O suicídio entre idosos é como aquele segredo de família que todos sabem existir, mas sobre o qual ninguém ousa falar. Tema tabu em qualquer faixa etária, a morte autoafligida soa paradoxal na terceira idade, quando tantas agruras da vida já foram superadas. As estatísticas, porém, alertam que esse silêncio precisa ser quebrado. Em todo o mundo, as maiores taxas de tentativas e atos consumados estão nas faixas etárias avançadas. No Brasil, não é diferente.
Os dados nacionais ainda são escassos, mas evidenciam que o país acompanha a tendência global. O Mapa da Violência 2014, organizado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, aponta que, acima dos 60 anos, há oito suicídios por 100 mil habitantes, taxa maior que a registrada entre outros grupos etários. Entre 1980 e 2012 — período avaliado no estudo —, houve crescimento de 215,7% no número de casos entre os idosos. Da mesma forma que ocorre com os mais jovens, os homens são as principais vítimas. Aos 75 anos, de acordo com o Ministério da Saúde, a razão é de oito a 12 suicídios masculinos por um feminino.
Outro retrato do tema foi traçado por pesquisadores de sete instituições acadêmicas que, em 2012, publicaram uma edição especial da revista Ciência & Saúde Coletiva com dados quantitativos e qualitativos, coordenados pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Enasp/Fiocruz). Um dos trabalhos utilizou o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, para calcular os registros de suicídio de pessoas com mais de 60 anos entre 1996 e 2007. Nesse período, os pesquisadores identificaram 91.009 mortes autoprovocadas, sendo que 14,2% ocorreram entre idosos.
“Existe essa impressão que o idoso não se mata porque está no fim da vida, porque passou pela adolescência, estabeleceu uma família, já enfrentou o pior da vida. Não é bem assim”, diz a psicóloga Denise Machado Duran Gutierrez, professora da Universidade Federal do Amazonas e autora de três artigos publicados no especial da Ciência & Saúde Coletiva. “Na terceira idade, especialmente quando há doença degenerativa, com perda de capacidade funcional e dor crônica, e quando há perda de laços referenciais e de uma série de suportes, o idoso fica muito vulnerável”, destaca.
Decisão racional
De acordo com a especialista, também é preciso levar em conta que as tentativas de suicídio na terceira idade costumam ser definitivas. “Diferentemente de outras etapas da vida, que se pode pensar no suicídio por impulso, por uma dor de amor, um arroubo de fúria, uma tristeza, o idoso não vive esse tipo de situação. Tem um período de tomada racional de decisão. Em média, o jovem faz 20 tentativas para um efeito, o suicídio. No idoso, são quatro tentativas. Muitas vezes, não há tentativa, é única. Eles usam métodos definitivos.”
Por trás do desejo de antecipar o fim da vida, estão as perdas. Perda de saúde, autonomia, produtividade, papéis sociais. Perda de cônjuges, amigos, cuidadores e de outras pessoas nas quais eles depositam confiança. “A depressão tem um papel muito importante, assim como as questões de aspectos sociais da terceira idade, como a de estar passando por mais perdas, estar passando pela aposentadoria e não se sentir mais útil, de os filhos terem saído de casa, de ele ter mais dificuldade de se encaixar em uma sociedade como a nossa, que não está ainda muito bem preparada para acolher os idosos”, destaca a psiquiatra Helena Moura, especialista em psicogeriatria pela Universidade de São Paulo (USP).
A família tem uma responsabilidade enorme nesse processo, afirma Denise Machado Duran Gutierrez. “O velho não só sofre processo de migração, de deslocamento. Mas, também, muitas vezes na própria casa, perde o quarto principal, vai pra um quartinho de fundo. Os filhos, quando o levam ao médico, falam por ele, o tratam como criança, desautorizam no médico. O idoso vai perdendo voz, espaço”, acusa a especialista. Em uma pesquisa sobre 51 casos de suicídio cometidos por pessoas com mais de 60 anos, a professora da Universidade Federal do Amazonas identificou que o fator de maior frequência por trás do ato foi o isolamento social: ao investigar com familiares das vítimas, constatou que esse foi o motivo de 32,1% dos homens e 31,7% das mulheres.
O estudo também mostrou que, no caso dos idosos do sexo masculino, doenças e perdas que levam a invalidez, interrupção do trabalho ou limitação da capacidade funcional vêm em segundo lugar, seguidas por ideações suicidas (pensamentos constantes sobre esse ato), abusos físicos e verbais, morte/doença de parentes e sobrecarga financeira. Já entre as mulheres, as ideações e tentativas prévias, além de casos suicídios na família, ficaram em segundo lugar. Doenças e deficiências incapacitantes, impacto de mortes ou doenças na família, abuso e violências de gênero e endividamento se seguiram a esses motivos. Por outro lado, apoio de parentes e de amigos, incluindo os elos afetivos e os encontros de sociabilidade e lazer, foram destacados por familiares como possíveis fatores que poderiam evitar o suicídio dos idosos.
Os casos reconstituídos na pesquisa da qual Gutierrez fez parte mostram o quanto uma vida de fatos traumáticos — e sem assistência — pode influenciar no suicídio de idosos. Como a história de uma mulher de 82 anos que sofreu violência doméstica, viu a filha ficar paraplégica depois de baleada pelo marido, perdeu um filho afogado, cuidava do outro filho, que tinha transtorno mental, mas jamais externava as dores da alma. A irmã relatou que ela “sempre sorria, nunca se deixava abater”. Por trás da aparente serenidade, contudo, havia um desejo de colocar um fim nas provações. Em uma idade que passa da expectativa de vida média das mulheres brasileiras, que é de 79,1 anos, ela ateou fogo no corpo. Os médicos que a atenderam ficaram impressionados: morreu como viveu, em silêncio absoluto.
Assistência falha
Apesar da gravidade e da dimensão do problema, especialistas criticam a falta de recursos e de capacitação profissional. O enfermeiro Maycon Rogério Seleghim, pesquisador do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, lamenta a inexistência de uma base nacional de dados sobre frequência e distribuição das tentativas de suicídio, que, na opinião dele, poderiam ajudar a conscientizar gestores e trabalhadores do setor de saúde sobre a necessidade de se debruçar mais sobre o tema.
Seleghim é autor do artigo Caracterização das tentativas de suicídio entre idosos, publicado na revista Cogitare Enfermagem. No trabalho, ele avaliou fichas de ocorrência de 66 tentativas registradas de 2004 a 2010, em um Centro de Informação e Assistência Toxicológica do Paraná. Ao identificar os métodos mais utilizados por idosos, o especialista defende que é possível investir em estratégias preventivas. “A caracterização das tentativas deveria ser uma das primeiras ações a serem realizadas pelos serviços de saúde, sobretudo por aqueles com maior proximidade com essa clientela, como as unidades básicas de saúde”, afirma.
Uma preocupação do enfermeiro psiquiátrico é com o amplo acesso de pessoas com mais de 60 anos a medicamentos controlados, utilizados por 45,5% dos indivíduos que tentaram cometer o ato. “Uma situação que tem colaborado negativamente com essa questão é a prescrição inadvertida dos psicotrópicos por médicos clínicos gerais ou de família. Muitos dos medicamentos pertencentes a essa classe farmacológica são receitados por esses profissionais aos idosos sem uma avaliação neuropsiquiátrica mais específica ou abrangente, na maioria das vezes, sem considerar estratégias não farmacológicas de tratamento”, critica.