Começo este texto afirmando que 90% dos sobreviventes enlutados sofrem com uma informação distorcida que é amplamente divulgada quando se fala em prevenção do suicídio, especialmente durante o “setembro amarelo”: a ideia de que ” 90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados”.
Jogo essa informação no Google e aparecem cerca de 131.000 resultados. A maioria deles está relacionado a matérias publicadas em jornais, mas o dado ainda aparece também nas falas de alguns profissionais.
Tenho que admitir que nos meus primeiros estudos sobre o tema, essa informação me impactou e também foi utilizada na minha dissertação de Mestrado. No meu trabalho, “Cuidado, frágil: aproximações e distanciamentos de trabalhadores de um CAPS na atenção ao suicídio” (2015), eu compreendia que o serviço de saúde mental no que eu trabalhava devia repensar sua forma de atender os casos de risco de suicídio, oferecendo um acolhimento mais rápido e que oferecesse cuidado além do acompanhamento psiquiátrico, incluindo toda a equipe. Os 90% foram citados por mim como um indicativo que nos mostrava o tanto que havia para ser feito.
O aprofundamento nos estudos sobre o tema me fez perceber que quando falamos de um evento tão complexo não podemos reduzi-lo a checklists e estatísticas simplistas. O comportamento suicida é multideterminado e envolve aspectos biológicos, psicológicos, econômicos, sociais, culturais … e para cada pessoa tem uma história única.
Minha experiência com os sobreviventes enlutados também tem mostrado que ao divulgar-se sinais de alerta sem explicar que nem sempre estes sinais serão claros e falar-se sobre os 90%, apenas parece que se está atribuindo às pessoas próximas a responsabilidade por não ter impedido a morte de seu ente querido.
Terezinha Máximo, a quem muito admiro, escreveu sobre isso no blog Nomobilids:
Você acabou de perder alguém que ama por suicídio e está arrasado e ao procurar informações sobre o tema dá de cara com a seguinte afirmação:
“90% DOS SUICÍDIOS PODERIAM SER EVITADOS”
Com certeza você que já está se sentindo péssimo, ficará pior. […] As pessoas que convivem com ela saberão identificar os sinais e como oferecer apoio? […] Então caro enlutado, não fique se achando a pior pessoa do mundo por não ter evitado o suicídio do seu ente querido, você não teria como ter ajudado se não possuía as informações necessárias e não fazia ideia de como agir”.
De acordo com o Dr. Neury Botega, ( psiquiatra que é uma das principais referências brasileiras sobre comportamento suicida e autor do livro “Crise suicida”, entre outros), em vídeo divulgado no seu Instagram @neurybotega.
“Isso é um mito que se originou na leitura apressada de um artigo científico publicado há alguns anos atrás, mostrando que na maioria dos casos das pessoas que se mataram um transtorno mental estava presente entre os vários fatores que levaram a pessoa ao suicídio. Com isso, uma leitura apressada fez muitos concluírem o seguinte: ‘Se em 90% dos casos de suicídio há um transtorno mental, então a gente pode curar o transtorno mental e evitar 90% dos suicídios’. Quem disse que essa mágica ocorre no dia a dia? Então, é errado dizermos que em 90% dos casos o suicídio pode ser evitado. Imagine um pai, uma mãe, que perdeu um filho … o que fica pensando com esses 90% pulsando na cabeça? É um erro de interpretação. Nenhuma sociedade em nenhum momento da história conseguiu trazer o número de suicídio para apenas 10% da média. Isso é impossível. Então nós não podemos divulgar esse mito”.
Por conta disso, não podemos afirmar uma porcentagem exata acerca de nada que é humano. Não posso afirmar que 90% dos sobreviventes enlutados sofrem diante desta informação incorreta, mas posso afirmar que ela traz uma carga de angústia para uma grande parte deles.
Talvez, 90% das pessoas que acessarem esse texto possam refletir acerca do perigo de fazer reducionismos nas explicações sobre o comportamento suicida. Mas não posso afirmar isso.