Sabemos que uma das formas de prevenir o suicídio é restringir o acesso aos meios letais. Nesse sentido, vale a reflexão…
O depoimento de um dos principais criminólogos do Brasil sobre as armas:
Em linhas gerais, isso foi o que aprendi pesquisando a questão nestas duas décadas: onde existem mais armas, existem mais suicídios e homicídios
Passei a prestar atenção na questão das armas de fogo quando trabalhava no Ilanud (nstituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente), no final dos anos 1990, e a ONU (Organização das Nações Unidas) publicara um estudo internacional sugerindo que o Brasil era o país onde proporcionalmente mais se usava armas de fogo para cometer homicídios.
Havia uma percepção difusa de que as armas estavam de algum modo ligadas ao nosso crescente número de assassinatos – tanto que em 1997 o porte ilegal passou de contravenção a crime e é criado o SINARM (Sistema Nacional de Armas) – mas pouquíssimos estudos empíricos sobre o tema.
Como sempre, sofríamos do crônico problema da falta de dados e de pesquisas para embasar políticas públicas. A Lei 4937, de 1997, produziu um forte impacto na venda de armas no país e para reclamar da queda de 40% no faturamento, a indústria começou a divulgar seus dados. Na literatura internacional aventava-se a hipótese de que a taxa de suicídios local tinha forte relação com a disponibilidade de armas e agora dispúnhamos de dados para testar esta correlação no Brasil.
Este foi meu primeiro levantamento sobre o tema em 1999: tomamos as vendas anuais de armas da Taurus em 1997 e 1998, por Estado, calculamos a taxa de armas por habitante e comparamos com a taxa de suicídios disponibilizada pelo Datasus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde). E ali estava: confirmando um levantamento internacional que Martin Killias fizera anos antes com 18 países, encontramos uma forte correlação (r=.58) entre a quantidade de armas vendidas nos Estados pela Taurus e suas respectivas taxas de suicídio. Não havia o tal “efeito displacement” (que afirmava que “quem quer se matar se mata de qualquer jeito”). Nos Estados com menos armas, menos gente se matava.
Hoje já está estabelecido que a relação entre suicídios e disponibilidade de amas é tão grande que, se você não sabe ao certo quantas armas existem em circulação num lugar, pode-se tomar a taxa de suicídio como uma medida substituta. Esta foi a estratégia seguida por Daniel Cerqueira, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), aliás, para corroborar os efeitos do Estatuto do Desarmamento sobre a queda dos homicídios em São Paulo, em sua tese de doutoramento.
O principal motivo para se portar arma, segundo as sondagens de opinião, é a proteção contra crimes. A segunda razão é “se sentir forte” e a terceira “fazer boa impressão com os colegas”, como revelou a pesquisa de Nanci Cardia do NEV (Núcleo de Estudos da Violência, da USP), em 1999.
Mas será que a arma de fogo realmente protege quem a usa ou aumenta o seu risco? Esta foi a segunda oportunidade que tive de estudar o tema, como colaborador, em 2000, de uma pesquisa conduzida por Jacqueline Sinhoretto e Renato Lima para a Secretaria de Segurança de São Paulo. Em 1999, Ignacio Cano, do Iser (Instituto de Estudos da Religião), já estudara milhares de roubos no Rio de Janeiro e concluíra que o risco de levar a pior durante um assalto – ser ferido ou morto – era maior para quem tinha arma de fogo e reagira.
Os dados de São Paulo iam na mesma direção: segundo o DataFolha, cerca de 18% dos paulistas andavam armados. Entre as vítimas de latrocínio, 28% estavam armadas, sugerindo, portanto, que o uso da arma aumenta o risco de ser morto num assalto. O sociólogo Claudio Beato acaba de divulgar neste mês um estudo feito com 78 mil vítimas corroborando as conclusões destes levantamentos anteriores, usando dados da pesquisa nacional de vitimização.
(…)
Em linhas gerais, isso foi o que aprendi pesquisando a questão nestas duas décadas: onde existem mais armas, existem mais suicídios e homicídios; o estrago é feito pelas armas nacionais de baixo calibre, compradas legalmente e que terminam na mão dos criminosos; portar armas aumenta o risco de ser ferido ou morto num assalto; tanto a Lei 4937/97 quanto o Estatuto do Desarmamento tiveram efeitos significativos sobre os homicídios em São Paulo; estes efeitos são tanto maiores quanto melhor for a implementação e mais favorável a conjuntura.
Nos meus 30 anos de segurança pública, não encontrei nenhuma outra medida ou política pública que tivesse efeitos tão significativos sobre a criminalidade quanto o Estatuto teve. Agora o lobby das armas, aproveitando a conjuntura anti-governo, quer acabar com umas das poucas medidas que serviram para melhorar a segurança deste país.
Pouco adianta falar em pacto para a redução dos homicídios se o Estatuto for revogado. Os homicídios irão retomar com toda a força a trajetória linear de crescimento observada desde os anos 1980 até 2003. Foi o que ocorreu durante a farra das armas. É o que vai acontecer novamente caso o Estatuto seja revogado, na convicção quase unânime da comunidade acadêmica que se debruçou sobre o tema. Se está ruim com ele, ficará muito pior sem.
*Túlio Kahn é doutor em ciência política pela USP e considerado um dos principais criminólogos do país.