A fobia escolar de Lívia, de 12 anos, chegou ao ponto de a menina não conseguir segurar um lápis. O uniforme, os livros, o caderno, tudo a fazia passar mal. Suava, entrava em pânico, dizia que era melhor morrer. Ameaçou se jogar da janela e pular de um carro em movimento.
A menina foi alvo de bullying em vários momentos da vida, até desenvolver uma grave depressão no ano passado, conta a mãe, a pedagoga Maria Clara, 51 –os nomes foram trocados para preservar a identidade das duas.
Após os pensamentos suicidas, a menina foi afastada da escola por recomendação médica e perdeu os anos letivos de 2016 e 2017.
O bullying, segundo especialistas, afeta não somente a criança e o adolescente, mas também suas famílias e, em casos mais graves, deixa marcas por toda a vida.
No último dia 20, um estudante atirou contra colegas em uma escola em Goiânia e matou dois deles. Ele disse ter sido vítima de bullying, o que reacendeu o debate sobre o tema.
No caso de Lívia, o preconceito racial foi um componente importante. Ela é negra e foi adotada por pais de classe média alta em Belo Horizonte. Em dois anos, passou por quatro colégios. Alguns de elite, com maioria branca, e outros mais diversos, onde o problema persistiu.
“A sociedade é tão racista que basta a criança ser um pouco mais clara para se achar no direito de chamar o mais escuro de macaco, gorila”, conta Maria.
Lívia foi hostilizada e agredida fisicamente. Ninguém queria fazer trabalhos com ela nem a convidava para atividades. “Talvez eu nunca saiba direito o que aconteceu com a minha filha na escola. Muita coisa ela fez questão de esquecer”, diz a mãe.
Além da exclusão em sala, a menina foi atacada por mensagens na internet, que incluíam incitação ao suicídio.
De acordo com especialistas, o cyberbullying pode ser ainda mais danoso. “É pior, porque nem no fim de semana a criança consegue escapar”, diz a pedagoga Cleo Fante, autora do livro “Fenômeno Bullying”.
Os primeiros sintomas da depressão de Lívia apareceram em 2016: irritabilidade, desânimo, falhas na memória e dificuldade de concentração. Dois meses depois, após ser chamada repetidas vezes de “monstro”, ela deu um tapa em uma menina.
Depois disso, não conseguiu mais retornar ao colégio. A depressão se agravou. Vieram as ameaças de suicídio, a fobia escolar. A menina passou 40 dias sem sair de casa, trancada em um quarto.
“Nesse momento veio também a compulsão alimentar. Ela engordou 17 quilos em um mês”, conta a mãe. Hoje Lívia está estável, mas toma quatro remédios, faz terapia três vezes por semana e tem aulas particulares em casa, para tentar vencer o medo.
Em muitos casos, as consequências do bullying aparecem com mais força na vida adulta. O eletricista Marcos, 30, cujo nome também foi trocado, largou a escola por não suportar a perseguição.
Ele faz tratamento para depressão e tentou se suicidar. “Foram várias tentativas, mas amigos conseguiram me impedir. Com a psicóloga, notei que isso vem desde a infância, pelo bullying”, conta ele, que levava chutes, socos e tapas no colégio, no interior de Minas Gerais.
Atualmente, os remédios psiquiátricos dificultam o trabalho de eletricista –ele não pode usar certas máquinas, como furadeiras. Assim como Lívia, Marcos é negro e diz que a questão racial foi um dos motivos para o bullying. “Não adiantou mudar de escola, a perseguição continuava.”
Para Lucas, que também pediu para não ser identificado, trocar de colégio ajudou. Mesmo assim, o bullying teve consequências graves.
Com 25 anos, o produtor faz terapia e já teve crises de ansiedade. Lucas diz que o bullying na escola, em Goiânia, tinha motivação homofóbica.
“Era empurrado, intimidado. As professoras fingiam não ver esse bullying homofóbico, para ver se a criança ‘se corrigia'”, diz. A experiência o deixou com um profundo medo de rejeição, o que prejudica sua autoestima e relacionamentos atuais.
A especialista em neuropsicologia Nadia Bossa afirma que o bullying pode afetar a saúde física e mental. “É uma situação de extrema tensão, que provoca um desequilíbrio celular e psíquico. As consequências disso ao longo do tempo são severas”, explica.
Lucas lembra ainda que, se reclamasse com adultos, a situação piorava. “Os alunos ameaçavam me bater”, diz.
“Contar para o adulto pode ser um terror, por isso eles param de contar. A ação dos próprios alunos é 75% mais eficaz do que a intervenção de adultos. O colega, que está de espectador, pode falar: ‘Para, nada a ver isso'”, explica a pedagoga Telma Vinha, professora da Unicamp.
O advogado Alexandre Saldanha, 33, passou pela mesma experiência de contar para uma diretora e se arrepender. Ele afirma ter superado os dez anos de perseguição na escola ao se tornar um especialista no tema.
O curitibano começou a estudar o bullying na faculdade e hoje dá palestras, lidera grupos de apoio e processa colégios na Justiça. “Só sendo obrigadas a pagar indenizações que as escolas vão se preocupar com a prevenção”, diz.
O promotor e assessor em educação do Ministério Público de SP, Antonio Carlos Ozório Nunes, afirma que é preciso cuidado com a judicialização do problema. “Primeiro os pais devem esgotar todas as possibilidades de diálogo com a escola. A solução deve ser mais pedagógica”, afirma.
Alexandre conta que foi perseguido durante toda a vida por ser “gordinho e desajeitado”. A falta de coordenação motora era resultado de uma paralisia branda de um lado do corpo.
Ele mudou de escola sete vezes, mas os apelidos de “aberração”, “coisa” e “Gardenal” o seguiram. Aos poucos, Alexandre se tornou introspectivo, acuado. Passava o recreio na biblioteca, lendo, para fugir dos agressores.
“Não era por incapacidade minha de socializar ou de lidar com a frustração, como dizem algumas pessoas. Era incapacidade de lidar com a humilhação todos os dias.”
Especialistas alertam que, nesses casos, é importante acolher a vítima, e não culpá-la. “Ela não é responsável pelo bullying. Há crianças que são um alvo frágil, por isso se trabalha a autoestima, a assertividade, mas sem culpabilizar”, diz Vinha, da Unicamp.
Por ser um alvo recorrente, Alexandre conta que sentia muita raiva. Mas conseguiu, segundo ele, dar vazão aos sentimentos por meio de música, poesia, desenho e o esporte. “É normal sentir raiva, mas é o que você faz com isso que importa”, defende.
Na vida adulta, ele afirma que ajudar vítimas de bullying foi a sua forma de seguir adiante e “se curar”. “O bullying foi o período mais escuro da minha vida, mas hoje eu encontrei o meu caminho.”
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ENTENDA
Como identificar o bullying e o que fazer
Bullying X conflito
No bullying, os ataques são intencionais, repetitivos e têm como objetivo maltratar e humilhar; não há justificativa evidente para as agressões. Ele é realizado entre pares –ou seja, entre alunos, mas com uma desigualdade de poder– e na presença de ‘espectadores’
Vítimas mais comuns
Quem é considerado mais frágil, seja pela renda, orientação sexual, religião, origem, cor ou aparência. Pessoas tímidas ou com baixa autoestima também são alvos, assim como alunos que se destacam por coisas positivas, como beleza e boas notas
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COMO IDENTIFICAR
Possíveis sinais de que a criança sofre bullying
Na escola
– Mostra-se triste frequentemente
– É a última a ser escolhida em atividades e fica isolada ou perto de adultos no recreio
– Tem piora nas notas
– Anda com ombros encurvados, cabeça baixa e não olha no olho
Em casa
– Usa desculpas para faltar à aula
– Tem mudanças extremas de humor
– Gasta mais dinheiro que o habitual na cantina para dar lanche aos outros
– Aparece com hematomas após a aula
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COMO AGIR
O que a escola deve fazer?
– Capacitar funcionários e orientar pais
– Explicar as consequências, para que alunos não achem graça
– Estar junto no recreio para criar confiança
– Acionar os pais e discutir soluções, ouvindo a opinião da vítima
– Em casos graves, acionar autoridades
O que os pais devem fazer?
– Observar os filhos
– Acionar a escola e discutir soluções
– Não dizer coisas do tipo “ignore” ou “não ligue”
– Estimulá-los a perceber suas habilidades para resgatar a autoestima
– Se preciso, buscar a ajuda de psicólogos
Como proceder com o agressor?
– Repreender suas ações e mostrar o mal que ele está causando ao outro
– Fazer com que ele conserte o dano causado
– Trabalhar valores como respeito às diferenças