Você está vivendo um episódio de depressão. Eu sei porque já estive aí e pode ser que volte em alguma hora. Bem, quero aproveitar este momento em que me encontro aqui do lado de fora para te escrever esta carta com base no eu que já esteve aí e neste outro que um dia pode voltar.
Não tenho a pretensão de te ajudar. Quero apenas te fazer companhia por alguns momentos, como um desconhecido que se senta do teu lado num banco público, reconhece a tua solidão e puxa uma conversa, tentando respeitar sua aflição e tomando cuidado para não perturbar a segurança precária do teu isolamento.
Talvez, enquanto eu fale ou escreva, você continue sentindo uma tristeza, um desânimo e um vazio que te acompanham até demais, só que tudo isso não te impede de trabalhar, de cuidar da vida e fingir que está tudo bem quando a ocasião requer. Ou talvez você esteja paralisado e sozinho, duvidando que possa realmente sair do buraco algum dia.
Quero ser franco contigo, porque sei que nessa condição temos pouca paciência para papo furado. A depressão pode mesmo levar ao suicídio. Em outros casos, ela pode ser uma pena longa e severa, anos e anos de prisão intelectual, afetiva e funcional. A vida se derramando no ralo do tempo.
Acho bom encarar isso. É preciso reconhecer a dimensão desse obstáculo. Primeiro, para nos darmos conta de que essa condição demanda nossa atenção e cuidados imediatos e continuados. Depois, para estarmos seguros de que estão errados aqueles que, por não a terem experimentado, e por estarem mal informados, subestimam ou estigmatizam a depressão. Com isso, contribuem para criar dificuldades ao enfrentamento adequado de um problema de saúde pública mundial. Também contribuem para agravar o sofrimento de pessoas próximas. Eu tinha minhas dúvidas quando estava aí onde você está, mas hoje é bastante claro para mim: depressão não é sinal de fraqueza. Pode ser, antes, indício de sensibilidade e de inteligência (ainda que muitas pessoas sensíveis e inteligentes não sofram com ela, felizmente). Não é motivo de culpa, e sim uma enfermidade que pode e deve ser tratada.
Em alguns casos, a angústia é intensa ao ponto de fazer a morte parecer um alívio. Foi assim para mim, em alguns momentos. Aqui de fora, é fácil perceber como o horizonte fica mais sombrio através das lentes da tristeza crônica. Com o olhar desimpedido, paisagens alternativas, que sempre existiram, ficam mais claras.
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Nota do autor: no contexto de um transtorno mental como a depressão, a tentativa de suicídio não é uma decisão racional ou decorrente de livre arbítrio, ao contrário do que pode parecer; é importante, em caso de risco, buscar ajuda adequada, como a orientação de um psicólogo ou psiquiatra – disponível gratuitamente nos Centros de Atenção Psicossocial da rede pública -, ou ainda de entidades como o Centro de Valorização da Vida, que realizam um importante trabalho de prevenção, inclusive em momentos de crise. Pesquisas sobre o tema ressaltam, entre outros aspectos, os efeitos traumáticos sobre familiares e pessoas próximas nos casos consumados, bem como, por outro lado, os numerosos exemplos de recuperação do bem-estar psíquico e da qualidade de vida por meio de acompanhamento adequado.
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De todo modo, não temos muito tempo. A vida é uma projeção temporária, disse um pensador; como um filme, com começo, meio e fim. Sendo assim, mais vale fazer o melhor possível no tempo contado que temos. Mesmo com todas as limitações, mesmo em meio à depressão.
Num dia de melancolia é possível fazer bem a alguém. Você pode fazer bem a si mesmo, por exemplo, fazendo uma boa refeição, ou se exercitando. Pode ouvir alguém que precise desabafar. Fazer um elogio, encorajar. Então mais vale arriscar e tentar fazer algo de significativo, ainda que seja um passo aparentemente minúsculo. Vai que uma hora saímos desse buraco e voltamos a ganhar bons momentos no tempo que nos resta, quem sabe até fazemos uma diferença positiva na vida de outras pessoas… E o fato é que há grandes chances de isso acontecer.
A depressão pode consumir tempo de vida, mas também pode passar. Eu atravessei diversos episódios depressivos desde a adolescência, e o mais recente durou cerca de oito meses. Passei dias inteiros, do nascer ao pôr do sol, dormindo ou olhando pro teto. Deixei de trabalhar. Fui torturado sem trégua por meus pensamentos. Me senti sozinho e incompreendido no meu inferno pessoal. Tentei aguentar, tentei me ajudar, recebi ajuda. E um dia vi que tinha superado o período de depressão.
Não me iludo, sei que posso escorregar de volta. Depois de horas incontáveis de estudo, reflexão, conversas e psicoterapia, não sei dizer com precisão o que ela é, tenho ideias vagas de suas causas e não tenho a fórmula da cura. Mas conheço o lugar onde ela nos aprisiona. Eu estive aí onde você está, e trouxe comigo algo valioso: a experiência de ter saído. É pouco, reconheço, mas o que tenho de mais importante para te dizer é o que não podia ver aí de dentro: dá para sair.
Para mim, faz sentido pensar na depressão como um feitiço ou um pesadelo. Um filme de terror. Um porre brabo, uma pedra no rim. É terrível, mas uma hora acaba (não digo que acabe por si só; é mais provável que requeira um esforço consciente, prolongado e considerável, na maior parte dos casos).
Além disso, como em todos esses exemplos, sair da depressão tornou muito claro para mim que eu não sou aquilo que sinto quando estou deprimido. Aqueles pensamentos, emoções e comportamentos são manifestações de um corpo e de uma mente em depressão; não são minha essência. A mente abriga e manifesta outras identidades. Alguém pode estar deprimido, mas nunca é deprimido, não importa a duração desse estado. Posso te dar um exemplo simples: basta lembrar de algum período da vida em que você não estava em depressão. Ela chega e ela vai. Espero que você encontre outras pessoas que se libertaram, que pare para ouvi-las, e que decida acreditar nisso. Espero que se lembre disso quando estiver no coração das trevas. Dá para sair.
Tenho outra coisa para te dizer com franqueza. Ninguém vai te salvar, a não ser você mesmo. Esta tampouco é uma verdade absoluta, eu sei, apenas outra lição dolorosa e enriquecedora da minha própria vivência. Com isso, não quero dizer que não precisamos de ajuda e que não é importante contar com a compreensão, a paciência e a generosidade de familiares, amigos e médicos. Eu não teria conseguido sem eles e tenho gratidão eterna por ter podido receber sua ajuda. O que quero dizer é que todo o apoio dessa rede de pessoas, e mesmo os medicamentos, podem te ajudar até certo ponto. A partir desse ponto, você tem de caminhar sozinho.
Esse ponto é aquele em que você decide que vai se ajudar. Não é uma grande e única decisão. São muitas e pequenas escolhas diárias: se abrir com um amigo, pedir ajuda, procurar um psicólogo ou psiquiatra, levantar da cama, dar uma caminhada, passar tempo com quem está disposto a te apoiar, exercitar o corpo, evitar o álcool e outras drogas com efeito depressivo (estou me referindo aqui ao caso da pessoa deprimida), buscar coisas que te façam brilhar os olhos, prosseguir no caminho sem fim de dar significado à vida. Só você pode fazer essas coisas. Mergulhar no escuro da depressão é deparar-se com o fato de que, no fundo, estamos sozinhos. A porção que nos cabe do sofrimento inevitável da vida nós experimentamos sozinhos. Sós, podemos optar por aprender a lidar com ele, e podemos buscar os meios e a ajuda de que precisamos para isso.
Paradoxalmente, a depressão nos mostra ao mesmo tempo que não estamos sozinhos. Ela me forçou a me abrir e expor minha vulnerabilidade a um maior número de pessoas, às vezes nem tão próximas, seja para pedir ajuda, seja porque eu simplesmente não podia esconder a dificuldade por que passava. Isso me fez aprofundar algumas amizades de um modo que não teria sido possível fora desse contexto. Também me fez iniciar amizades, com uma confiança e uma proximidade maiores do que as relações costumam ter no começo. O processo de cura como um todo foi uma lição valiosa de interdependência, mostrando como meu bem-estar depende da qualidade das minhas relações – comigo mesmo, com os outros, com o meio -, da minha inserção em redes de confiança e ajuda mútua, da troca de afeto. São presentes que recebi da depressão.
Tenho vontade de compartilhar contigo algo mais sobre essa “viagem ao fim da noite” (o romance de Céline não trata expressamente de depressão, mas se relaciona ao que vou dizer, de certa forma). Ao cabo dessa viagem, não encontrei nada. Não há nada, a não ser o sofrimento. Por certo tempo durante essa incursão nas sombras, esperei fazer descobertas sobre o sentido da existência, acreditei que minha rebelião silenciosa contra a vida usual me permitiria finalmente encontrar um eixo de significado. Mas não. Nada. Tive, sim, insights e epifanias, revi hábitos e adquiri maior consciência de alguns fatores de bem-estar e de sofrimento. Mas a resposta a minhas indagações existenciais mais profundas não estavam nessa cela escura.
Entendi que não seria me abandonando que eu me redimiria.
Talvez a depressão, dor crônica da mente, seja como a dor do corpo, um alarme disparado denunciando a enfermidade de nossos modos costumeiros de interpretar e tocar a vida. Mas o remédio e a prevenção não estão na dor. É na vida de todos os dias, em meio a meus afazeres e preocupações corriqueiros, que sinto ter de encontrar, ou definir, os rumos de uma existência significativa.
A depressão me deixou mais sensível à relevância e urgência dessa busca, fez dela minha prioridade zero. Tenho buscado. Há muitas vozes no mar de informações e conselhos despejados diariamente em nossos ouvidos, e entre elas há verdadeiros amigos, profissionais de saúde e professores de vida. E há pessoas como você e eu, buscando curar-se da normalidade patológica. Espero que você as encontre, que se deixe ajudar e que as ajude. Há muito que aprender a fim de superar e prevenir a depressão, e, de modo mais amplo, viver melhor. Por exemplo, adquiri o hábito de me lembrar todo dia dos muitos aspectos favoráveis da minha vida, como ela é hoje.
Terá sido uma lição singela, mas experimentei a dor que estar à deriva na existência pode trazer e ao menos sei que a busca de significado depende de mim. Você não está sozinho nessa viagem. Te desejo força e sorte. Desejo que você possa transformar esse sofrimento em liberdade.