O suicídio é ato humano complexo e, embora as tentativas sejam bem mais frequentes, não devem ser vistas como somente uma forma de chamar a atenção. Os números de suicídio vêm em todo o mundo aumentando de maneira considerável. De maneira geral, é mais comum entre os homens com idade entre 25 e 35 anos, ao passo que as tentativas de suicídio são mais usuais em mulheres com idade entre 18 e 30 anos. Há alguns indicadores de suicídio, embora novamente não se obtenha consenso entre os autores: o suicídio estaria altamente relacionado aos desempregados, brancos, com patologia psiquiátrica, uso de álcool e drogas, tal como com tentativa de suicídio anterior. Entre as pessoas que tentam o suicídio é comum a presença de problemas psicossociais, tais como: separações, perdas de pessoas queridas e perda de emprego.
O suicídio está bastante relacionado a vários tipos de doença. Já foi referido, entre outras, à AIDS, a pós acidente vascular cerebral, ao infarto do miocárdio, à esclerose múltipla, à doença de Parkinson e à insuficiência respiratória crônica de diversas etiologias. Dentre as doenças, as psiquiátricas são as mais relatadas. Os resultados entre os vários pesquisadores, no entanto, são discrepantes, colocando-se como prevalentes: a depressão, a ansiedade, os delírios, os transtornos de personalidade e o uso de substâncias psicoativas.
Existe uma tendência questionável, por parte da literatura psiquiátrica, de sempre associar o suicídio à doença mental, principalmente à depressão. A ideação suicida e a tentativa de suicídio são critérios diagnósticos desta doença nos códigos vigentes. É difícil imaginar, entretanto, que a pessoa que sobrevive a uma tentativa de suicídio não esteja desanimada, frustrada. Assim, o diagnóstico de depressão, nestes casos, é delicado.
Este pressuposto do suicídio= doença mental pode, por um lado influenciar a postura do médico diante do suicídio e, por outro, na clínica, atitudes por vezes inadequadas podem ser impostas, como a retirada da autonomia do paciente mediante o uso de medicações antidepressivas em condições não tão claras. Tal questão é igualmente crucial para aqueles que elaboram estratégias para a prevenção do suicídio. A maior parte dos suicidas não passa por avaliação prévia.
As relações entre suicídio e doença mental são confusas. Não é possível, entretanto, não associar o suicídio com a doença mental, as taxas desta entre os suicidas é ao redor de 90%. Muitos casos de suicidas nunca foram avaliados por um médico ou psicólogo, nem era possível relacionar seu suicídio a algum problema de saúde, os dados são de familiares ou de profissionais de saúde que acompanharam os casos (chamada autópsia psicológica) que não deixam de serem dados suspeitos no que diz respeito à avaliação de situação tão contaminada do ponto de vista emocional.
Em 1995 defendi meu doutorado, com a orientação do Prof. Carol Sonenreich, avaliando o significado da morte e do suicídio, para pacientes que tentaram o mesmo. Encontramos que o suicídio nem sempre é resultante de doença mental. Para nós, a doença mental acontece quando a pessoa perde a capacidade de escolher e agir de acordo com a sua vontade. A doença limita a liberdade da pessoa para agir, tal como quando se deixa de sair por medo de sofrer ataque de pânico, ou de realizar uma vontade por achar que o mundo irá logo acabar, ou ter que agredir uma pessoa por estar sendo comandado por vozes. Deste modo, a doença mental ocorre quando se perde a liberdade de escolha.
No caso do suicídio patológico, a morte não configura uma escolha deliberada, mas é ação norteada pela doença. Sem dúvida, a doença mental acarreta maior possibilidade de suicídio, constituindo um dos fatores preditivos mais poderosos ao lado de prévia tentativa de suicídio; porém, nem todos os suicidas estão doentes mentais.
Um homem idoso que sempre fora ativo, trabalhara e praticara esportes até sobrevir infarto extenso. Era definido como sério, equilibrado, quieto e confiante. Na fase de recuperação, mantivera grande parte de suas atividades enquanto seguia o tratamento. Com o progredir da doença coronária, suas limitações foram aumentando, manifestando-se intensa dispneia. Nos últimos dois meses de vida sofrera duas internações por fibrilação atrial, edema pulmonar e insuficiência renal. Até para a alimentação ficava dispneico. Pedira alta precoce, confidenciando à enfermeira que não acreditava em melhora. Uma semana antes do suicídio fora visto por seu médico, o qual lhe confirmara o prognóstico. No dia seguinte matou-se com um tiro na cabeça. Os autores do relato afirmam o diagnóstico de depressão com base na anedonia, diminuição do apetite e isolamento. Contudo que prazer, que apetite, que condições teria semelhante pessoa para conversar em seu estado atual? Principalmente por tratar-se de paciente que sempre fora autossuficiente física e emocionalmente. O diagnóstico de depressão é, ao meu ver, questionável.
Alguns suicídios de pessoas famosas, como o de Artur Koestler – que sofriam do mal de Parkinson – também poderia ser atribuído à depressão, mas o que teria levado a sua jovem e saudável esposa a acompanhá-lo no ato? Morrer seria a recusa de uma vida inaceitável para os dois. O mesmo podíamos pensar a respeito de Robin Williams.
O caráter patológico, ou não, do suicídio e o risco de suicídio podem ser avaliados em função do que representa para a pessoa morrer ou viver. Quem encara a morte como um grande e total silêncio, um repouso, não hesitará diante de um ato que coloca fim a seus sofrimentos. Mas se a morte é um sono com sonhos impõe-se pelo menos uma reflexão, a qual inibe um ser sadio a jogar-se no desconhecido. Se, por crença religiosa, os indivíduos acreditam que o suicídio conduz à glória de Deus, ou que leva ao inferno, é de supor que diversa será a atitude diante da morte…
O suicídio pode ser heroico, sagrado ou irrelevante. Para uma pessoa sem objetivos e sem expectativas futuras, o suicídio é considerado como ato imediato, sem questionamentos quanto ao que virá depois, ou o que pensaria amanhã caso não se matasse. Portanto, o suicídio pode ter diversos significados, um para cada paciente, bem como estes podem variar consideravelmente no mesmo paciente.
Alguns de nossos pacientes, após grave tentativa de suicídio, negavam-na, desqualificavam-na, tirando sua responsabilidade do ato. Por sua vez, não foi possível detectar o menor sinal de risco de suicídio em outros pacientes examinados; contudo, logo em seguida, o ato era realizado. Este foi o caso de um dos pacientes que vieram espontaneamente à consulta, segundo ele, para manter-se bem. Não apresentava sinal de que iria matar-se, mas suicidou-se três dias após a consulta.
Nos casos onde não conseguimos associar o suicídio a uma doença mental encontramos a resolução de acabar com a vida por diversos motivos: fuga ao sofrimento causado por doença sem prognóstico, significando escolha de como morrer; saída romântica de adolescente incapaz de enunciar seu amor, planejando que o anúncio deste, como prova de amor, se desse pela própria morte; opção por parte de pessoas sem coragem de expor atitudes que elas consideram impróprias às pessoas que consideram. Nestes casos, a morte significa a retomada da dignidade e decência, ao invés de perpetuar suas fraquezas diante daqueles que tinham em conta esses indivíduos. A morte e o suicídio significavam a saída.
As dúvidas sobre a morte e o suicídio nos acompanham há séculos. Cícero (1991), em 45 a.C., em Tusculano, filosofava a respeito da morte, perguntando-se: a alma morre com o corpo como postulavam os estóicos? Ou permanece após a morte corporal e permite ascender a uma vida sem sofrimentos e inquietações? Se os mortos não são infelizes, nós, os vivos, que sabemos que vamos morrer, podemos ter prazer em uma vida precária, que pode acabar a qualquer momento? Sócrates declarara após a sua condenação: “… uma esperança firme me anima, juízes, porque ser mandado à morte é felicidade para mim.
De duas coisas, uma: ou a morte nos tira a consciência, ou ela é passagem daqui para outro lugar. Portanto, se a morte é o apagamento de qualquer sentimento e parece um destes sonos sem sonhos que nos trazem às vezes profundo descanso, grandes deuses, que vantagem preferir o dia a tal noite…” (Platão, 1999:95). Platão (428-348 a. C.) considerou o suicídio moralmente aceitável. Para Panetius, aluno de Platão, tudo que é gerado destina-se à morte. Este seria o caso das almas também. Nessa mesma época, outros reagem: nada prova que as almas “nascem”. Por sua vez, outro aluno de Platão, Aristóteles (384-322 a. C.), qualificou o ato de covardia. Zenon (séc. IV a. C) disse que o homem sábio abandona o banquete da vida justa de maneira direita, em condições justas.
Em certas situações, o suicídio pode ser entendido como ato de extrema nobreza, mas, em outras, como indigno. Ajax, na Ilíada, mata-se por vergonha. Antônio, vencido, e Cleópatra, para fugirem à escravidão. Seriam covardes, nobres ou loucos?
Dezessete séculos depois, Hamlet parece repetir Sócrates e Cícero em suas dúvidas quanto à morte e ao suicídio. Para os budistas, a morte é irrelevante. Para um samurai o suicídio é ato de nobreza e liberdade. Matam-se mesmo adeptos arraigados das religiões cristãs e mosaicas, apesar de nestas ser comum a condenação do suicídio. Nos textos sagrados, ambas as conotações atribuídas ao suicídio são vacilantes. Abimelec pede para ser morto após ter tido seu crânio quebrado por uma mulher. O rei Saul, após a derrota pelos pelos Filisteus: “para que não venham estes incircuncisos e escarneçam de mim”. Sansão, para matar os Filisteus. Seguem-se vários suicidas heróis e santos: rei Zambí, Aquitoetel, Eleazar, Razis, Santa Apolonia e Santa Pelágia.
Ao longo da história encontramos tanto propostas de condenação quanto de exaltação do suicídio. A morte pode ser vista como silêncio absoluto, como sono que não difere radicalmente da vida ou como caminho do inferno ou do paraíso. É também ambígua para a mesma pessoa: a morte leva para o lado de Deus ou joga no inferno? E, tantas vezes, a dúvida permanece: o que me espera após a morte? Persistem as oscilações entre manifestações opostas. Diante do suicida que manifesta intenção de novas tentativas temos que estabelecer aproximação com o que a pessoa, nosso paciente, está vivendo.
A incapacidade de prever o suicídio está relacionada à variabilidade e à inconstância dos significados atribuídos à morte e ao suicídio. Esta angústia e a consciência de nossa impotência podem confortar-nos e fazer com que não tomemos medidas por vezes intempestivas e inefetivas.
O suicídio é fenômeno paradoxal. De um lado aparece como a mais pessoal das ações que um indivíduo pode cometer. De outro, é ubíquo; ocorre ao longo da história humana. Em todos os cantos do mundo e, amiúde, em determinadas circunstâncias demonstra tamanha similaridade, que é possível concluir que os fatores sociais desempenham papel importante, senão decisivo.
O ato suicida é ou a aplicação de uma ideia patológica, ou escolha deliberada de pessoa sem patologia mental. Participam desta decisão elementos que não podem ser quantificados. É preciso estudar, ao lado das pesquisas quantitativas, outros aspectos. A análise dos “significados” é indispensável para o tratamento.
Para a questão do “suicídio”, os estudos quantitativos são indispensáveis; para a pessoa “suicida” impõe-se abordagem individual, histórica e qualitativa, afora a abordagem do clínico.