No mês em que o mundo valoriza a prevenção ao suicídio, conheça as histórias de três catarinenses que enfrentaram
o problema e reforçam que sempre existe esperança
“Filha, é difícil te abandonar, mas eu também já fui abandonada pelos meus pais. Me desculpa, não sei por que estou fazendo isso, mas não consigo mais suportar essa dor”.
ra 10 de fevereiro de 2013, um domingo nublado em Blumenau. No caderno de capa vermelha, Elaine escreveu a despedida para a filha de dois anos. Enquanto estava praticamente inconsciente pela dose de remédios que ingeriu, os rabiscos foram encontrados pelo marido ao lado do corpo inerte sobre a cama do casal. Em vez de selar o adeus, as palavras lhe garantiram a salvação. Ele a levou às pressas para o hospital, onde foi salva. Mas a consulta com o médico e a atenção extra não cessaram a dor contínua que parecia lhe esmagar o peito.
No domingo seguinte, Elaine tentaria outra vez. Mas para evitar o flagrante, não deixou bilhete. As caixas de remédio vazias evidenciaram a intenção. Socorrida, ela passou por novo processo de desintoxicação.
Elaine Rodrigues não é nome fictício nem um caso isolado. A professora de português de 30 anos, hoje moradora de Florianópolis, integra um grupo que cresce a cada dia: os sobreviventes de si mesmos.
– Quem tenta suicídio não quer morrer, mas acabar com o sofrimento – afirma o psicólogo Aroldo Escudeiro, professor da Univali e presidente da Rede Nacional de Tanatologia (relação do homem com as perdas).
Em Santa Catarina, segundo Estado com maior taxa de suicídios, foram 584 em 2014 – um índice de 8,7 óbitos a cada 100 mil habitantes. A Organização Mundial da Saúde estima que há 20 tentativas para cada suicídio registrado. A primeira tentativa é o principal fator de risco do suicídio, pois a probabilidade de tentar novamente é alta.
Mas a maior parte dos casos tem prevenção. Os estudos apontam que 90% das mortes voluntárias estão ligadas a transtornos mentais, como depressão, bipolaridade, abuso de álcool e outras drogas. Com tratamento adequado, ajuda profissional e apoio familiar é possível superar as crises. Mas há um longo caminho a ser percorrido: muitos pacientes esbarram na falta de conhecimento e no preconceito e relutam em buscar ajuda profissional.
Foi o que aconteceu com Elaine. A angústia começou sem motivo aparente no final de 2012. Mesmo explicando o que sentia, nem ela nem os familiares compreendiam. Elaine desconhecia sofrer de depressão e, de imediato, não aceitou o diagnóstico. Ela precisou de medicação e apoio familiar. Mas a doença voltou com força no início deste ano. Em um mês, Elaine emagreceu 15 quilos. E novamente a salvação surgiu nas palavras. Desta vez, não escritas no caderno, mas em seu blog. Nos relatos, ela deixa os sentimentos transbordarem e alivia os sintomas.
Hoje, Elaine faz planos. Deseja ver o crescimento das duas filhas e mudar de carreira. E as palavras continuam a fazer sentido na vida:
– Ainda vou escrever um livro – refere-se Elaine à obra de ficção em que pretende abordar a depressão por meio de uma personagem.
Após duas tentativas de suicídio, Elaine Rodrigues, em tratamento contra a depressão, conta em um blog os desafios do dia a dia, faz planos de estudar e mudar de carreira e quer ver as filhas crescerem
Todas as terças-feiras, por volta das 15h, o simpático senhor de cabelos alinhados e óculos de aros grandes circula pelos corredores do hospital da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Carrega uma maleta e um sorriso. Distraídos costumam o confundir com um médico, mas o aposentado Valci Fernandes, 51 anos, é paciente e coordena o grupo psicoeducativo da instituição. Diagnosticado com esquizofrenia aos 22 anos, gosta de ajudar os colegas. Fala inclusive sobre o surto que teve aos 26 anos, quando tentou se matar. Foi em dezembro de 1989. Ele deixou a residência e partiu em direção aos carros numa rua do bairro Vila São João, na Capital. Valci foi agarrado a tempo pela namorada da época: – Já havia pensado em me matar. Mas não era eu, era a doença. Dois anos depois, fez um voto de fidelidade a Deus e largou as drogas e o álcool e começou a seguir o tratamento corretamente. – Foi como nascer de novo, como se tivesse uma vida nova. Mas foi aos 50 anos que realizou seu sonho: ter uma companheira. No grupo do Hospital Universitário ele conheceu a futura namorada, que também tem esquizofrenia. Os dois moram juntos há um ano e meio. Valci recebe ligações todo tempo dos outros pacientes e fica contente ao saber que estão bem e tomando os medicamentos. Usar a própria história para ajudar os outros. Esse também é o objetivo da dona de casa Mariza Molinari, 51, de Chapecó. Ela costuma falar abertamente sobre a depressão e sobre a primeira – e pior – crise que teve, no início de 2010. Sem fome e com um sentimento perturbador de ansiedade, Mariza procurava ajuda em clínicos gerais e neurologistas. O resultado era sempre o mesmo: saúde em ordem. Mesmo com o apoio do marido e do filho, surgiram os pensamentos de tirar a própria vida. – Só pensava em como acabar com aquela ansiedade – recorda Mariza. Mariza planejava passo a passo. Esperava ficar em casa sozinha e, em duas ocasiões, chegou a pegar uma faca para se suicidar. Mas num momento de lucidez, pensou no amor da família e desistiu. Poucos meses depois, tentaria outra vez com uma espingarda. Novamente pensar nos familiares a salvou. – Achava que psiquiatra era só para louco. Minha nora me convenceu e quando cheguei na frente do médico implorei por ajuda. Hoje a dona de casa faz questão de contar sobre as tentativas e a depressão. Defende que abordar o tema é a melhor maneira de ajudar na prevenção e no combate ao preconceito.
Conhecida pela forte agroindústria, Concórdia também convive com uma triste marca. Os 60 suicídios registrados de 2010 a 2014 a colocam como o município com a maior taxa de ocorrências – 17,14 por 100 mil habitantes – em Santa Catarina. O número corresponde a mais do que o dobro do índice estadual e ultrapassa o triplo do nacional. Até agosto de 2015, houve seis ocorrências. O secretário municipal de Saúde, Alessandro Vernize, arrisca algumas causas para a taxa elevada: o rígido comportamento herdado dos colonizadores europeus e a depressão provocada pelo isolamento na área rural ou por elementos químicos usados na criação de suínos. – Outro fator que não podemos descartar é o consumo de álcool, que é muito grande por aqui – diz. Desde 2009 a cidade conta com um Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) para tratar distúrbios mentais como a depressão. A unidade dispõe de psiquiatra, psicólogo, assistente social, enfermeiro e técnico em enfermagem. Segundo Vernize, ainda é pouco. – É difícil conseguir psiquiatra para atender pelo SUS em municípios de pequeno porte – afirma. Para atenuar a situação, a prefeitura está com um terreno pronto para receber um CAPSad (dirigido a pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e drogas). De cada quatro suicídios em Santa Catarina entre 2010 e 2014, um ocorreu no Vale do Itajaí. Entre as cidades da região com população de mais de 50 mil pessoas, a com a mais alta taxa – relação de incidências por 100 mil habitantes – é Gaspar, com média de 12 casos. O número supera inclusive o da Alemanha (nove, segundo a Organização Mundial da Saúde), país de origem dos imigrantes a quem é atribuída inclinação maior para o ato. – São sociedades com exigentes padrões de conduta social, em que o nível de cobrança, própria e de terceiros, é muito grande – diz o psicanalista e professor da Univali, Evandro Fernandes Alves. Mas o índice vem caindo. De 2013 para 2014, baixou de 14,4 para 7,8. Ainda assim, o secretário municipal da Saúde, Cleones Hostins, revela que 21 moradores de Gaspar já tentaram tirar a própria vida em 2015, ante 12 e 16 nos dois anos anteriores. A partir do momento em que é constatada a situação de risco, essas pessoas são convidadas a ir diariamente ao Caps. – Damos ênfase aos quatro Ds: desespero, depressão, desesperança e desamparo – diz Hostins.