No fim de agosto do ano passado, duas tragédias envolvendo suicídio deixaram os brasileiros perplexos.
Dois homens se suicidaram – um no Rio de Janeiro (RJ), outro em São Paulo (SP) – e, por meio de cartas, atribuíram a decisão de encerrar as próprias vidas a problemas financeiros. Em ambos os casos, o choque foi agravado porque os suicídios envolveram outras mortes: no caso do Rio, o homem matou a mulher, os dois filhos, e depois se matou. Em São Paulo, o homem se jogou com o filho no colo.
O silêncio quanto à divulgação de suicídios, até então dominante na imprensa e nas redes sociais, deu lugar a um grande barulho e a uma farta e imponderada exposição de detalhes. Entre tantas especulações e julgamentos, a questão fundamental ficou soterrada, principalmente pela nossa dificuldade em lidar com o assunto: suicídios são frequentes no Brasil e no mundo e são um urgentíssimo problema de saúde pública.
O Brasil é o oitavo país em número absoluto de suicídios (32 mortes por dia), e o fato de ser uma tragédia frequentemente subnotificada pode esconder números ainda mais alarmantes.
Se não falamos de suicídio, perdemos a oportunidade de refletir sobre sua frequência e sobre sua prevenção.
O suicídio visto como um problema de saúde pública é algo recente no Brasil. Foi só no fim de 2005 que o Ministério da Saúde deu início à elaboração de um Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, com representantes do governo, de entidades da sociedade civil e das universidades, de acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Por ser saúde pública, é necessário discutir o assunto e promover mudanças a respeito, explica Enrique Bessoni, mestre em Psicologia Clínica e Cultura e analista da Fiocruz Brasília:
“Por exemplo, o que fazer com aquele prédio ou ponte localmente conhecido como ponto de tentativas? Ou com o local onde há acesso a meios de se matar, como regiões agrícolas e agrotóxicos? Situações como essas exigem planos e ações de intervenção – como uma empresa que espalhou uma série de mensagens no parapeito de uma ponte. Ou um shopping em Brasília que fechou seu vão central e sensibilizou profissionais de sua equipe para estarem atentos ao edifício.”
Ainda assim, o tabu em torno da morte voluntária não só resiste como ainda alimenta estigmas, como o de que o suicídio é a escolha de pessoas “fracas” ou “covardes”. “As pessoas são levadas a se sentirem envergonhadas, excluídas e discriminadas”, afirma a ABP.
A subnotificação do suicídio está relacionada ao estigma em torno do assunto e às intervenções feitas após a tentativa, explica Bessoni:
“O estigma produz vergonha, principalmente, para familiares e para a própria pessoa, quando perguntada, após tentativas, sobre o que ocorreu. A intervenção exige, por sua vez, rapidez e agilidade em atender a uma chamada após a tentativa, gerando dificuldade para registrar a ocorrência. Isso ocorre principalmente em casos de politraumatismo [mais de uma sequela], quando apenas uma investigação posterior permite identificar que se tratava de uma tentativa de suicídio.”
Há 54 anos atuando na prevenção do suicídio no Brasil, o Centro de Valorização da Vida (CVV) pondera que pessoas de todas as idades e classes sociais se suicidam.
“Pensar em suicídio faz parte da natureza humana, sendo muito mais frequente do que se imagina”, acrescenta a psicanalista Soraya Carvalho, coordenadora do Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio (NEPS), na Bahia, e autora do livro A morte pode esperar? Clínica psicanalítica do suicídio (Campo Psicanalítico, 2014).
“O suicídio ou o autoextermínio sempre esteve presente na História da humanidade, com referências desde o Velho Testamento até os dias atuais. O que muda é sua compreensão e significado a depender do momento histórico e cultural.”
“O impulso também é uma reação natural, porém é mais comum nas pessoas que estão exaustas por dentro e emocionalmente fragilizadas diante de situações que despertam possibilidade de suicídio”, descreve a cartilha Falando Abertamente sobre Suicídio, do CVV.
Segundo a especialista, todo ser humano é passível de pensar, elaborar e até realizar um ato suicida, uma vez que o suicídio é uma manifestação humana, uma forma de lidar com o sofrimento quando ele toma dimensões insuportáveis.
“É um ato radical que expressa dor, desespero e desesperança diante da vida. Quando o sofrimento atinge níveis intoleráveis, a morte, muitas vezes, se apresenta como única saída capaz de pôr um fim a dor de existir. Nesses momentos, a pessoa inicia uma busca incessante de acabar com seu sofrimento. Por isso, quando alguém se decide pela morte, ele necessita ser acolhido, escutado, respeitado. É alguém que precisa de ajuda e não de críticas, julgamentos ou condenação.”
Um copo cheio que transborda
Nos casos citados no começo desta reportagem, muito se falou em “suicídio por causa do desemprego ou da crise econômica”. Esta é mais uma informação divulgada equivocadamente, já que o suicídio não se dá por acontecimentos pontuais, como uma demissão ou o fim de um relacionamento. “O suicídio é o desfecho de uma série de fatores que se acumulam na história do indivíduo”, esclarece a ABP.
Segundo o CVV, cujo trabalho de prevenção é feito com a consultoria de médicos, psicólogos, institutos de pesquisas e outros serviços ao redor do mundo, “são raríssimos os casos, para não dizer inexistentes, em que a tentativa de suicídio possui uma única motivação”. A ideia suicida vem do acúmulo de situações, como um copo que vai se enchendo e que transborda com uma gota d’água (como a perda de um emprego), levando à sensação de total impotência e desespero.
“Dificuldades financeiras, assim como guerras, ditaduras e outros cenários críticos podem ser fatores de pressão externa e ‘adicionar água ao copo’ de muitas pessoas, mas não podem ser apontados como motivos exclusivos de suicídio. Cada pessoa tem um limite próprio e reage de maneira diferente aos mesmos estímulos, então é essencial sempre encontrar maneiras de ‘esvaziar o copo’ antes que chegue na borda.”
“Esvaziar o copo” parece ser o grande desafio, especialmente em nossa cultura, orientada para a felicidade sem limites, a intolerância às frustrações da vida, a rejeição à tristeza e a anulação da subjetividade, isto é, aquilo que torna cada um de nós tão singular.
Dificilmente pensamos em reconhecer o sofrimento e fazer algo a partir dele; por muitas vezes, precisamos de ajuda profissional para lidar com as dificuldades – e ela pode ser vital. Seja no trabalho ou na vida pessoal, há pouco ou nenhum encorajamento para se mostrar vulnerável e dizer “isso passou do limite, preciso me cuidar”.
Sim, admitir que o copo está enchendo é visto como fraqueza em nossa sociedade. E assim como o suicídio, a saúde mental fica nas sombras do estigma e do tabu.
“Penso que o nosso sistema de organização social não faz do mundo um lugar saudável para se viver. A super-exigência, desde crianças, de termos ‘sucesso’, definido como ‘ter dinheiro’, foi minando determinados valores, atitudes e comportamentos que nos ajudaram a viver uma vida mais plena. A solidariedade é desvalorizada enquanto cresce o individualismo”, critica o psicólogo Marco Antonio Campos, representante do Chile na Associação de Suicidologia para América Latina e Caribe:
“A necessidade de ter sucesso, definido como ter mais e mais, está em ascensão, enquanto o carinho e o apoio emocional estão em baixa. A ‘produtividade’ se tornou uma prioridade em nossa existência, enquanto o lazer e o tempo para desfrutar da vida têm sido relegados para último lugar.”
“No mundo globalizado regido pelo discurso capitalista não há lugar para o fracasso, a tristeza, o mal-estar da civilização, e o homem é mais um item a ser consumido. Dessa forma, quando o sujeito não consegue atingir os critérios preestabelecidos pelo capitalismo, sente-se destoante e incompatível com o mundo a sua volta, isola-se, e, muitas vezes, sucumbe a um sofrimento. Como um estrangeiro da própria vida, pode adoecer e até mesmo partir para um ato suicida”, analisa Carvalho.
É importante ressaltar que, no suicídio, não deve haver espaço algum para a generalização: passar por dificuldades na vida não significa que alguém necessariamente vá se matar. As pessoas respondem ao sofrimento de maneiras bastante variadas, e não se trata de uma escala em que “uns aguentam, outros não”.
Mas se o sofrimento é demonizado, condenado ou reprimido, não há qualquer estímulo para que se compartilhe a dor com alguém. O desejo de se matar deixa de ser falado ou discutido, e perde-se a chance de investigá-lo, dissolvê-lo e dar ao sofrimento outro destino que não a morte de quem o sente.
Além de compartilharem o tabu, saúde mental e suicídio estão bastante relacionados. Crescem as evidências de que por trás do suicídio há, quase sempre, um problema de saúde mental, muitas vezes não tratado ou tratado inadequadamente.
O psiquiatra brasileiro José Manoel Bertolote, do Departamento de Saúde Mental da OMS, analisou informações sobre 15.629 suicídios ocorridos em diferentes regiões, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. O estudo consta do artigo Por um Fio, publicado na revista Pesquisa, da Fapesp, em 2009. Em 97% dos casos, quem se suicidou apresentava algum transtorno psiquiátrico.
“Em situações de depressão grave, a pessoa manifesta sua desesperança e desespero”, exemplifica o psicanalista Roosevelt Cassorla, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp):
Por isso é importante que, frente ao sofrimento mental, a pessoa seja cuidada. Quadros depressivos graves se relacionam à maioria dos suicidas. Outras situações envolvem, em pessoas vulneráveis, queda da autoestima, da autoidealização, contato com frustrações severas, dores físicas, situações de sofrimento social extremo e psicoses.
Procurar ajuda profissional para lidar com os problemas de saúde mental e ter um espaço de escuta são fundamentais para a prevenção do suicídio, assim como a melhoria dos serviços de saúde e a intervenção efetiva em pacientes com risco de suicídio.
“Uma tentativa de suicídio é o principal fator de risco para outra tentativa e para o próprio suicídio. Abordar adequadamente esse indivíduo pode garantir que sua vida esteja salva no futuro”, alerta a ABP.
“Pessoas que pertencem a famílias em que já ocorreram suicídios podem ser mais vulneráveis”, diz Cassorla, que acrescenta também que pessoas que tentaram suicídio e sobreviveram também merecem atenção especial:
“Mesmo que o ato seja de pouca gravidade médica, não deve ser menosprezado, pois se trata de uma mensagem ao ambiente, um pedido de socorro. O profissional de saúde mental avalia os fatores predisponentes, o grau de sofrimento emocional e os riscos. Dessa forma, efetua a prevenção e o tratamento.”
Carlos Correia, voluntário do CVV, acrescenta que ajuda muito demonstrar que nos preocupamos com a pessoa que tentou o suicídio e que estamos disponíveis caso ela precise.
O fato de ela não morrer não significa que tenha resolvido a causa desse ato. Muitas vezes, acumula ainda mais problemas, pois além de eventuais sequelas físicas decorrentes da tentativa, ela passa a contar com o estigma dos conhecidos que a tacham de ‘suicida’, ‘fraca’, ‘esquisita’.
Mito: Quando um indivíduo mostra sinais de melhora ou sobrevive à uma tentativa de suicídio, está fora de perigo.
Por que é falso: Um dos períodos mais perigosos é quando se está melhorando da crise que motivou a tentativa, ou quando a pessoa ainda está no hospital, na sequência de uma tentativa. A semana que se segue à alta do hospital é um período durante o qual a pessoa está particularmente fragilizada.
Uma sessão de aconselhamento, seguida de uma chamada telefônica a intervalos de algumas semanas durante um ano e meio, bastou para reduzir em 10 vezes a taxa de suicídio entre pessoas que já haviam tentado pôr fim à vida, descreve o psiquiatra Neury Botega, professor da Unicamp. Ele coordenou o grupo que testou no Brasil a eficácia dessa estratégia de intervenção.
“A prevenção mais ampla implica melhores condições de vida e identificação precoce de pessoas mais vulneráveis ao sofrimento mental, físico e social”, finaliza Cassorla.
Falar de suicídio não é só doloroso pelos efeitos que o ato provoca, mas também por expor nossa impotência diante de situações que muitas vezes escondem os pedidos de ajuda. Se o assunto é difícil por nos lembrar da morte, podemos então falar de vida: a vida que é vivida, sem rodeios, e o que fazer para ajudar a torná-la suportável e digna do desejo de viver.
Caso você — ou alguém que você conheça — precise de ajuda, ligue 141, para o CVV – Centro de Valorização da Vida, ou acesse o site. O atendimento é gratuito, sigiloso e não é preciso se identificar. O movimento Conte Comigo oferece informações para lidar com a depressão. No exterior, consulte o site da Associação Internacional para Prevenção do Suicídio para acessar redes de apoio disponíveis