— Por que a gente não pode dormir para sempre e não acordar mais?
A pergunta com a inocência de uma criança de seis anos revelou um pensamento que a pequena tinha há algum tempo. Ela não queria mais viver e ensaiava como acabar com a angústia que sentia. Deixando a infância de lado, passava dias sem comer ou falar. A necessidade de se isolar aumentava. Aos 12 anos, a mistura de café com veneno foi a primeira tentativa de suicídio.
— Para a gente que é depressiva o mundo é tão difícil, o teu mundo é colorido, o meu é preto e branco — diz Elis*, moradora da Grande Florianópolis, hoje com 33 anos, cujo diagnóstico da doença só foi dado aos 28.
Os suicídios entre crianças e adolescentes se tornaram mais comuns nesta década. O Mapa da Violência, publicação baseada em dados do Ministério da Saúde, mostra que os recortes da população em que as taxas de suicídio mais cresceram no Brasil, entre 2002 e 2012, foram os dos 10 aos 14 anos (40%) e dos 15 aos 19 anos (33,5%). Em Santa Catarina, apesar dos números nessas faixas etárias apresentarem uma pequena queda em 2015, especialistas se preocupam pelo aumento de tentativas – principal fator de risco – e pela dificuldade de diagnóstico.
No caso de Elis, a ingestão de veneno foi encarada como acidental, o que atrasou o diagnóstico de transtorno de humor bipolar – que compreende fases de depressão, de euforia e irritabilidade – em 16 anos. Estima-se que 50% das tentativas de suicídio sejam registradas como acidentes domésticos. As lesões autoprovocadas – que incluem as tentativas de suicídio – subiram 545% nos últimos cinco anos entre as crianças em SC. Já entre os adolescentes, o aumento foi de 340%. No ano passado, foram registradas 32 mortes entre crianças e adolescentes no Estado. Mas, assim como nas demais faixas etárias, nove entre 10 suicídios podem ser evitados, pois estão relacionados a transtornos mentais, que podem ser tratados. O que evidencia a importância de estar atento aos sinais e procurar ajuda profissional a tempo para aumentar as chances de recuperação.
É o que quer Marsala*. Aos 14 anos, ela insistiu para que os pais a levassem a um psicólogo.
— Se a pessoa tem diabetes, procura um médico. Mas com a depressão não é assim, e é uma doença como qualquer outra. Eu demorei muito para aceitar que eu tinha. Para mim, a tristeza era como se fosse minha personalidade, como se eu fosse triste desde sempre – conta a estudante de teatro, agora com 21 anos.
Na busca por acabar com a dor que a acompanhava, houve algumas tentativas de suicídio ainda na adolescência. Mesmo com a resistência para procurar ajuda especializada, hoje Marsala está em tratamento e vislumbra um futuro promissor.
Para Elis, o futuro se revela nos olhos azuis da sobrinha que cria. Nos hematomas do pescoço da menina, enxergou um alerta. Aos nove anos, a criança acumula pelo menos três tentativas de suicídio e um diagnóstico: depressão. Com o tratamento da sobrinha, Elis só deseja para a pequena um mundo mais colorido.
* Os nomes foram substituídos a pedido dos entrevistados para preservar a identidade.
Os desafios para encarar o problema
A equação para reduzir as tentativas e os suicídios entre crianças e adolescentes não é simples. A primeira dificuldade é identificar os sinais. Muitos pais os confundem com uma crise da adolescência ou com tentativa de chamar atenção. A psiquiatra Deisy Mendes Porto, da Associação Catarinense de Psiquiatria, explica que muitas lesões provocadas em si mesmo, como a automutilação por exemplo, não têm intenção de suicídio. Mas ainda assim não podem ser ignoradas:
— Em adolescentes, a automutilação é um fenômeno que tem acontecido mais. Mesmo assim, não pode ser visto como uma maneira de chamar a atenção, porque é um fator de risco para uma tentativa de suicídio e já pode ser um indicativo de sofrimento.
Para o especialista em psiquiatria da infância e da adolescência Marcelo Calcagno Reinhardt, outro ponto é a resistência de familiares e o preconceito sobre procurar um psiquiatra – resistência ainda maior quando envolve infância e adolescência.
Segundo Calcagno, estudos apontam que metade das doenças mentais começa até os 14 anos. Mas muitas vezes situações ambientais, como família em crise ou bullying, por exemplo, também podem desencadear sintomas de ansiedade e de depressão.
– E há a preocupação com relação a medicar pessoas tão jovens. Muito se fala nos riscos da medicação excessiva, mas pouco sobre o risco e as consequências de não tratar precocemente transtornos graves. Acumulam-se prejuízos sociais, acadêmicos e familiares. Alguns transtornos como esquizofrenia geram prejuízos cognitivos que seriam evitados.
A autoestima e a personalidade de forma geral carregarão marcas de doenças mentais não tratadas, além do risco de suicídio – alerta Deisy.
Estimular vínculos afetivos saudáveis, evitar qualquer tipo de assédio – físico, psicológico e sexual –, ensinar as crianças que têm dificuldade a pedir ajuda para que possam lidar com as frustrações, além de incentivar bons hábitos alimentares, de sono e praticar atividades físicas são fatores que ajudam a prevenir futuros transtornos mentais:
– Fornecer uma boa primeira infância faz toda diferença para a saúde mental do resto da vida – reforça a psiquiatra Deisy Porto.
Em todas as situações, o fundamental é que pais, professores ou amigos conversem com a criança ou adolescente e perguntem abertamente e sem julgamentos como se sentem. E caso identifiquem alguns sinais de risco, procurem ajuda de um psiquiatra ou um psicólogo ou nas unidades básicas de saúde.