O suicídio entre crianças e jovens indígenas no Brasil foi classificado como pandemia por pesquisa do Programa de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso). Divulgado nesta quinta-feira, 30, o relatório ‘Violência Letal Contra as Crianças e Adolescentes do Brasil’ aponta que em ao menos um município, 100% do total de suicídios entre indígenas ocorreu na faixa dos 10 e 19 anos. Dos 17 municípios com número igual ou superior a 10 mil crianças e jovens – critério para o levantamento – , com alta densidade populacional indígena, 327 indígenas acima dos 20 anos se suicidaram entre 2009 e 2013. Desse total, 163 crianças e adolescentes tiraram a própria vida – quase a metade do número final e a maioria em relação às demais faixas etárias reunidas.
O foco do relatório não era a população indígena. No entanto, quando os dados apareceram causaram espanto entre os pesquisadores que decidiram fazer uma amostragem específica. “Vemos nos municípios arrolados que os suicídios na faixa de 10 a 19 anos representam entre 33,3%, em São Gabriel da Cachoeira (AM), e 100%, em Tacuru (MS), do total de suicídios indígenas, verdadeira situação pandêmica de suicídios de jovens indígenas”, destaca trecho do relatório. No Mato Grosso do Sul, a pesquisa aponta 5,2% suicídios de crianças e jovens por 100 mil habitantes. No Amazonas, a taxa é de 4,0%. A mortandade suicida nestes estados é puxada de forma trágica pelas crianças e jovens indígenas, conforme constataram os pesquisadores. AM e MS são os que mais possuem municípios envolvidos no suicídio entre a faixa etária do estudo.
A pesquisa se debruçou sobre oito municípios do Amazonas e nove do Mato Grosso do Sul, onde os critérios do estudo coadunaram com a alta densidade de populações indígenas. “Os municípios que aparecem nos primeiros lugares nas listas de mortalidade suicida são locais de amplo assentamento de comunidades indígenas, como São Gabriel da Cachoeira, Benjamin Constant e Tabatinga (AM); Amambai e Dourados (MS)”, diz trecho do estudo. Dos 74,1% de indígenas que cometeram suicídio em Tabatinga, no Amazonas, entre 2009 e 2013, 50% era de crianças e jovens. Diante do total de suicídios do município, o de crianças e jovens indígenas corresponde a 37%. Nestes municípios amazonenses, a gama de povos é bastante diversa afetando várias destas nações.
No município sul-mato-grossense de Caarapó, onde ocorreu no último dia 14 um massacre de fazendeiros contra o tekoha – lugar onde se é – Tey’i Jusu, 75% dos suicídios, entre 2009 e 2013, ocorreu entre indígenas. Destes 75%, crianças e jovens entre 10 e 19 anos compõem 55,6%. Diante do total do município, jovens e crianças correspondem a 41,7%. Ainda no MS, em Japorã dos 87% de indígenas que cometeram suicídio, 70% foram de crianças e adolescentes – em relação aos dados gerais de suicídio do município, 60,9% ; Ponta Porã teve 71,4% nesta faixa etária, ante 20,6% do total de indígenas e correpondendo a 14,7% de suicídios gerais da cidade. Já a cidade de Paranhos crianças e jovens responderam por 60% dos suicídios de indígenas, equivalendo a 30% de toda a população que tirou a vida entre 2009 e 2013 no município. As cidades sul-mato-grossenses do estudo abarcam quase completamente o povo Guarani e Kaiowá.
Um estudo das Nações Unidas (ONU) de 2009 coloca o suicídio dos jovens indígenas em um contexto de discriminação, marginalização, colonização traumática e perda das formas tradicionais de vida, mas adverte sobre a complexidade dos fatores que intervêm na transmissão desses traumas entre gerações na forma de comportamento suicida. “A marginalização desses jovens tanto em suas próprias comunidades, ao não encontrar nelas um lugar adequado às suas necessidades, quanto nas sociedades envolventes, pela profunda discriminação, forja um sentimento de isolamento social que pode conduzir a reações autodestrutivas do ponto de vista ocidental”, diz trecho do estudo.
Para Elizeu Guarani e Kaiowá, integrante da Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani e Kaiowá) e que em maio esteve na ONU denunciando violações aos direitos de seu povo, o suicídio não é algo da ‘cultura’ dos Guarani. “Muito gente fica dizendo isso, que o suicídio no meu povo sempre foi assim, faz parte da cultura da gente. Não é verdade. Isso começou forte depois que passamos a ser expulsos das nossas terras, vivendo confinados em reservas, sem perspectiva, na beira de estradas”, declarou Elizeu na ocasião do encontro da Relatoria Especial para os Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas, em Nova York.
Suicídio: um abismo labiríntico
“Suicídios acontecem no mundo inteiro – mas, quando, em um mesmo lugar, ao mesmo tempo, muita gente está se matando, é porque tem algo muito esquisito, muito grave acontecendo aí. Estamos falando de uma população de menos de 50 mil pessoas (povo Guarani e Kaiowá), sendo que já aconteceram mais de 1.100 casos nos últimos 35 anos”. A intervenção é do antropólogo Spensy Pimentel. Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, Pimentel pesquisada há pelo menos uma década o povo Guarani e Kaiowá, em Mato Grosso do Sul.
Para o estudioso, é preciso considerar “que os indígenas no país passam por um período de recuperação demográfica, em função de diversos fatores. Se você analisar as tabelas oficiais do sistema de saúde e do IBGE que mostram a idade dos indígenas, vai ver que as crianças e jovens são absoluta maioria: os povos indígenas, de modo geral, são assim, hoje”, afirma. Para o antropólogo, isso é pouco para tratar de um tema tão complexo quanto o suicídio, que envolve diversos outros fatores, mas pode ser um importante indicativo para explicar as razões que envolvem crianças e jovens – vitimados ainda pela utilização de drogas e homicídios – em altos índices de mortalidade entre os indígenas.
“Da mesma forma que nós, nas cidades, temos problema hoje com essa juventude que fica submetida a um estímulo consumista muito forte, muitas vezes apelando até ao crime para ter acesso a bens de consumo, isso está acontecendo nas aldeias. O consumismo está relacionado a conflitos familiares, à delinquência, e até a frustrações tão graves que alguns associam aos suicídios (que, em geral, são um fenômeno bem complexo, não podemos reduzir a isso)”, diz Pimentel.
Essa sociabilidade relativamente nova das aldeias próximas às cidades, sobretudo, combinada ao ambiente de pobreza e falta de recursos e de perspectivas de vida, conforme destaca o antropólogo, também tem outros aspectos, como um colapso do modo tradicional de lidar com a gestão dos casamentos. “Gera-se, aí, uma instabilidade que também está relacionada aos suicídios. Mas, vale observar, o pano de fundo do problema é sempre o confinamento, não é possível separar as coisas. As tragédias acontecem também porque o ambiente é muito deteriorado”, afirma.
Confinamento e falta de terras
Para o antropólogo, suicídios, assassinatos banais, agressões, roubos, abuso de álcool e drogas foram potencializados, ou até mesmo iniciados, no ambiente das reservas – pequenas áreas de terras onde os indígenas foram confinados no Mato Grosso do Sul ao serem expulsos de seus territórios. Pimentel explica que o que se pode constatar em depoimentos dos indígenas e também a partir dos registros históricos. “Não é que essas coisas não existissem – a questão é que elas passaram a acontecer de forma descontrolada, epidêmica mesmo. Os suicídios, por exemplo: os mais velhos se lembram de ter visto um ou outro caso ao longo da infância e da juventude. De repente, a partir do início dos anos 80, são dezenas de casos! Ou seja, há alguma coisa errada com o ambiente das reservas”, conclui o antropólogo.
Tomando por base os municípios analisados pelo relatório da Flacso no estado, em todos há incidência de reservas indígenas criadas que geram confinamento. Não só isso: a falta de demarcação territorial está diretamente ligada a essa situação endêmica. “A existência física dos índios de MS, e especialmente dos Guarani e Kaiowá, já está em risco. A relação entre a violação do direito territorial e as violações de direitos humanos é direta. As reservas são, sim, um ambiente que está propiciando aos indígenas uma condição de existência capaz de levar a sua destruição e ameaçando sua integridade física e mental”, afirma Pimentel.
Para o especialista, o Estado brasileiro é um dos principais promotores de tal contexto quando, na verdade, deveria presar pelo cuidado a estes modos plurais e diferenciados de vida. “O que o Estado brasileiro faz com esses indígenas é um atentado, porque está forçando-os a deixarem de ser indígenas para que possam ser aceitos como cidadãos. O Estado coloca-os numa situação tal que é inevitável, para muitos, abandonar os elementos mais caros a esses povos, em termos de seus valores tradicionais”, explica Pimentel. Com isso, as dissociações tornam-se inevitáveis e o combustível para o processo corrente de genocídio, assim nomeado por organismos internacionais.
“Os Guarani formam um povo que, segundo os relatos dos cronistas, abasteceu de uma forma generosa os europeus que aqui chegaram no século XVI. Dominavam técnicas de agricultura que lhes garantiam uma vida saudável e farta. Hoje, muitos não têm terra para plantar meia dúzia de pés de mandioca. Passam fome, dependem de doações do governo… isso impacta suas vidas de forma direta”, encerra o antropólogo.
Exploração sexual infanto-juvenil no AM
Tomando o contexto que envolve a pandemia de suicídios de crianças e jovens indígenas no país, conforme o estudo da Flacso, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª. Região, em Brasília, determinou no último dia 22 de junho o bloqueio de bens no valor total de R$ 5 milhões de dez acusados pelos crimes de estupro de vulnerável e abuso sexual de crianças e adolescentes indígenas do município de São Gabriel da Cachoeira (a 860 quilômetros de Manaus), norte do Amazonas. A informação é do site Amazônia Real.
Os dez réus foram presos em 2013 pela Polícia Federal. Conforme a denúncia do Ministério Público Federal (MPF), eles são acusados de crimes como corrupção de menores, satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição de vulnerável e rufianismo (tirar proveito da prostituição alheia). No grupo há comerciantes, políticos e servidores públicos do município. Duas mulheres são acusadas de aliciarem garotas indígenas para o bando criminoso.
Em São Gabriel da Cachoeira, entre 2009 e 2013, conforme o relatório da Flacso, do total de suicídios registrados 91,7% são de indígenas, sendo deste número o extrato de 33,3% de crianças e jovens indígenas. De acordo com o número total de suicídios no município, 30,6% foram de crianças e jovens indígenas que não tiveram alternativa a não ser tirar a própria vida.
Os suicídios no Relatório de Violências do Cimi
De acordo com a última edição do Relatório de Violências Contra os Povos Indígenas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) 135 indígenas cometeram suicídio em 2014. Este número configura-se como o maior em 29 anos. O Mato Grosso do Sul continua sendo o estado que apresenta a maior quantidade de ocorrências, com o registro de 48 suicídios, totalizando 707 casos registrados de suicídio no estado entre 2000 e 2014.
O relatório destacou ainda o preocupante o alto número de casos registrados no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Alto Rio Solimões, localizado no Amazonas, onde são atendidos os povos Tikuna, Kokama e Caixana. Somente neste Dsei foram registrados 37 casos de suicídio em 2014. Nesta quarta-feira, dia 29, o presidente o presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho, dom Roque Paloschi, foi recebido pelo Papa Francisco, no Vaticano. Dom Roque entregou ao Papa o Relatório de Violência contra os Povos Indígenas.