Ana Luísa era doce, segundo seus familiares. Estava prestes a se formar na faculdade de moda e sonhava em abrir o próprio negócio. Como muitas garotas de 24 anos, tinha planos de se casar – e já tinha um namorado.
Ana Luísa queria viver, mas não conseguia. Ela sentia dor, o coração pulava do peito e os desmaios eram frequentes.
Nas últimas semanas de vida, já não dormia. Evitava os remédios que ajudavam no sono porque, segundo ela, os pesadelos e as lembranças vinham à tona sempre que fechava os olhos.
A mãe, a produtora de eventos Ana Rosa Augusto, de 52 anos, afirma que tentava de tudo. Dormia com a filha, dava carinho, procurou especialistas e fazia questão de não deixá-la sozinha.
“Quando eu ia trabalhar, ela ia comigo. Se era dia de evento, a deixava com a avó. No último dia de vida de minha filha, pedi que ajudasse a avó a cuidar do meu sobrinho, de quem Ana Luísa era muito próxima. Ela foi. E não voltou mais”.
“Pouco antes de entregar o trabalho de conclusão de curso, Ana Luísa passou a desmaiar, ter crises fortíssimas de ansiedade e palpitação. Como ela era magrinha, nós víamos o coração dela saltar do peito. Tanto eu como o pai achamos que era ansiedade por causa dos trabalhos finais na faculdade, mas, como os sintomas eram físicos, decidimos levá-la a neurologistas e cardiologistas. Fez todos os exames, que não apontaram qualquer tipo de anormalidade. Voltamos a acreditar na ideia da ansiedade e procuramos um psiquiatra, que fez o mesmo diagnóstico.
A gente sabe que para uma terapia funcionar, é preciso sintonia entre o paciente e o terapeuta. Não foi o que aconteceu com a minha filha. Ele receitou alguns ansiolíticos e remédios para dormir, mas as medicações não deram conta da dor que ela sentia. Ela apresentou o TCC, se formou na faculdade, mas os sintomas continuaram. Então, procuramos psicólogos. Entendemos que havia algo acontecendo e que ela não queria nos contar, e, talvez, com a terapia, nossa filha conseguisse se abrir. Depois de um ano de buscas, Ana Luísa se identificou com um terapeuta. Seis meses antes do suicídio, ela contou o que tinha acontecido.
Minha filha foi abusada sexualmente aos dez anos de idade, na escola particular onde estudava, em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Ela revelou isso à psicóloga e pediu para que a especialista contasse a mim e ao pai dela. Foi quando descobri que a minha menina foi estuprada por seis meses por um garoto seis anos mais velho, no banheiro, nas aulas de Educação Física. Por alguns meses, ela relutava e chorava, pedia para não participar das aulas esportivas. Eu não entendia. Mesmo sem saber o que estava acontecendo, consegui um atestado médico que a liberou. As férias chegaram e, no ano seguinte, o menino não estava mais na escola. Ana Luísa voltou à Educação Física sem pestanejar.
A partir de então, só ia à escola com uniforme masculino, roupas largas, que não mostravam o corpo.
Um dia, ela me disse que um coleguinha do colégio comentou que meninos não gostam de meninas que usam roupas largas. Por isso, ela passou a usar. Não queria ser notada. Com o tempo, vieram roupas pretas, os cabelos descoloridos, uma tentativa de apagar a imagem daquela garotinha de dez anos. Ana Luísa passou a vida fugindo de si mesma. O gatilho para que a lembrança viesse à tona foi o namoro. Ela conheceu um rapaz, que cuidava e se preocupava muito com ela, e passou a lembrar dos momentos sombrios.
Em filmes, quando havia cenas de abuso, ela chorava e gritava. Se automutilava, cortava braços e pernas. Fazia cortes tão profundos que precisava levar pontos, na maioria das vezes. Fazia isso para aliviar a dor que sentia. Nas duas últimas semanas de vida, minha filha leu notícias sobre um estuprador que havia atacado mulheres em São Paulo e não conseguiu mais dormir. Coloquei ela na minha cama, deitávamos abraçadas, mas não adiantava. Quando dei por mim, ela não estava mais tomando os remédios para dormir. E me disse que, quando pegava no sono, era atormentada por pesadelos. Por isso, preferia esperar a dor passar acordada. Mas não passava.
Ana Luísa tentou se suicidar duas vezes, ingerindo doses maiores das medicações. Eu e o pai dela começamos a esconder todos. A cada dia, precisávamos escolher um esconderijo diferente.
Eu não a deixava sozinha em hipótese alguma. Quando tinha crise, a levava comigo para o trabalho. Conversávamos sobre tudo, inclusive sobre a sua vontade de morrer. Eu tentava de tudo. No dia em que tirou a própria vida, há três anos, eu disse que ela precisava ajudar minha mãe a cuidar do meu sobrinho, que tinha três anos à época. Ele e minha filha eram muito apegados. Levei ela até a casa da avó, esperei que entrasse no condomínio e segui para o evento que estava organizando. Uma hora depois, meu marido me ligou e disse que ela não havia chegado. Eu rebati dizendo que era impossível, eu a havia deixado lá dentro.
Ela não estava. Para a psicóloga, deixou uma mensagem de agradecimento, similar a que deixou para mim, para o pai e para o namorado. Ela dizia que não aguentava mais e ressaltava que a culpa não era nossa, mas que não conseguia viver com as lembranças. Se despedia e dizia que nos amava muito. Quando soube do sumiço dela, já imaginei o que tinha acontecido. Ao analisar as câmeras de segurança do prédio, vi que ela entrou, sentou no sofá do hall de entrada e ficou parada por um tempo. Pegou o celular, mandou as mensagens, e saiu. Foi a última vez que vi minha filha.
Sempre que Ana Luísa e eu falávamos sobre suicídio, ela explicava que não devemos divulgar a forma como as pessoas tiraram a própria vida. “Pode estimular outras pessoas a fazerem o mesmo”, ela dizia. Eu nunca contei o que houve, apesar de a notícia ter se espalhado. Hoje, faço parte de grupos que visam a prevenção do suicídio e tento ajudar garotas que, como a minha filha, têm uma dor para ser cuidada. Pelo Facebook, muita gente me procura para pedir ajuda – tanto pais como jovens. Transformei o luto em luta e só estou viva porque posso mudar outras vidas.
Desesperada, liguei para um amigo policial, descrevi a roupa que minha filha estava usando naquele dia. Eu imaginava onde ela estava e como ela tinha feito, não me pergunte porquê. Ele pediu para um colega averiguar, e esse agente a encontrou. Apesar de todas as certezas, corri para a minha casa. Pensei: “E se ela estiver em casa, no quarto dela, encolhidinha na cama?”. Não estava.
Não sinto culpa, eu fiz tudo o que pude. Conversei com ela e cuidei em todos os momentos. Ela nunca nos culpou. Eu sempre estive ao lado dela, éramos muito cúmplices. Onde eu ia, ela ia comigo. Se ela tinha trabalhos, eu a acompanhava. Ela sempre dizia: “Mamãe, quero ir com você”. Me chamava de “mamãe”. Hoje, quando converso com meninas que foram vítimas de abuso, descubro que o agressor sabe escolher a vítima certa, aquela que não vai abrir a boca. O abusador da minha filha dizia que, se ela dissesse algo, mataria a mim e ao pai dela. Ela aguentou tudo isso sozinha.
Aos pais, só peço uma coisa. Acreditem nos seus filhos e passem a sensação de que eles podem confiar em vocês. Quando nós descobrimos o que tinha acontecido com a Ana Luísa, a depressão já estava no grau máximo. Se ela tivesse compartilhado isso com a gente antes, talvez tivéssemos conseguido salvar a vida dela.
Hoje, sinto saudade. É um sentimento que cresce a cada dia que passa. A dor de perder um filho não passa nunca.”
*Se você está passando por algo semelhante ou conhece alguém que precise de ajuda, disque 188 – Centro de Valorização da Vida ou procure ajuda profissional nos serviços de saúde mental (particular: psicólogo ou psiquiatra e no Sistema Único de Saúde na UBS ou CAPs).