Em homenagem ao Dia Internacional dos Sobreviventes Enlutados pelo Suicídio, compartilhamos esse especial “A presença da ausência”, do Gazeta Online.
Tão permanente quanto a morte é a lacuna que ela deixa. Ao perder alguém que faz parte de nossa vida, o que nos resta é a presença da ausência. E essa sensação é maior quando a partida é inesperada, sem motivo nem razão. Ficam as fotos, as lembranças e o quarto vazio. É saber que quem estava ali não vai mais estar. “Todo Finados chove”, é a primeira lembrança de um dia marcado por lembranças. É o dia em que alguns visitam a morada dos que se foram e revisitam memórias. É o dia de lembrar da morte.
Em Hamlet, a morte é tratada como aquele “país ignorado de onde nunca ninguém voltou” e, ao utilizar essa citação, o escritor Andrew Solomon entende que não há outro assunto sobre o qual se tenha escrito tanto e sobre o qual tão pouco se tenha dito. E o processo pode se tornar ainda mais complicado quando a morte é, além de tudo, uma decisão disparada por aquele que já se foi. O suicídio é tabu. O suicídio é tabu.
O tema é delicado, mas falar sobre suicídio é necessário. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, 90% dos casos de suicídio podem ser prevenidos, desde que existam condições mínimas para o acesso à ajuda profissional ou voluntária, seja em caráter público ou privado. A primeira medida preventiva é aprender mais sobre o assunto. É preciso deixar de ter medo de falar sobre suicídio, derrubar os tabus e compartilhar informações apropriadas ligadas ao tema.
A OMS ainda contabiliza que aconteça um milhão de suicídios por ano em todo mundo, com taxas que variam de menos de 10 a 25 óbitos a cada 100 mil habitantes. O número é agravado ao observar que para cada suicídio há, em média, cinco a seis pessoas próximas à vítimas que sofrem intensas consequências emocionais, sociais e econômicas. Há estudos que lidam com até 50 afetados pelo suicídio.
A psicóloga Daniela Reis e Silva trata do suicídio como um evento complexo e, em um de seus artigos, esmiúça o fato do mutismo em relação a tirar a própria vida. “Na sociedade ocidental, o suicídio constituiu-se em tema interdito, em uma tentativa de completa negação da dor, do sofrer, da morte. Dessa forma, o suicídio acaba sendo envolvido por preconceito e julgamento. Por isso as tentativas são acompanhadas de sentimentos de vergonha, embaraço ou culpa e os laudos policiais são, por vezes, distorcidos, no intuito de abafar as verdadeiras ocorrências das tentativas e do suicídio. Muitas famílias ainda escondem o acontecimento, evitando falar sobre o assunto.
Pouco se fala sobre suicídio, menos ainda sobre os sobreviventes. Sobreviventes.
OS SOBREVIVENTES
Aqueles que cometem o suicídio se vão e, além da saudade, deixam um imenso por quê . Os grupos familiar e social das vítimas do suicídio apresentam risco de comportamento suicida aumentado. Isso se deve em função ao próprio processo de luto, pela reação à uma situação traumática, pela possibilidade de fatores genéticos ligados a transtornos psiquiátricos, e pela possível existência de um fenômeno conhecido como transmissão transgeracional de padrão de comportamento.
A violenta e repentina morte do ente querido, além de uma ferida imensamente dolorida, torna-se um quebra-cabeças composto por vários “e se” cuja última peça sempre faltará. Só a pessoa que morreu poderia explicar, talvez, o que passou naquele derradeiro momento. O filósofo alemão Arthur Schopenhauer, em um de seus ensaios, trata o suicídio como “uma experiência, uma pergunta que o homem faz à Natureza, tentando forçá-la a responder. (…) É uma experiência desajeitada, pois envolve a destruição da própria consciência que pergunta e espera a resposta”.
As dúvidas são os golpes além do golpe. A crise além da crise. A psicóloga e terapeuta do luto Daniela Reis e Silva não encontrou estudos científicos que comprovem que o luto por suicídio demore mais para ser elaborado. Algumas pesquisas indicam a existência de semelhanças entre o luto por suicídio e o luto por outras perdas traumáticas. “No entanto, na prática clínica algumas características se sobressaem. Uma é a presença da culpa, apesar de nem todos os enlutados terem esse sentimento presente. E as perguntas. Os ‘ses’ e os ‘porquês’ “.
A psicóloga explica que o suicídio não é predizível e tudo pode depender principalmente dos fatores de proteção que a pessoa em risco tem. “Eu já trabalhei com enlutados que receberam tanto apoio que isso não passou pela cabeça, bem como outros que diziam ‘eu nunca vou fazer isso porque estou vendo o que eles estão passando’. É preciso cuidar de cada enlutado de uma forma diferente. Há os fatores de risco, mas há os fatores de proteção”.
Muitos enlutados podem encontrar, inclusive, dificuldades em admitir que a morte foi por suicídio, buscando formas de disfarçar a verdade, seja para si mesmo ou para outros parentes considerados “frágeis”. A atitude pode levar ao segredo e ao silêncio, posições tomadas para proteger não só a memória daquele que se foi, mas a integridade do que se pensa como família no momento após a perda.
Daniela Reis e Silva ainda ressalta que nem sempre é a existência do segredo que impedirá ou complicará o processo de luto, mas o próprio processo familiar que se desdobra a partir do ocorrido. Nesse viés, torna-se importante entender o suicídio como um estigma cultural, social e religioso, abraçando negativamente a compreensão dos sobreviventes e contribuindo para que a experiência seja ainda ainda mais dolorosa, devastadora e traumatizante.
As exéquias e os rituais de luto, muitos deles atrelados à práticas religiosas, esbarram na parede do tabu levantada pelo suicídio. Historicamente considerado traição por parte da pessoa que morreu e comparado com o homicídio, o ato de tirar a própria vida é agressivamente condenado, o que expõe suicida e sobrevivente aos mais diversos tipos de punição, incluindo privação de funerais, formando outra cicatriz.
Negar esse processo ao enlutado, seja por pressão de fatores exteriores ou recusa deliberada – por negação ou mecanismo de defesa – pode impedir o recebimento do apoio que se faz necessário para procurar caminhos positivos após a experiência traumática.
No século 20 a morte foi retirada do cotidiano. O lúgubre momento foi transportado para hospitais e ambientes alheios ao lugar comum a todos. Desta forma, a sociedade busca se poupar das perturbações causadas pelo fim. A morte se tornou vergonhosa. Vergonhosa, proibida e inominável, segundo o historiador francês Phillipe Àries. “No suicídio, em função do estigma, há uma falha no suporte social ao enlutado trazendo uma mágoa por não poder, não querer ou não conseguir expressar os sentimentos”.
A penalidade é aplicada repetidas vezes, já que não há explicação para o ocorrido, um julgamento constante por parte da sociedade, que não aceita e rotula a família (e portanto os sobreviventes) como desestruturada, incapaz, desajustada ou desequilibrada, além da culpa que o enlutado carrega e a maior de todas elas e razão para o luto: a ausência.
DOR DE MÃE: “PENSEI QUE NÃO FOSSE AGUENTAR”
Mariza é mãe de gêmeos univitelinos. Fábio e Guilherme. Com 20 anos, no dia 27 de novembro de 1997, Guilherme se foi. Dois anos depois, no mesmo dia, Fábio também.
Ela morou com os gêmeos em Vitória. Mudou-se para Brasília. Voltou para Vitória. Nas duas cidades, os jovens demonstraram muita habilidade para esportes, apesar de pouco interesse para os estudos. Fábio se tornou um skatista revelação. Os irmãos também praticaram judô, natação, surfe. Sempre se destacaram.
“Meus filhos eram líderes desde pequenininhos. As melhores fichas de leitura. Mas eram muito agressivos. Eles começaram a não querer estudar muito. Em Brasília começaram os problemas de aprendizado. E eu achava que era porque eles eram vagabundos. Achei que era vagabundagem”.
A mãe percebeu um comportamento diferente, agressivo, em Fábio. O jovem passou a exibir um olhar vazio, distante. O comportamento foi prontamente associado ao uso de drogas. Guilherme já usava maconha, então não seria estranho se o irmão também utilizasse. Começou o cerco.
A agressividade e os comportamentos pouco ortodoxos se transformaram em uma crise psicótica. Mariza buscou apoio psiquiátrico para o filho. “A médica dizia que ele tinha indícios de esquizofrenia e que tinha 60% de chance do outro ter. O primeiro surto antes dos 20 anos não era um bom prognóstico. Não tive coragem de contar para ninguém. Nem chorava. Fiquei sentada na calçada olhando para o além e sinceramente preferi não acreditar”.
Enquanto a patologia de Fábio se agravava, Guilherme passou a usar mais maconha e também a se isolar. Antes de virar motivo de preocupação, passou a servir o exército. Guilherme se tornou recluso, distante do mundo e mais próximo da namorada.
“A situação do Fábio se agravou. Foi internado e voltou. Cheirou cola, usou cocaína uma vez. Eu sei disso porque eles me contavam tudo. Para uma pessoa com problemas mentais usar drogas é fatal”.
Diante dos problemas e da luta enfrentada com Fábio e com o afastamento de Guilherme, Mariza decidiu voltar para Vitória. Apartamento novo, vida nova. Em outubro ela chegou com Fábio. Guilherme viria dois meses depois, pois ainda precisava concluir os compromissos com o Exército Brasileiro.
Em Vitória, o gêmeo sem diagnóstico de patologia psicológica ficava muito nervoso. A namorada ficara em Brasília e iniciou-se um processo de culpa. Culpa por não ter estudado, culpa por querer casar e não enxergar um futuro, culpa por se considerar um fardo para a mãe.
“Um belo dia Guilherme se jogou de bicicleta contra um muro. Quando cheguei no hospital vi o olhar dele para o vazio. Ele estava em transe. Guilherme nunca teve nada disso. Ele saía do surto, olhava pra mim, beijava o chão e dizia: ‘mamãe, como eu pude fazer isso?’.
Guilherme passou a ter acompanhamento médico. Menos intenso que o do irmão. Mais remédio. A namorada veio para Vitória, ele fazia planos de estudar e no meio desse processo, o fim. “Ele estava dormindo comigo na minha cama, a namorada em outro quarto. Até hoje eu ouço minha voz, meu grito”.
Com 20 anos, no dia 27 de novembro de 1997, Guilherme se foi. Dois anos depois, no mesmo dia, Fábio também.
Com a dor de perder um filho somada à dor de cuidar de outro psicologicamente instável, Mariza enxergou o que chamou de véu preto. “Ali eu pensei que não fosse aguentar, porque ele era o ‘bom’, ele que me ajudava com o Fábio. Ele que falava ‘maninho, não faz isso’. Perder o filho é uma dor alucinante”.
“Eu não queria fazer nada, não queria levantar. Nisso Fábio chega perto de mim e fala: ‘por que você tá chorando? Eu tô vivo, você tem que ficar feliz’. E toda vez que me via triste não conseguia lidar, ficava agressivo. Vi que tinha que salvar o Fábio”.
Um policial foi até a casa de Mariza e, além de investigar o suicídio e fazer todos os processos necessários relativos ao ato, orientou a mãe. Os amigos ajudaram. A partir daí, foram mais dois anos. Anos muito difíceis. “Li tudo que se pode imaginar sobre suicídio. Acho que isso foi o que me permitiu continuar a viver uma vida normal. Foi uma coisa muito forte, precisava entender o que passava na cabeça dele. Li coisas técnicas, coisas dolorosas e com isso acho que me fortaleci como pessoa”.
Mariza voltou para a igreja, buscou auxílio espiritual e quando aconteceu com Fábio, o véu preto voltou a cair sobre a vida da mãe. Uma constatação. “Não consegui segurar esses meninos aqui”.
Com 22 anos, no dia 27 de novembro de 1999, Fábio se foi. Dois anos antes, no mesmo dia, Guilherme também.
A dor não passa. Mariza recebeu o repórter em casa com a mãe recém-operada por um pequeno acidente doméstico, Mariza aguardava um prestador de serviço enquanto ajudava a mãe a caminhar – recomendações médicas – e, entre uma pequena tarefa e outra ela disse que a dor não passa.
Depois do ocorrido, algumas mães ligaram. Outros amigos queriam que ela fosse visitar. “Fiquei horas no telefone dizendo que elas ficariam bem. É importante entender, aceitar a decisão de cada um e não se culpar. A vida era deles, esse caminho era deles. A gente interfere a vida inteira e precisa de um ato desse para entender que eles não eram meus”.
Hoje Mariza chora menos, mas não significa que ela não chore mais. “Uma das piores coisas é fazer supermercado. Ver as coisinhas que eles gostavam”. Mariza lida com isso. Ri um tanto lembrando das coisas. Fala dos filhos. Fala com os filhos. Esse luto é pra sempre.
“SERÁ QUE A GENTE TEM DE MORRER JUNTO?”
* Neste relato usamos nomes fictícios para preservar a identidade dos participantes.
Eduardo era brilhante. Fazia filmes, tocava em banda, bebia, fumava e fazia tudo o que faz um universitário. De uma família até certo ponto excêntrica, como descreveu João, irmão mais novo de Eduardo, tudo era permitido. A relação de proximidade entre os membros da família era grande. A proximidade não só entre eles, mas também com a depressão. Por conta dessa relação, quando foi a vez de Eduardo passar por momentos mais sombrios, o caso foi considerado normal. “Depressões a gente teve e venceu, pensamos: vamos lá!”, disse João numa manhã de calor forte.
A história narrada por João vem de uma trágica coincidência. o irmão atentou contra a própria vida no dia em que João produzia um documentário sobre o luto. Ele encontrou o corpo de Eduardo após voltar das gravações no cemitério.
“Ele fazia Economia, tinha banda, saía, estava feliz. Até que começou a ficar depressivo, começou a sentir dificuldade em fazer as coisas. Ele saiu da banda, meio que brigou. Tava brigando com os irmãos, com os pais e foi ficando uma situação muito densa”.
Nenhuma família espera enfrentar uma crise suicida. A família de Eduardo buscou ajuda, acompanhamento psicológico e psiquiátrico. “Ele estava na luta. Tinha esse acompanhamento, estava fazendo natação, fazendo atividades para não deixar a peteca cair. Mas ele estava mal. Mal. A gente via que ele não estava bem. Via que ele não estava se cabendo dentro dele”.
João e Eduardo faziam muitas coisas juntos. Uma delas era filmar, interesse em comum entre os dois. Antes de ir embora, Eduardo se deitou com João e perguntou se ele o amava. “Eu disse que sim, claro. E conversamos coisas lindas. Ele falou que as coisas mais lindas que ele tinha feito foram comigo. Ele ainda saiu. Foi para o samba”.
No outro dia, 2 de novembro, Dia de Finados, João sairia para gravar o documentário muito cedo. Antes de sair, ouviu a música do celular de Eduardo vindo do banheiro “Deve ter voltado tarde”. Passou a manhã no cemitério colhendo depoimentos emocionados para o filme.
Ao voltar, antes de se sentar à mesa com a família, decidiu chamar Eduardo. “Acho que ele já dormiu o suficiente”. Foi até o quarto. A porta estava fechada. No banheiro aberto, celular e caixa de som. “Achei que ele estivesse dormindo muito profundamente”. João decidiu dar a volta no quarto. Foi quando encontrou o irmão.
“Quando eu cheguei na janela eu o vi. Morto. Sei lá. Você perde o chão. O mundo gira. Na hora eu fiquei tão em choque que eu só pensei no que eu tinha que fazer. Eu estava numa casa com mais três senhoras. Duas idosas. Eu tinha que tomar uma atitude. Eu virei tipo um robô de execução de tarefas. Liguei para o meu pai e meu irmão e disse que precisava deles urgente, ainda segurando as pontas. Quando eles chegaram foi que eu desabei. Eu comecei a chorar e foi o momento em que tudo caiu. Agora eu tinha auxílio emocional para lidar. Eu falei: o Eduardo está morto”.
Foi a hora em que a família toda ficou sabendo. A mãe desmaiou. Todos em choque. Ninguém acreditava. O primeiro pensamento depois do forte sentimento, segundo João, foi revisitar os porquês. “Nesse momento a gente pensa que a gente deu tanto carinho, tanto amor. Tinha briga, mas tinha liberdade. Liberdade sexual, religiosa”.
E no fim dos porquês da família, a constatação. Ele escolheu.
“E aí a família entrou em colapso. Ficamos muito recolhidos. Tivemos um apoio gigante de todo mundo. Aí foi aquela loucura. Velório. Funeral. Tinha muitos amigos. Ele era um cara muito querido. Difícil, mas muito querido. Não falamos para ninguém e o velório lotou. Passado velório, choque, monte de amigos dormindo por semanas em casa pra gente não ficar sozinho, fomos doando as coisas dele. Cada um pegou uma lembrança e depois a gente percebe que a saudade é gostosa e vira potência. Cada um ficou com uma parte dele”.
Além de toda a carga emocional, João ainda tinha um documentário para tocar. De um assunto delicado, para além do recente em sua vida. O grupo disse que seria melhor não fazer. João não concordou. “Não. Vamos fazer esse tema. Fazer em homenagem ao meu irmão. Não só como homenagem a ele, mas como forma de ajudar quem passa por luto. Acho que foi a minha salvação de certa forma, foi algo que eu não imagino como teria sido sem isso. Escutei pessoas que acabaram de perder alguém ou que tinham perdido um ente querido há anos e fui entendendo que tudo é processo”.
Um processo muito difícil, muito duro e longo. Na entrevista, João falou e chorou. “A morte é muito pesada para a gente. A gente morre junto. Mas será que a gente tem que morrer junto?”, questionou.