Autor de obras como Crise suicida: avaliação e manejo e Comportamento suicida, o psiquiatra Neury José Botega é um dos principais estudiosos sobre o tema no Brasil. Na entrevista a seguir, o professor da Unicamp defende a importância de conscientizar a população em geral sobre o problema e afirma que todos podem ser agentes de prevenção.
Partimos de um período em que não se falava em suicídio, com receio de incentivá-lo, para outro em que existem campanhas como o Setembro Amarelo, que explicitam o problema. O que mudou?
Na década de 1990, muitos estudos começaram a mostrar que o suicídio estava crescendo. Além disso, outros estudos começaram a mostrar uma associação frequente entre suicídio e doenças mentais, principalmente depressão, alcoolismo, transtorno bipolar, esquizofrenia e também traços impulsivos e agressivos de personalidade. A partir daí, houve uma mudança de postura da Organização Mundial da Saúde, que incentivou os países a elaborar medidas de prevenção. O último relatório da OMS, de 2014, constata que 83% dos países conseguiram reduzir os números. Existe uma minoria, de 17%, onde o suicídio continua a crescer. E o Brasil está entre esses países.
Qual a diferença entre os que conseguiram a redução e os que não conseguiram?
A diferença pode ser explicada pelas medidas de prevenção implementadas, principalmente treinamento de profissionais da saúde e de outros profissionais que estão na linha de frente, como professores e ministros religiosos. E em mostrar à população em geral que o suicídio está ligado a transtornos mentais.
Estava errada a concepção do passado de que era melhor não falar no assunto?
Isso. Uma das recomendações é que a gente trabalhe junto a profissionais da imprensa. Não quer dizer que qualquer reportagem sobre suicídio passe a ser justificável. Por exemplo, se a gente transforma a morte num espetáculo e não consegue mostrar o sofrimento da pessoa que se matou e o que poderia ter sido feito para evitar essa morte, a reportagem é ruim.
Como se fala de suicídio sem incentivá-lo?
Tem de ter cuidados. No caso das reportagens, não é primeira página, ninguém fica dando o nome de quem se matou, ninguém fica dando detalhes do método, ninguém põe foto da família chorando, porque isso incentiva. Pode dar ao suicida o momento dele de fama, de vingança, de notoriedade. É aí que você contamina pessoas que estão propensas. A forma produtiva de falar é dizer que o suicídio é um problema que existe, que afeta a sociedade, que faz parte de uma trama social, que está aumentando e que uma parcela de mortes pode ser evitada. Os últimos dados consolidados, de 2012, mostram que diariamente 32 pessoas tiram a vida no Brasil. Temos boas razões para achar que o número é no mínimo 20% maior. Podemos falar em 40 mortes por dia no país. Se houvesse um acidente rodoviário em que 40 pessoas morressem, seria manchete. Mas o suicídio é um assunto difícil. No âmbito da família, se torna quase um segredo. No âmbito da sociedade também não se fala muito, porque o normal é querer viver. Então é um assunto tabu.
Existe um grupo de risco para suicídio?
A gente fala em grupos de risco, que são as pessoas profundamente deprimidas, as pessoas que, além de deprimidas, estão agitadas, desesperadas, com instabilidade de humor, que não conseguem conter as emoções.
As pessoas sempre dão sinais de que podem estar em risco?
Na maioria das vezes. Mas nós não estamos propensos a olhar, observar, interpretar e agir em cima dos sinais. A gente costuma dizer: “Não, todo mundo fala que vai se matar”, ou “esse jovem está só querendo chamar a atenção”. Uma regra básica é levar a sério sempre que uma pessoa fala sobre suicídio, sempre que um jovem começa a falar mais em morte, a frequentar sites sobre morte.
Em uma campanha como o Setembro Amarelo, o problema é exposto para toda a sociedade. Qual é a importância de envolver a população?
A importância, em primeiro lugar, é informar que uma parcela dos suicídios pode ser evitada. Como? Se pudermos detectar pessoas que estão sofrendo muito em termos mentais e conduzi-las a um serviço especializado em atendimento psiquiátrico ou psicológico. E os sinais de alerta, a gente só vai dar importância a eles se houver conscientização.
Todo mundo pode ajudar na prevenção?
A ideia é essa. Por isso que a população tem de ser conscientizada. Se estiver um pouco mais consciente, passa a entender que o problema existe e que pode acontecer com uma pessoa que está próxima. Nada vai acontecer se não houver uma pessoa que percebe que outra está em risco e que diz: “Vamos conversar, eu vou te ajudar, eu vou com você¿.
O que fazer para ajudar quem está em risco?
A primeira recomendação é ouvir a pessoa sem julgá-la, sem tentar convencê-la de que a vida é bela, de que ela tem filhos lindos, de que suicídio é pecado. Despejar uma série de regras morais ou religiosas não ajuda. Ajuda é a pessoa sentir que está sendo ouvida e compreendida. Muitas pessoas, até pela problemática delas, não conseguem telefonar, marcar horário, procurar um serviço de saúde. Então o segundo passo é conduzi-la até um local, até um profissional que possa ajudar. O terceiro passo é acompanhar. Imagina uma pessoa muito deprimida. Ela não tem motivação nem para o banho, o que dirá para enfrentar o serviço do SUS do jeito que está.
Os serviços estão aparelhados para a prevenção?
A conscientização dos profissionais de saúde está aumentando. Mas temos um problema no Brasil que é a disponibilidade de serviços de saúde mental. Às vezes é difícil encontrar uma porta aberta que receba pronta e adequadamente. O Brasil está entre os países onde os índices de suicídio aumentam. Mas que passos o país tem dado? Poucos. Em 2006, o Ministério da Saúde reuniu um grupo de estudiosos e promulgou diretrizes para a prevenção. Após essas diretrizes, deveria haver um plano, com recursos orçamentários. Isso nunca aconteceu. Em termos governamentais, o Brasil não faz o esforço que deveria. Por outro lado, organizações não governamentais, como o CVV, estão encampando essa luta.
A crise econômica preocupa?
Sim, é um momento mais delicado e causa mais depressão, desesperança, uma sensação de profundo desamparo e falta de perspectiva. Para pessoas mais propensas à depressão, a crise econômica e a perda de emprego podem levar ao suicídio.
Quem sobrevive a uma tentativa de suicídio passa a se sentir melhor?
Existe um cenário de esperança, em que a pessoa se fortalece e nunca mais tenta o suicídio. Mas também há um segundo cenário, em que a pessoa faz a tentativa, chega a um pronto-socorro, os profissionais atendem rapidamente, podem até falar frases maliciosas, e aí essa pessoa, não tendo atenção e não tendo atendimento, quando enfrentar outra adversidade vai tentar o suicídio de novo.
A depressão ainda é uma doença estigmatizada?
Vinte anos atrás, aids era um tabu. Há 30, ninguém podia falar a palavra “câncer”. Hoje já se encara esses diagnósticos com menos preconceito. Em relação a risco de suicídio, acredito que vamos ter o mesmo caminho. Quando comecei na psiquiatria, havia pessoas que pediam um horário em que não fossem encontrar ninguém. Hoje, se encontram na sala de espera, se cumprimentam, se falam.