por “traumas e tragédias”.
“Tinha acabado de assistir ao suicídio de outro membro próximo da família, sobre o qual não posso falar”, explicou Helen Morton, ministra da Austrália Ocidental responsável pela proteção de crianças. “As circunstâncias desta pequena criança e o nível de danos e trauma acumulados que ela experienciou na sua curta vida são substanciais.”
De acordo com os media australianos, os pais da menina vivem a centenas de quilómetros de Looma, para onde a criança se mudou após a morte da sua irmã mais velha. O caso chocou as autoridades do país, com o ministro dos Assuntos Indígenas Nigel Scullion a dizer-se “profundamente triste” com a notícia. “Isto vem reforçar o nosso empenho em fazer tudo o que pudermos para prevenir suicídios e o enorme sofrimento que causam às famílias e comunidades.”
“NÃO FOI A MAIS NOVA A SUICIDAR-SE”
No final do ano passado, o ministério dirigido por Scullion tinha anunciado um pacote de um milhão de dólares australianos (cerca de 680 mil euros) atribuído aos serviços de prevenção de suicídios indígenas, numa derradeira tentativa de combater a elevada taxa de suicídios entre as comunidades aborígenes australianas. O dinheiro está a ser investido em viagens de psicólogos e outros especialistas às zonas mais remotas do oeste australiano para acompanharem e aconselharem as famílias e comunidades em luto. De acordo com um censos de 2011, existem cerca de 670 mil indígenas australianos, correspondente a 3% da população total.
A taxa de suicídios entre aborígenes é tão alta que o caso denunciado esta semana não é o mais chocante. “Não é a criança mais nova que já vi a cometer suicídio”, disse à BBC Gerry Georgatos, investigador da área de prevenção de suicídios, que trabalha com as comunidades indígenas do país. “É uma tragédia e uma abominação. É preciso muito para levar uma pessoa tão jovem a desistir tão cedo.” Segundo Georgatos, as crianças aborígenes com 14 anos de idade ou menos são nove vezes mais propensas a cometer suicídio em comparação com a população geral da Austrália.
Ao “The Guardian”, o mesmo investigador explica que é importante não ignorar os impactos desta onda de suicídios nas comunidades e famílias afetadas. Numa das 16 viagens que já fez às partes mais remotas do oeste australiano, Georgatos ajudou a “enterrar três crianças em cinco dias”.
Em outubro de 2014, o suicídio de Peter Little, um menino de 11 anos da região de Geraldton, levou o governo australiano a anunciar um programa de prevenção de suicídios no valor de 26 milhões de dólares australianos (quase 18 milhões de euros), mas até agora os frutos positivos desse programa continuam por colher.
Nos últimos anos, o criticismo aos sucessivos governos australianos tem ressurgido em força, sobretudo depois de em março de 2015 ter sido divulgado um documento secreto, datado de 2010 e posto a circular interinamente pelo governo conservador de Tony Abbott, que assumiu funções em 2013. Nele eram detalhados planos para expulsar e encerrar 192 dos 287 comunidades aborígenes remotas do oeste australiano.
Especialistas como Pat Dudgeon, que dirige um programa de saúde mental para estas comunidades, dizem que o governo deve parar de tratar os indígenas como cidadãos de segunda categoria e confiar neles para gerirem os seus problemas.
No seu artigo de opinião desta semana no “The Guardian Australia”, Grant, ele próprio de ascendência aborígene, lembra que as comunidades indígenas da Austrália estão “diretamente ligadas ao negrume do nosso passado”, quando “as terras foram expropriadas” e lhes foram “negados direitos fundamentais que pertencem a toda a humanidade”.
No mesmo texto Grant questiona a dureza que os indígenas enfrentam e que levam uma criança “que devia estar a brincar com bonecas” a tirar a sua própria vida. “Dez anos de idade. Pensem nisto. Filha de alguém. Uma criança que chegou a este mundo com a alegria de todos os recém-nascidos. Uma criança que sorriu, que disse as suas primeiras palavras, que disse ‘mãe’ e ‘pai’. Uma criança que gargalhou, que deu os primeiros passos, que agarrou nas mãos dos pais como todos os bebés fazem, pequenas mãos a agarrar um dedo. Todo este potencial, todo este amor, tudo o que ela poderia ter trazido ao mundo: tudo isso acabado.”