Um povo de suicidas?
É conhecida a afirmação de Miguel de Unamuno, escritor e filósofo espanhol: “Portugal é um povo de suicidas”. Ideia que, noutros termos, o autor e médico português Manuel Laranjeira também exprimiu num conhecido texto (incluído em Pessimismo Nacional, publicado em anos recentes pela Opera Omnia), no qual se refere a uma “terra onde homens de génio como Antero de Quental, Camilo e Soares dos Reis têm de recorrer ao suicídio como solução final duma existência de luta inglória e sangrenta”.
O director do serviço de psiquiatria do Hospital de Santa Maria, Daniel Sampaio, considera que a frase de Unamuno deve ser entendida como “uma alegoria, usada para exprimir uma certa tristeza existente no quotidiano dos portugueses”. Do ponto de vista científico, a frase está errada. “Os países do Sul da Europa têm taxas modestas de suicídio comparadas com os valores das taxas da Europa do Norte”. Em Portugal, só as taxas a sul do Tejo (sobretudo no Alentejo) são elevadas.
O psiquiatra Carlos Braz Saraiva, coordenador do livro “Depressão e Suicídio” (Lidel, 2014), vai no mesmo sentido. . Refere que Unamuno escreveu um livro sobre Portugal e os portugueses depois de viajar pelo país no final da Monarquia. Muito impressionado pelos recentes suicídios de intelectuais, exemplificados nos autores citados por Laranjeira, apelidou-nos de um povo de suicidas. “A figura contém carga simbólica, talvez o fim de Escola da Geração de 70, e não tanto sobre os números epidemiológicos gerais do país, assaz baixos dentro do panorama europeu”.
cbs
Carlos Braz Saraiva é professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra
Braz Saraiva contextualiza. As taxas de suicídio em Portugal eram globalmente baixas no final do século XX quando comparadas com as dos demais países da Europa. Ou seja: sempre abaixo dos dois dígitos. “Já no século XXI passámos a ter dois dígitos [acima de 10 suicídios por 100 mil habitantes e por ano].” O Alentejo é um caso à parte: “Contrastantes continuam a ser os números elevados do Alentejo em relação aos do resto do país.” Por exemplo, quando comparados com os do Minho ou de Trás-os-Montes a diferença é muito significativa. “Todavia, se compararmos Portugal no seu todo com a Rússia ou os países bálticos e escandinavos, a nossa realidade é mais favorável”.
O também professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra salienta o facto de muito já se ter afirmado nas Letras e nas Ciências sobre o suicídio no Alentejo. Em 1998, conta, houve um congresso em Odemira para debater o assunto, quebrando um tabu. Foi possível reunir médicos, sociólogos, psicólogos, autarcas, assistentes sociais, a GNR, sacerdotes e outros protagonistas essenciais à prevenção. “Foram decididas medidas para mitigar a força da tragédia”. Gesto difícil mas possível em algumas dimensões tendo em conta os estudos existentes. “As causas do suicídio no Alentejo há muito que são conhecidas: isolamento, desertificação, pobreza, envelhecimento, migração, desesperança, personalidade depressiva, alcoolismo, baixa religiosidade, falta de apoios médico-sociais. Só para destacar as principais.”
“Dizer que os alentejanos aceitam o suicídio no sentido de não sofrerem com ele, de não sentirem a perda como as gentes de outros sítios, é falso.”
Ana Matos Pires, psiquiatra
Regista um dado: a maior parte das famílias alentejanas tem um suicida no seu repositório de memórias familiares. “O que pode perpassar a ideia de uma maior compreensão e aceitação pela renúncia à vida de alguém que persiste desmoralizado ou doente ao longo de meses ou anos.” Ou de alguém que não quis ou não soube pedir ajuda. “É de não esquecer que estamos a falar de homens suicidas idosos e não de jovens, de acordo com o retrato comum.” E os métodos violentos usados não deixam grande margem para a sobrevivência. “Há uma certa aceitação cultural. Mas não se pode dizer que é natural.”
O psiquiatra Daniel Sampaio também destaca o facto de o suicídio sempre um “fenómeno multideterminado”. Acrescenta ao que apontou o seu colega como hipóteses mais válidas para o mesmo a existência de muitos casamentos consanguíneos entre pessoas com depressão e, concretizando um dos factores já apresentados, as dificuldades de implementação de seguimentos psiquiátricos continuados, “essenciais para a prevenção do suicídio”.
“Ninguém Morre Sozinho”, publicado em 1991, é um dos títulos de referência da obra de Daniel Sampaio
“Ninguém Morre Sozinho”, publicado em 1991, é um dos títulos de referência da obra de Daniel Sampaio
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Ao sul
Há mesmo no Alentejo uma maior aceitação — cultural e social — do suicídio do que a que existe noutras zonas do país? Para Ana Matos Pires, psiquiatra e directora do serviço de psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, não há. “Discordo em absoluto dessa leitura, desde logo porque a condenação do suicídio, no Alentejo ou noutras regiões, é um mito que não tem tradução real, é uma herança e uma extrapolação da condenação religiosa do suicídio como ‘pecado’.” Por outro lado, refere, uma afirmação desse tipo dá a falsa ideia de que o no Alentejo não se sofre com o suicídio de alguém. “Dizer que os alentejanos aceitam o suicídio no sentido de não sofrerem com ele, de não sentirem a perda como as gentes de outros sítios, é falso.”
O suicida está, segundo a médica, encurralado no seu sofrimento e na sua desesperança. “Houve um homem, Beck, que estudou as cognições depressivas e que falava no ‘desespero aprendido’ e em como as cognições depressivas alteravam a percepção da realidade no deprimido, em particular o modo como, em virtude do estado depressivo, o futuro era visto como ‘negro’.” Alega que são a falta de alternativa e a angústia que determinam, muitas vezes, a perda de controlo do impulso e a passagem ao acto suicida. “Nesse sentido, o suicida está, ou sente-se, encurralado e sem alternativa.”
Ana Matos Pires acha decisivo que as questões do suicídio em Portugal, e por maioria de razões no Alentejo, sejam discutidas com cautela e rigor, com dados muito bem colhidos, estudos muito bem desenhados e conclusões sustentadas. Em caso contrário, “o risco da desinformação é grande”. Já para Carlos Braz Saraiva, romances como o de Rui Cardoso Martins e teses como a de Henrique Raposo são importantes para a discussão deste tema fracturante da sociedade. “A mudança de atitudes e juízos pressupõe algum esforço de dialéctica”, diz. O importante, conclui, é que haja serenidade para uma abordagem racional e objectiva do problema.