2005 – Um dos maiores especialistas em luto no mundo, o psiquiatra inglês Colin Murray Parkes, 77, parou na frente de uma escultura em mármore negro, a de que mais gostou em seu passeio pela Pinacoteca do Estado de São Paulo na tarde da última sexta-feira.
“Está quebrada, mas inteira. A impressão é que quebrou, mas continua inteira, continua uma pessoa, uma vida, uma coisa. É reconhecer o valor das duas partes, mesmo quebradas”, disse Parkes, que é consultor do St. Christopher’s Hospice, em Londres, uma instituição para pacientes fora de possibilidades terapêuticas .
“Figura Quebrada”, obra de 1975 do compatriota Henry Moore, materializou a teoria de Parkes sobre a dor da perda, construída durante mais de 50 anos.
Para Parkes, o luto é o preço que se paga pelo amor, por uma vida feliz. É assim que ele impulsiona seus pacientes a não esquecer, mas seguir com a boa lembrança. Para ele, o luto é uma importante transição, pode ser um momento para recriar a própria história, diz.
“O apego é poderoso, e quando o apego é quebrado, você se sente exatamente assim. O que essa escultura capturou é que, ainda assim, é bonito”, disse Parkes, que desfrutava do único dia livre de sua passagem na semana passada pela capital paulista para o 3º Congresso Brasileiro de Tanatologia [estudos sobre a morte] e Bioética. O evento que terminou ontem foi promovido pelo Instituto 4 Estações e por centros de estudos sobre a morte e o luto da Pontifícia Universidade Católica e da Universidade de São Paulo. O evento foi tão procurado que começou com lotação esgotada.
Veja a seguir outros trechos da entrevista concedida à Folha.
Folha – Por que o senhor escolheu trabalhar com o luto?
Colin Murray Parkes – Muitas coisas diferentes contribuíram para isso. Uma delas foi meu descontentamento com a forma como alguns médicos tratam seus pacientes. Mesmo quando eu era um jovem estudante de medicina, era interessado em psicologia, tinha vontade de estudar os fatores de estresse dos pacientes e ajudá-los nesses momentos decisivos, quando você se depara com as perdas ou fica doente.
Eu vejo a morte e o luto como parte dos eventos que mudam a vida, o que inclui a perda, que sempre traz um elemento de ganho. O nascimento de um bebê pode ser muito traumático, dolorido, pode ser uma perda também, em alguns pontos de vista, e é ainda um ganho tremendo. A parte recompensadora de trabalhar com pessoas que estão vivendo o luto é vê-las crescer. Eu acho que uma das coisas que o luto ensina é que as pessoas que amamos nunca perdemos. Elas são parte da nossas vidas para sempre.
Quando alguém diz “ele vive em minha memória”, isso é verdade. O problema é que, no primeiro momento em que se perde alguém, sente-se que todas as coisas boas que vieram com essa pessoa se perderam também. Só quando a pessoa pára de tentar recuperar é que percebe que nunca perdeu.
Folha – Viver diariamente outros lutos é doloroso para o senhor ?
Parkes – Claro que é. Mas a dor do luto é igual à do nascimento, como disse. É doloroso, mas algo bom pode vir com isso. Você se sente fraco, carente, mutilado, acha que tudo o que é importante foi embora. Mas a mesma pessoa, talvez dois, três, quatro anos depois vai dizer coisas como “estou surpreso sobre o quanto sou forte”. Eles percebem que sobreviveram, que começaram a valorizar a si mesmos e à pessoa que morreu de uma nova maneira, que é mais madura. Não estou sendo Pollyana, eu não espero que minha mulher morra. Mas não importa se eu vou morrer antes dela ou ela antes de mim. Quando isso acontecer, nós sabemos que poderemos continuar um sem o outro.
Folha – Alcançar isso independe de uma crença religiosa?
Parkes – Eu diria que isso é parte de um lado espiritual. Porque espiritualidade é achar um sentido na vida, qualquer que seja a linguagem que você utiliza para explicar esse significado. Muitas pessoas gostam da linguagem de Deus. Quando trabalhamos com pessoas que vivem o luto estamos fazendo o que os padres fazem, tentando ajudá-las a achar um novo significado.
Folha – O senhor afirma em seu livro que o luto é o preço que pagamos pelo amor, por termos aceitado compromissos em nossas vidas. O luto é inerente a uma vida feliz?
Parkes – Não há dúvida de que o luto é a experiência psicológica mais dolorosa que qualquer pessoa irá viver, e, quanto maior é o amor, maior é essa dor. Não há dúvida, o luto é um preço que temos de pagar. Algumas pessoas acham seu luto tão doloroso que ficam com medo de amar novamente. Mas o preço vale a pena.
Folha – É possível educar para o luto?
Parkes – Isso certamente ajuda. As perdas são inevitáveis na vida. Perdas que podem ser de uma boneca ou de uma pessoa. E os pais devem aproveitar essas oportunidades para ajudar as crianças a aceitar que a perda é parte da vida.
Eu estava dirigindo com minhas filhas no carro uma vez -elas tinham cinco, três e dois anos de idade- e uma delas viu um gato morto. Eu parei e disse: vocês querem ver? Começou um debate [risos]. Elas decidiram que sim e eu dei permissão. Ainda bem que o gato não estava em um estado tão ruim [risos]. Mas conversamos sobre o que aconteceria com ele. Eu disse que um dia poderia virar adubo, que faria mais flores bonitas crescerem em um jardim. Alguns dias depois a mais nova perguntou: “Pai, o que vai acontecer com você quando você morrer?” Eu perguntei o que ela achava. “Adubo!”, ela respondeu.
Folha – O senhor fala de outros lutos, que existem mesmo quando não há a morte.
Parkes – Um exemplo é se sua mulher ou seu marido tem o mal de Alzheimer, uma demência. Ela se torna uma pessoa diferente, infantil, insensível. Você lamenta pela pessoa que perdeu. Algumas pessoas conseguem superar isso, lembrar como a pessoa era.
É assim também com a mãe, que sempre espera uma criança perfeita e tem um bebê com uma deficiência física. Algumas irão rejeitar essa criança.
Se você puder ajudar essas pessoas em seu luto, elas poderão chegar à conclusão de que sim, é muito triste, mas que podem amar de uma maneira diferente e até mais forte. Sim, e pode haver luto mesmo se você perder o que nunca teve. É o caso de alguém que sempre quis se casar e o noivo abandonou antes da cerimônia.
Folha – Como as políticas de saúde devem lidar com a morte? No Brasil a criação de regras para a manutenção de terapia intensiva gerou acusações de que o governo queria um holocausto. A mesma comoção que há sobre a eutanásia.
Parkes – É uma decisão muito difícil. Há muitas pessoas envolvidas. Não é só a questão sobre se o sofrimento justifica uma autorização para que o paciente morra. Mas como irá afetar pais, irmãos. Sim, sabemos que há as questões econômicas. Se bloqueio este leito, outras cinco pessoas irão morrer. Não há resposta simples. Essa questão não tem que ser decidida na base do “não matarás”, ou de preconceitos, mas em um contexto em que todas as variáveis têm que ser levadas em conta, incluindo familiares e políticas de saúde.