Em 1930, Freud escreveu o clássico “O mal-estar na civilização”, no qual apresenta como tese o fato da cultura produzir um mal-estar nos seres humanos, uma vez que existe um antagonismo intransponível entre as exigências da pulsão e as da civilização. Hoje esse mal-estar poderia ser traduzido, na visão do psicanalista Roosevelt Cassorla, no fanatismo, na incapacidade da humanidade de aceitar o diferente, no racismo, na xenofobia, na desumanização…
Para Cassorla, um dos grandes problemas da sociedade é o que chama de “assassinato da capacidade de pensar”. Segundo ele, somos “pensados” pelos marqueteiros, pela moda, pelos partidos políticos, pelas ideologias, pelas religiões fanáticas, pelo status quo. “Somos o que os outros querem que sejamos. Não sabemos quem realmente somos”, enfatiza.
Com vasta experiência no campo analítico e autor de diversos livros e artigos, Roosevelt Cassorla, um dos psicanalistas mais respeitados no Brasil, estará no Recife na próxima sexta-feira (18) para ministrar uma conferência com o tema “Quando o analista perde a cabeça: Vicissitudes do campo analítico durante o enactment”. Ele vem a convite da da Sociedade Psicanalítica do Recife (SPR).
Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Roosevelt Cassorla aborda, nesta entrevista concedida à psicanalista e diretora científica da SPR, Carolina Henriques, com exclusividade para o Diario de Pernambuco, temas como violência, narcisismo, velhice e depressão, adolescência, crise no Brasil.
A conferência será voltada para psicanalistas, psicólogos e profissionais da área. O evento ocorrerá na próxima sexta-feira (18), às 20h, no Empresarial Jopin, localizado na Avenida Antônio de Góes, nº 742, no Pina, Zona Sul do Recife. As vagas são limitadas. A taxa de inscrição custa R$ 80 e o pagamento deve ser efetuado na conta da SPR. Outras informações sobre o encontro podem ser obtidas pelo e-mail [email protected], no site www.spr-pe.org.br ou através dos telefones (81) 3226-0462/3228-1756/98609-0196.
O mal-estar da civilização no século 21
Não temos a distância suficiente para avaliar o mal-estar contemporâneo, porque fazemos parte da contemporaneidade. Talvez situações que consideramos como mal-estar estejam escondendo outras, piores, que somente surgirão com o tempo. A humanidade pré-Hitler não conseguiu imaginar o que ocorreria no nazismo, ainda que o ovo da serpente estivesse posto. Ninguém imaginaria que a invasão do Iraque levaria ao recrudescimento do terrorismo. Atualmente o que mais chama a atenção é a questão do fanatismo, da incapacidade da humanidade aceitar o diferente, o racismo, a xenofobia, a diversidade sexual, a liberdade de pensamento. Pareceria que todas as conquistas do iluminismo, da racionalidade, estão caindo por terra. No entanto, essa oscilação, entre liberdade e opressão, sempre existiu. Outro mal-estar, vinculado com esse, se refere à desumanização, o ser humano visto como coisa, alguém que somente serve para consumir, e dessa forma faz “crescer” a economia. A cultura do vazio, do consumismo, onde o que importa é “ter” e não “ser”.
O adolescente contemporâneo
O adolescente contemporâneo se vê, portanto, com sua existência definida pelo que “tem”: dinheiro, poder, tênis e roupas de marca, motos etc. Ou, descambando para a criminalidade, sendo “alguém” em função de seu prestígio no crime. Isso ocorre em todas as classes sociais. A sexualização precoce se relaciona com esse “ter”: a capacidade de atrair sexualmente se torna também uma mercadoria. O desemprego, a falta de oportunidades, o uso de mão de obra barata e ignorante fazem parte de nossa sociedade, onde grupos privilegiados usam os demais para manter ou aumentar suas vantagens. Esse aspecto sempre existiu entre nós. Existe, no entanto, um grande perigo. De rotular o adolescente como fanático, transgressor, consumista, alienado, drogado ou hipersexuado, quando na verdade ele apenas é reflexo da sociedade adulta. A adolescência é uma “lente de aumento” do que ocorre na sociedade como um todo. Não é raro que a sociedade projete (isto é, desloque) para a adolescência aqueles aspectos que ela se nega a reconhecer. Os psicanalistas sabem que, na “luta” entre gerações, não são apenas os jovens que questionam a sociedade adulta, mas esta estimula esses mesmos jovens (inconscientemente) a atitudes destrutivas. Os jovens fanáticos (terroristas islâmicos, por exemplo), os jovens drogados, os jovens alienados, etc., foram estimulados pelos adultos (no acesso às drogas, no sistema de educação fraco e autoritário, por ex). O jovem é impulsivo e sua impulsividade é aplacada a partir de sua aprendizagem com a experiência. Jovens podem ser usados como massa de manobra pelos adultos (juventude nazista, juventude comunista, por ex), numa espécie de “filicídio”, assassinato dos filhos. Lembremos que nas guerras os jovens (a “infantaria”) são levados à morte pelos adultos que “organizaram” as guerras. O assassinato da capacidade de pensar me parece ser um dos grandes problemas da sociedade. De jovens e adultos. Na verdade somos “pensados” pelos marqueteiros, pela moda, pelos partidos políticos, pelas ideologias, pelas religiões fanáticas, pelo status quo. Somos o que os outros querem que sejamos. Não sabemos quem realmente somos. E, pior, nem temos consciência disso tudo. A psicanálise é a área, por excelência, que faz com que nos conheçamos, que pensemos quem somos genuinamente. Podendo ser humano o homem desperta sua criatividade.
A cultura do narcisismo
Outro fator, vinculado ao anterior, é o que chamamos “cultura do narcisismo”. Isto é, as pessoas se voltam para si mesmas (seu próprio “umbigo”) e ignoram os demais, a não ser que estes lhes sirvam para seu uso e abuso. As relações amorosas genuínas (nas escolas, no trabalho, nos grupos, entre casais) são transformadas em “levar vantagem”. O indivíduo sem relações amorosas genuínas tende a viver num vazio existencial. Esse vazio será preenchido com álcool, sexo, drogas, consumo etc.. Estudos mostram que estas personalidades viveram deficiências nas suas primeiras relações, com seus pais e cuidadores. Comumente estes também tiveram dificuldades em suas próprias vidas e todos sofrem porque a possibilidade de intercâmbios amorosos se torna dificultada. Uma criança deveria ser planejada, com amor e os pais deveriam ter condições emocionais (e evidentemente materiais) de acolhê-la. Isso nem sempre ocorre. Um jovem que vive com pais frustrados, por fatores emocionais ou por fatores sociais (desemprego, faltas de oportunidades, de reconhecimento) será infeliz. O amor por si mesmo é também abalado e a autoestima, fator de felicidade, não é suficiente. Temos que cuidar-nos, no entanto, para não culpar os pais: estes sempre tentam ser os melhores possíveis e suas dificuldades provêm de seu próprio ambiente original e atual. Crianças com lares desorganizados podem superar as deficiências e, por vezes, crianças mais sensíveis, com cuidadores muito adequados, podem apresentar dificuldades.
A violência
Penso que a violência doméstica, nas escolas e nos grupos sociais é bastante influenciada pela dificuldade de suportar frustrações. Isto ocorre em todos os indivíduos. O adolescente precisa de figuras de identificação sadias, isto é, a personalidade do jovem se constitui a partir da convivência com pais, professores e líderes, em que ele deseja, de alguma forma “ser como eles”. Ou “não ser como eles”, a identidade negativa. Uma sociedade em que as pessoas se orgulham de serem desonestas, de “levar vantagem” estimula identificações desse tipo. Uma sociedade onde a ética e o respeito pelo outro predominam, leva a identificações com esses aspectos. Lembremos, no entanto, que a geração adolescente é agente de mudanças da sociedade. O jovem, com toda a energia própria da idade, é naturalmente questionador, quer saber como são as coisas, porque são assim e etc. Ele não está compromissado ou adaptado como ocorre com seus pais. O questionamento adolescente é reprimido pelos adultos ou usado como massa de manobra. O correto seria que esse questionamento fosse estimulado, em forma criativa, para aumentar a capacidade de pensar. Infelizmente isso tem se tornado menos comum e a alienação da sociedade se reflete na alienação do adolescente. Eventualmente sua infelicidade (já que o alienado pode não sentir-se suficientemente vivo) o torna frustrado e essa frustração pode levar a violência ou à desistência. A violência se relaciona com a dificuldade ou a incapacidade em pensar. Frente a um problema, real ou imaginário, nossa mente precisa pensá-lo em forma criativa, para encontrar uma solução. Acabar com o problema através da violência implica em incapacidade para pensá-lo. Guerras, conflitos de gangues, violência doméstica, violência social, são frutos dessas condições. A violência sutil é tão ou mais preocupante: a falta de oportunidades, o desrespeito cotidiano ao ser humano, os preconceitos escondidos, o ódio dissimulado, os ataques nas redes sociais, etc., que se manifestam na burocracia, na corrupção, nos ataques à liberdade, na propaganda subliminar. A psicanálise, assim como outras áreas do conhecimento, luta para que a capacidade de pensar, critica e criativamente, se desenvolva. O papel das escolas e outras instituições da sociedade deveria ser capital. Mas nem sempre há interesse em que os jovens pensem criativamente.
Suicídio e homicídio
O suicídio e o homicídio são as faces mais visíveis dessa violência. Mas existem os “suicídios” sutis: quando a pessoa desiste de lutar por si mesma e pela sociedade e se adapta acriticamente, numa espécie de morte em vida, que ela mesmo não percebe. Esse “suicídio” comumente segue um “homicídio” da vitalidade por partes da sociedade que preferem utilizar indivíduos acríticos e sem capacidade de pensar como mão de obra ou massa para ser manipulada.
Velhice e depressão
A velhice é outro problema atual. Não deveria ser um problema se o velho fosse reconhecido como alguém que deu sua contribuição, aquela possível, à sociedade e esta deveria homenageá-lo e cuidá-lo por isso. O respeito aos mais velhos, os mais sábios, faz parte de várias culturas. Numa sociedade em que o consumo e a força de trabalho são valorizados, em detrimento da sabedoria e da experiência, os velhos são vistos como uma carga. Uma das maiores necessidades do ser humano é sentir-se existente, ter alguma importância para os demais. Se isso não ocorre a vida pode não valer a pena. Evidentemente a depressão e o suicídio, que ocorrem proporcionalmente mais em idosos, tem outros fatores para além do não reconhecimento. Profissionais de saúde mental devem ser consultados quando ocorrem situações de tristeza intensa, muitas vezes sem motivos definidos, que duram algum tempo. Há indícios que a depressão tem aumentado, tanto em jovens como em adultos e idosos. Possivelmente fatores sociais, como os descritos, contribuem para isso. É importante, também, não confundir a tristeza, normal, que ocorre quando vivenciamos perdas – pessoas queridas, oportunidades, ideais, por ex. – com a depressão grave. A tristeza faz parte da vida e costuma diminuir e extinguir-se como o tempo. Por outro lado, “não fica bem” demonstrar tristeza e sofrimento numa sociedade em que se exige que a alegria e o prazer sejam permanentes. Em outras palavras, temos que aceitar e conviver com o sofrimento, que faz parte da vida. Comumente será esse sofrimento que nos tornará mais experientes e maduros para aproveitar melhor a vida.
A crise no Brasil
Vejo, no Brasil, apenas uma crise pontual. As instituições estão funcionando de uma forma exemplar. Aquilo que parece crise é apenas reflexo de uma maior conscientização da sociedade que clama por mudanças. Infelizmente, o mais provável é que, como em outras ocasiões, a experiência seja pouco aproveitada e que o país continue dominado por uma minoria que controla corações e mentes. A questão da cidadania deve ser retomada. No entanto, essas crises, gradativas, podem também aumentar o número de jovens questionadores e críticos e, quem sabe, em algum momento, isso fermente para que, em algumas gerações, se desenvolva um maior respeito pelo ser humano. Ou não…, não sabemos… Ódio, inveja, voracidade, destrutividade, fazem parte dos seres humanos e nem sempre sua contraparte, o amor, a solidariedade, o respeito, são suficientes para contrapô-las. Sempre teremos conflitos – isso faz parte da humanidade. Temos que correr, sempre, em direção à utopia, ainda que saibamos que ela não existe. É nesse “correr” que aprendemos a viver em sociedade.
Sobre a psicanálise
A psicanálise é uma área do conhecimento que permite que a pessoa entre em contato com seus pensamentos e sentimentos mais profundos, inconscientes, e que influenciam sua vida, sem que ele tenha consciência disso. Como área científica tem nos mostrado como nos constituímos como seres humanos, como vivemos conosco e com os demais, como lidamos com os conflitos que fazem parte da vida, e nos ajuda a pensar e sentir em forma tal que, em geral, nos tornamos mais vivos, mais criativos para aproveitar a vida da melhor forma possível. A psicanálise vai em direção contrária às soluções fáceis, que têm receitas para a felicidade. Ela não tem soluções rápidas ou melhor, ela não tem soluções de forma alguma:: ela apenas ajuda a pessoa a pensar e decidir sobre si mesma. O psicanalista não dá conselhos, porque sabe que eles pouco ajudam. Em geral o paciente já ouviu esses conselhos, muitas e muitas vezes, e eles não foram úteis. Costumo falar que a psicanálise é uma “pós-graduação” em nós mesmos e o analista apenas nos acompanha e orienta para que enxerguemos o melhor caminho. A psicanálise não é contra qualquer outro tipo de tratamento, tal como a medicação, que pode ser muito útil quando bem prescrita. Por outro lado, a psicanálise pode não ser a melhor indicação em determinadas situações, principalmente orgânicas. O profissional de saúde deve ser consultado. Por outro lado, a psicanálise pode e deve ser aplicada ao conhecimento psicológico e psiquiátrico e também à educação e a todas as formas de relações humanas. Estudiosos vêm se debruçando, desde Freud, a buscar formas para que esse conhecimento vá para além dos consultórios dos psicanalistas. Entre as contribuições sociais que o conhecimento psicanalítico (junto com outros) encontramos a importância da amamentação, o alojamento conjunto mãe-bebê nas maternidades, o apoio às mães principalmente no primeiro ano de vida (licenças-maternidade e paternidade cada vez mais longas nos países desenvolvidos), o diagnóstico precoce de problemas emocionais na infância, os cuidados na relação médico-paciente, os cuidados paliativos, o lidar com os lutos e a morte, etc. A psicanálise tem, também, uma interface com as neurociências, as ciências humanas e com a arte. Estudos interdisciplinares vêm aumentando nosso conhecimento.”