Michelle Baladão Fagundes transformou a dor imensa da morte de seu irmão em energia para viver mais. Não por mais tempo, mas com mais entrega, mais trocas. Depois da noite trágica de 13 de março de 2017 em que o caçula Marcello tirou a própria vida, a advogada de 28 anos tomou uma decisão: não calar, não sufocar o sofrimento, e sim se abrir, ouvir, compartilhar.
Seis meses depois, estava na rua, literalmente, a Associação Treze de Março, que Michelle idealizou para falar e ouvir quem estava escondido sob o tabu do suicídio. “Onde estavam essas pessoas? Eu queria falar com elas.” A primeira ação da organização foi em 20 de setembro de 2017, quando Michelle, com a ajuda de familiares e amigos, colocou uma banca no meio do Parque Moinhos de Vento, em Porto Alegre (RS). Em pleno feriado Farroupilha, distribuíram folders e abordaram os passantes para falar sobre tão delicado tema de maneira “desvinculada da tragédia”.
Sob o slogan “Falar é a melhor solução”, o Setembro Amarelo é um movimento iniciado no Brasil em 2015 que pretende romper com o tabu em torno do tema. E Michelle quer muito falar: de vida, de saúde mental e, principalmente, de acolhimento.
“Não se promove um ambiente de acolhimento entre seres humanos quando não há conexão entre eles, e para se conectar é preciso ouvi-los.”
Segundo a organização Setembro Amarelo, 32 brasileiros tiram a própria vida todos os dias, “uma taxa superior às vítimas da AIDS e da maioria dos tipos de câncer”. Na jornada de busca por informação que se seguiu à morte do irmão, Michelle entendeu quão solitária é a experiência de perder alguém para ele mesmo. “No início, eu me sentia extremamente abandonada, mesmo com gente ali do lado. Ninguém consegue entender o que está acontecendo. Me fortaleceu saber que eu não estava sozinha, que não era a única irmã que tinha passado por isso”. Descobriu também que muitos sobreviventes (é assim que se chamam os familiares e amigos de quem partiu) até inventam outras causas de morte para não ter de falar em suicídio. “Conheci gente que em 10 anos nunca tinha falado no assunto, gente que diz que o pai morreu de câncer, que a mãe sofreu acidente de carro”.
“Compreender que tudo pode acabar a qualquer momento provoca uma reorganização da vida. Todas as certezas, todos os planos somem. Entender essa impotência te deixa mais leve.”
Nesta rede de conexões que se cria entre sobreviventes, a culpa é uma constante, assim como não entender o que aconteceu e por que não se conseguiu evitar a tragédia. “Ninguém salva ninguém. não há como prever o suicídio”, afirma Michelle. “Por isso é preciso falar do assunto, com a naturalidade que for possível. Dar ferramentas às pessoas que estão em sofrimento para que elas se salvem.” Para Michelle, é muito dolorido ouvir que 90% dos casos de suicídio poderiam ser prevenidos, como preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS). Assim como nem ela nem os pais suspeitaram do que Marcello faria, outras famílias ignoram os sinais. “Ouvir que isso ‘poderia ser evitado’ alimenta a culpa, a raiva”.
“Eu resolvi trocar com o universo, me abrir para receber amor, carinho e acolhimento, e seguir caminhando. Tem tristeza, dor e saudade. Isso está sempre comigo, mas não me define e nem me limita.”
Por tudo isso, o foco do trabalho da associação é cuidar de quem ficou. O projeto de Michelle é montar um grupo de apoio aos sobreviventes – para cada suicídio, há em média 50 pessoas impactadas, diz ela. Além de se cercar de pessoas capacitadas, ela mesma estuda o tema (em maio, participou de um curso sobre a posvenção do suicídio e o manejo do luto) – e este ano resolveu atender a um desejo antigo: Michelle voltou à faculdade para estudar psicologia. Mas ela deixa claro que não tem a pretensão de salvar vidas. “Meu trabalho é com base na minha experiência, que é posterior. Se alguém me diz que está preocupado com alguém que pode se matar, sempre mando procurar um psicólogo, psiquiatra, ou ligar para o CVV.”
“Viver cada dia como se fosse o último é um baita clichê, mas é muito presente na minha vida.”
Outro projeto que ela tirou do papel foi trabalhar como voluntária na ONG Doutorzinhos. Desde agosto passado, uma vez por semana ela incorpora a doutora Mi Nhoca, cabeçologista – especialista em minhocas na cabeça. “O palhaço expõe nosso lado mais humano. Ele é ridículo, ri de si mesmo. Ser palhaço é deixar transparecer a tua essência”.
Não é à toa que tatuou a palavra “movimento” na perna: além do trabalho como advogada e como palhaça, as atividades da associação e a nova faculdade, Michelle também dança, faz análise e participa de um grupo de escrita criativa. “Eu tinha, e ainda tenho, receio de esquecer as coisas e comecei a escrever com esse foco de escrita-terapia, para me ajudar a entender o que aconteceu”. As reflexões registradas em papel vão virar livro.
“Uma vida plena não é 100% feliz. A gente só tem felicidade porque conhece a tristeza.”
E ainda tem um casamento para planejar – ela ficou noiva no dia 20 de abril. “Eu pensei muito em como seria fazer isso, celebrar o amor sem o meu irmão. Mas as pessoas vivem na gente. Tem de tocar adiante, respeitando o tempo de cada um, mas sem deixar que isso nos limite para os próximos acontecimentos da vida”. Segundo a fundadora, esta é a missão da Associação Treze de Março: viver na plenitude não é ser feliz o tempo inteiro; é ser melhor, apesar dos pesares.
*Caso você — ou alguém que você conheça — precise de ajuda, ligue 141 ou 188, para o CVV – Centro de Valorização da Vida, ou acesse o site. O atendimento é gratuito, sigiloso e não é preciso se identificar. O movimento Conte Comigo oferece informações para lidar com a depressão. No exterior, consulte o site da Associação Internacional para Prevenção do Suicídio para acessar redes de apoio disponíveis.