O menino tinha 13 anos, estava entrando na adolescência, quando o pai, Elias Pereira Vale, se matou. A notícia chegou disfarçada. Disseram que ele, militar e músico da Polícia Militar do Estado de São Paulo, havia sido atropelado por um caminhão. Foi a versão que o menino, agora padre Lício de Araújo Vale, de 60 anos, carregou até os 18 anos, quando lhe contaram a verdade.
“No dia 28 de abril de 1970, sem falar nada a ninguém, meu pai beijou minha mãe e saiu de casa para trabalhar. No caminho, jogou- se debaixo de um caminhão”, escreveu padre Lício, ao contar a história no livro E Foram Deixados Para Trás, uma reflexão sobre o fenômeno do suicídio, que será lançado nesta sexta-feira, 23, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, pelas Edições Loyola.
Sacerdote desde 1983, o autor foi secretário executivo do setor Regional Sul da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e atualmente é pároco da igreja da Sagrada Família de Vila Praia, na Penha, em São Paulo.
O luto pelo suicídio do pai resultou em anos de sofrimento e revolta para padre Lício. “Por quê?”, perguntava-se ele, como todos os parentes de uma pessoa que se mata, as se sentirem abandonados, deixados para trás. Sua lembrança: “Meu pai, que nunca havia tentado o suicídio antes, era um homem muito sensível, bondoso, generoso, porém alcoólatra. Começou a beber compulsivamente por volta dos 25 anos e, sob efeito do álcool, transformava-se num homem agressivo e violento. Minha mãe contava que, antes de eu nascer, ele chegava em casa bêbado e, não poucas vezes, quebrava tudo. Porém, nunca bateu nela. Bateu violentamente em mim uma única vez, para eu não mais esquecer, quando eu tinha 7 anos, porque numa brincadeira de criança xinguei a professora da escola com um palavrão”.
Padre Lício foi convidado a escrever o livro depois de participar de uma entrevista na Rede Vida de Televisão na noite de 9 de setembro de 2016, véspera do Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Ao saber do tema, já no estúdio da emissora, ele disse que estava feliz por estar ali, porque era filho de um suicida. “Meu pai tirou a própria vida, quando eu tinha 13 anos de idade”, contou ao amigo e apresentador Dalcides Biscalquin, antes do programa. Mais tarde, após anos de terapia, revelou que sua mãe também tentou o suicídio. Ela era bipolar e tomou uma caixa de comprimidos.
A reflexão sobre o suicídio do pai e sobre as consequências da perda dele para a família é mais do que um socorro de autoajuda para pessoas que enfrentam a mesma situação. Padre Lício incorpora sua experiência ao trabalho pastoral, lembrando como superou ou ainda tenta superar uma tragédia pessoal. Inicialmente odiou o gesto do pai e demorou a perdoá-lo por ele se ter matado abandonando aqueles que o amavam. A terapia foi importante nessa caminhada, mas o que parece ter sido essencial foi a busca de uma explicação na misericórdia divina.
“Várias pessoas que tiveram casos de suicídio na família recorreram a mim, como relato no livro”, disse padre Lício ao Estado. Os personagens aparecem com nomes fictícios, mas as circunstâncias são narradas com detalhes. “Uma vez, fui chamado antes da polícia e vi o corpo de um suicida que se enforcou dependurado no quarto”, revela o padre.
Em suas pesquisas, que incluíram especialistas na área da saúde, dados estatísticos mundiais sobre o suicídio e depoimentos de pessoas atingidas, padre Lício ouviu líderes religiosos sobre o comportamento de suas religiões em relação ao suicida. Sem exceção, católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, budistas, umbandistas e seguidores do candomblé condenam o suicídio, mas mantêm uma atitude de compreensão e misericórdia, ao analisar o gesto de quem se mata. Antes destinados automaticamente à condenação do fogo eterno, os suicidas já não discriminados como décadas atrás, quando eram sepultados em alas isoladas dos cemitérios.