Especialistas estimam que cerca de 90% dos suicídios são evitáveis. Mesmo assim, uma pessoa se mata no mundo a cada 40 segundos e essa é a segunda maior causa de mortes entre jovens de 15 a 19 anos de idade, segundo a OMS. Dados como esse chamam a atenção para o problema de saúde pública que o suicídio representa dentro da sociedade.
Foi para entender melhor o funcionamento dos processos mentais envolvidos no suicídio que a GALILEU conversou com o psiquiatra Neury Botega. Neury é médico psiquiatra e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Uma de suas especialidades é o tratamento da ideação suicida e o impacto da depressão na saúde. Ele já escreveu livros como Crise Suicida: Avaliação e Manejo, Comportamento Suicida, entre outras obras consideradas referência no assunto no Brasil.
GALILEU: Existem estudos mostrando a relação de distúrbios mentais como depressão, bipolaridade e esquizofrenia com o suicídio?
Foram feitos muitos estudos realizados retrospectivamente, ou seja, depois da ocorrência do suicídio, com as vítimas. Tem uma compilação de vários deles feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Nessas pesquisas foram entrevistados familiares, amigos, médicos e psicólogos de pessoas que se mataram e em 90% dos casos de suicídio havia um transtorno mental diagnosticável envolvido. Consideram-se transtornos mentais a depressão, a dependência de álcool, o transtorno bipolar e traços impulsivos e agressivos de personalidade fortes o bastante para caracterizar um transtorno de personalidade. Essa coleta de dados sobre várias centenas de suicídios mostram a constante associação do fenômeno com o transtorno mental. Exatamente por isso que o suicídio passou a ser uma das prioridades de prevenção da OMS.
Em qual dos transtornos o indíce de suicídio é maior?
Em metade dos casos é a depressão. Em segundo lugar vem o transtorno afetivo bipolar e em terceiro a dependência de álcool e outros drogas. Depois vem os transtornos de personalidade que tem como característica muita instabilidade de humor e impulsividade, seguido pela esquizofrenia.
Como a dependência de psicoativos é a terceira maior causa de suicídio, como é possível determinar a diferença entre uma morte proposital e uma acidental, como uma overdose por exemplo?
Pra gente afirmar que um caso foi suicídio a gente tem que ter alguma certeza da intenção letal da pessoa. Muitas pessoas encontradas vítimas de uma overdose dexam essa dúvida: será que foi um acidente ou foi feito propositalmente para levar à morte? Nesses casos, muitas vezes, aparece no atestado de óbito a seguinte descrição “morte com intenção indeterminada”.
Por isso acreditamos que a taxa de suicídio pode ser 20% maior do que mostram os dados oficiais. Porque em muitos atestados de pessoas que falecem por acidentes, afogamento e quedas, por exemplo, sabemos que o motivo pode ter sido o suicídio. Ainda que isso não apareça no documento. Isso acontece porque primeiro, não é toda localidade que tem um serviço de verificação de óbito. E segundo, mesmo quando temos esse serviço, para ter certeza de que se trata de um suicídio, é preciso ter indícios de que a vítima possuía alguma intenção de tirar a própria vida.
Quais são os processos neuroquímicos que levam ao suicídio?
Existem pesquisas que mostram como nos casos de suicídio em que houve muita impulsividade e agressividade no ato suicida existe uma maior chance de haver um distúrbio no sistema da serotonina. Nós já temos comprovações ao nível da biologia molecular demonstrando que nesses casos de muita impulsividade e agressividade há uma diminuição do funcionamento serotominésico. A serotonina é um neurotransmissor e o que condiciona o funcionamento do sistema serotominésico é uma série de genes.
O que temos nestes casos em específico é uma redução da função desse sistema. Por exemplo, pode haver déficit na produção de serotonina, déficit no transporte dela, e todos esses pontos são condicionados por um ou mais genes. É por isso também que poderíamos falar em uma propensão biológica herdada para traços de impulsividade e agressividade que levam indiretamente ao suicídio. é importante frisar que não dá pra gente falar em genes que causam suicídio, mesmo porque isso é um fenômeno muito complexo e nós evitamos falar em uma causalidade simples e única. O que temos condicionado biologicamente e geneticamente são esses genes, que são ativados ou desativados e que influem em sistemas de regulação do nosso humor e da nossa impulsividade.
Essas fatores, impulvidade, agressividade, são determinantes para que um paciente com depressão chegue ao ponto suicida, por exemplo?
É exatamente isso, quando vários fatores de risco vão se combinando, aí sim o perigo vai se aproximando. Um paciente com depressão, muito impulsivo, que começa a beber diariamente, vive sozinho, tem um avô que já se matou e foi traído pela esposa tem chances enormes de ter ideação suicida. Esses fatores vão se juntando e vão fazendo com que a pessoa sinta uma dor psíquica isuportável. Essa dor existencial é tão grande que o paciente só vê a morte como real saída.
Qual a porcentagem das pessoas que mostram sinais de comportamento suicida antes de realmente chegar ao ato?
Já temos algumas pesquisas norte-americanas mostrando como a porcentagem de jovens que tenta suicídio ao final de um período de poucos anos é maior naquele subgrupo que já relatou para os pesquisadores algum sinal de ideação suicida. Por exemplo, entre aqueles que chegam a planejar o suicídio, ao final de um ano 52% chegam a tentá-lo de verdade. As tentativas ocorrem mais frenquentemente nas pessoas que falam sobre morte, demonstram considerá-la uma opção. Isso fica mais forte ainda naqueles que fazem planos, pesquisam métodos. Falar em suicidio, fazer postagens sobre o encontro com o fim, idolatrar pessoas que se mataram, tudo isso nos dá um alerta para ficarmos atentos.
Existem remédios específicos para pacientes que apresentam ideação suicidda?
O que fazemos a curto prazo é receitar medicação para reduzir o grau de impulsividade, de agitação e de insônia. Dessa forma, podemos ganhar tempo para poder trabalhar com a pessoa em uma psicoterapia ou com medicamentos antidepressivos. Afinal, alguém que não consegue dormir, muito ansioso, muito impulsivo, tem mais chances de chegar ao ato em si em um momento de desespero. No médio prazo, tratamos com antidepressivos as depressões mais graves, pois a resposta desse tipo de droga demora em média duas semanas. A longo prazo existem os estabilizadores de humor. O principal é o lítio, que comprovademente diminui o número de tentativas de suicídio em 60% para pacientes com transtorno bipolar.
Uma educação emocional desde cedo seria útil na prevenção do suicídio?
Sim, nós já temos estudos mostrando que quando ensinamos crianças e adolescentes a lidar melhor com momentos dificies da vida, sob o ponto de vista emocional, esse grupo evolui melhor, tem menos tentativas de suicídio. Esse é o tipo de educação em que levamos em conta as necessidades emocionais, a necessidade de conversar em situações conflitantes. E isso pode ser feito em casa, em escolas. É preciso aurtoconhecimento para melhor suportar as angústias, os problemas. Um exemplo bom de atividade para treinar isso seria a dramatização de situações. Você fazer uma espécie de teatrinho na classe e discutir os sentimentos envolvidos, assim a criança vai percebendo como o outro se sentiu, aprende a empatizar e a criar mecanismos para lidar melhor com as dificuldades.
Que outras medidas funcionam na prevenção do suicidio?
De um mode geral, é preciso conscientizar as pessoas do risco de suicídio. Algo simples, que recomendo, é seguir essa sigla simples: o ROC. Primeiro, é preciso reparar no Risco. Fique atento aos sinais. Quando alguém fala em se matar, muda de comportamento, se isola, essa pessoa precisa urgentemente da sua atenção. O segundo passo é Ouvir. Ouvir com atenção, sem fazer julgamentos morais ou religiosos. Estar lá para escutar o que essa pessoa está precisando dizer. E o terceiro é Conduzir. Conduza a pessoa para um profissional de saúde mental, encorajando-a a pedir ajuda.