O major Cristoph Carvalho, da Polícia Militar do Rio de Janeiro, não sabia como consolar os colegas. Pela manhã, ele e o batalhão acordaram com a notícia de que um cabo, há anos na corporação, havia se jogado na linha de trem que liga a capital às cidades da Baixada Fluminense. “As pessoas indagavam o porquê, pois não havia sinais claros de que algo estava errado com a vida dele”, ele conta. Enquanto ainda lidava com o desconfortável luto e a incompreensão dos praças, Cristoph teve que enfrentar outro suicídio nas fileiras em que dedicou sua vida. “O suicídio do tenente Fábio, meu companheiro de alojamento durante os três anos de formação, teve muito impacto sobre toda a turma de oficiais – em especial sobre os 33 tenentes que serviam ao seu lado”, diz.
Eles não foram os únicos. O policial militar João era um cara extrovertido, ainda que o divórcio com a mulher já fizesse com que as rugas e as olheiras brotassem por seu rosto. Aos 32 anos, ele não tinha qualquer histórico de tratamento de saúde mental. Em um dia de trabalho, João atirou contra a própria cabeça dentro do Batalhão de Choque. Considerada uma pessoa serena pelos companheiros, Regina tinha o sonho de ser policial militar. Morava sozinha, em um dos milhares de apartamentos na cidade carioca, e aproveitou a solidão do lar para dar um tiro na cabeça, aos 27 anos. Miguel era um policial conhecido pelo histórico de violência em casa. Segundo relatos dos familiares, um de seus costumes era “brincar” de roleta-russa na frente da mulher e dos filhos. Em vez de sofrer calado, comunicava o desejo de se matar. Ao chegar em casa, foi ao banheiro, se observou no espelho e calculou onde os jorros de sangue poderiam atingir. Estava preocupado com a sujeira que poderia causar. Abaixo da porta do banheiro, deixou um bilhete: “Vou sair antes do combinado”. E atirou.
Cidade Maravilhosa
No Rio de Janeiro, bloqueios policiais e desfiles de armamentos aparentam tão naturais quanto os gigantescos morros de granito que brotam em meio à floresta e à cidade. Mesmo que as rodas de samba, da zona sul à oeste, soem uma tranquilidade harmoniosa pelas comunidades e nas coberturas dos bairros ricos, a beleza contraditória do cenário não consegue disfarçar: o Rio está em permanente estado de guerra. Em 2015, mais de 5 mil pessoas morreram de forma violenta (homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal e mortes causadas por policiais). Há facções ligadas ao tráfico e milícias que preenchem planilhas com mortes brutais. Em meio a esse conflito aparentemente insolúvel entra em cena o policial. “O PM é criado para ser um guerreiro invencível”, explica o tenente-coronel Fernando Derenusson, chefe do Núcleo de Psicologia da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. “Há uma cultura interna que impõe a ideia do soldado capaz de lidar com todos os problemas – e muitos levam esse ideal para a vida pessoal, como se pudessem resolver tudo sozinhos.”
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Com apenas 98 psicólogos para atender cerca de 50 mil policiais, a equipe de Fernando, por meio de uma pesquisa interna realizada a cada três anos, estima que 30% dos PMs de regiões violentas sofram com problemas psicológicos. O policial militar, entretanto, demora a pedir socorro. Anunciar o próprio sofrimento aos colegas pode desencadear piadas ou falta de compreensão. Desabafar no consultório médico pode resultar em afastamento do serviço e transferências que bagunçam a já complicada rotina. Há relatos de policiais que aparentavam normalidade à família mas, trancados no quarto, choravam durante horas por terem perdido um colega próximo – por vezes, baleado em operação na frente dos companheiros – e sequer receberam permissão para ir ao funeral. Os últimos dados apontam 115 policiais mortos e 655 feridos até outubro de 2016, com óbitos quase sempre no período de folga. Policial nunca deixa de ser policial, e o flerte constante com a morte alheia – ou a própria – o ajuda no acúmulo de pensamentos destrutivos.
Como se os problemas psicológicos à paisana já não fossem o suficiente, o sistema interno agrava ainda mais a vida de quem escolheu a farda. As pesadas jornadas de trabalho podem afastar a tropa de familiares e, devido à hierarquia militar, é possível que um recém-ingresso permaneça no mesmo cargo durante anos, cumprindo longas horas-extras não remuneradas. Assim, com a violência exposta na paisagem e com uma tensão explodindo por todos os lados, o suicídio soa como uma saída: há quatro vezes mais chances de um PM se matar, em comparação com a população geral do Rio. É fácil encontrar um PM que, se não testemunhou, já pensou na possibilidade. “Há cerca de 12 anos, quando ainda era novato, conheci um capitão que atirou contra a própria cabeça. Suspeitávamos de que ele estava mal, mas ele nunca quis se abrir com ninguém”, conta Fernando. “A falta de pessoal no auxílio psicológico e psiquiátrico torna nosso cobertor muito curto. O necessário seria ter o dobro de agentes de saúde mental na corporação – mas tentamos ao máximo desarmar muitas ‘bombas’ por aqui.” Pela necessidade de se manter o efetivo, porém, um PM que já tentou se matar pode retornar à ruas, armado, em pouquíssimo tempo. E é com o próprio instrumento de trabalho, sempre próximo à mão, que a maioria dos casos são consumados.
Auto-morte
O suicídio está presente em todas as instâncias policiais – civil, militar e federal – de todos os Estados brasileiros, e também no exterior. Os primeiros estudos internacionais a apontarem o problema datam dos anos 70, embora inicialmente sejam tratados com resistência. Não à toa, só agora, em 2016, é que a polícia fluminense foi capaz de intensificar e tentar sanar o problema. Desde o início do segundo semestre, membros do alto escalão participam de campanhas para promover “a valorização da vida”. Para acelerar o processo, 122 agentes do Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência), mais habituados ao diálogo com estudantes, também serão treinados para ministrar palestras contra o suicídio em todas as UPPs do Estado. A medida só foi possível graças aos esforços de Dayse Miranda, pesquisadora da UERJ e formadora do GePESP (Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção), uma força-tarefa de cientistas sociais, sociólogos e policiais-psicólogos que formulou “Por que policiais se matam?”, a principal pesquisa sobre o assunto feita especificamente para a tropa do Rio.
Driblando a rígida hierarquia militar e sensibilizando, aos poucos, até o mais endurecido dos capitães, Dayse colocou à prova os números disponibilizados pela instituição. Em um levantamento feito por sua equipe em dez batalhões de regiões violentas da capital e do interior, ao menos 89 policiais relataram ter um amigo de farda que se suicidou, número muito maior do que o anunciado oficialmente (na pesquisa, mais de 900 fichas foram remetidas à tropa, porém mais da metade voltou em branco). Do grupo analisado, ao menos 81 tentaram ou pensaram em se matar. “Há um sério problema de confiança: o policial desconfia de todos, e não consegue se comunicar e confiar, integralmente, nem em um colega”, afirma Dayse. A mão por vezes autoritária da hierarquia interna intensifica a desconfiança: o de cima manda, o debaixo obedece. É como se ambos não fizessem parte de um mesmo grupo, e a apatia com o próximo abre espaço para centenas de abusos de autoridade entre comandantes e comandados. Isso revela, em parte, como abusos costumam afetar mais as tropas comuns. Em agremiações especializadas, o número de suicídios cai. Em cerca de 20 anos, o Bope, por exemplo, teve apenas um registro. “Buscamos líderes que diminuam a distância hierárquica e se interessem em conhecer os pontos fortes e os fracos de seus subalternos e de si próprio”, diz o coronel comandante da PMERJ. “Temos em mente que ‘missão dada é missão cumprida’, mas são pessoas de carne e osso que fazem a missão, cumprem metas e conquistam objetivos”, conta.
Ainda que o próprio sistema estimule o suspirar da morte no ouvido da tropa, a brutalidade da polícia não é um fator relatado por policiais que já pensaram em suicídio. “Nunca entrevistamos quem tenha sofrido por matar alguém: é como se fosse habitual”, conta Carmen Cortês Furtado, tenente-psicóloga da PMERJ e pesquisadora do grupo chefiado por Dayse Miranda. E o histórico é longo: policiais militares estão envolvidos em suspeitas de execução por todo o Estado. Há casos de maior repercussão – como a tortura e morte do pedreiro Amarildo em uma UPP na Rocinha – a mortes que passam despercebidas pela mídia e caem no esquecimento. “Talvez eles não consigam digerir o quanto causar mortes os afetam”, analisa a policial.
A recomendação de oficiais, como Carmen e René, é de que o tema seja abordado da formação ao alto-comando estadual. Para alcançar esse difícil objetivo, o Proerd pretende entrar em ação já no ano que vem. O momento é propício a surtos suicidas: a corporação vive um dos período mais conturbados de sua história. A crise financeira, presente em todo o país, tem no Rio um de seus principais epicentros. Policiais foram destacados para reprimir policiais em protestos contra a falta de pagamento de salários. Fontes ligadas à polícia afirmam que a treta criou um estado de sofrimento psicológico intenso ao exército policial. Eles, que se julgam invulneráveis, batalham contra colegas de farda. Famílias passam por dificuldade para se sustentar financeiramente. Nos últimos dois meses, dois policiais se mataram no Estado do Rio de Janeiro.