Em 14 de junho de 2001, Tadeu José Severo se levantou, e, como de costume em todas as frias manhãs gaúchas, falou para a mulher que iria fazer fogo, preparar o chimarrão e então acordá-la. Mas ‘Leu’, como era chamado pela família e amigos, mudou de idéia, foi até o campo onde plantava fumo e se enforcou.
O ato pode parecer um caso isolado. Mas só em 2015 suicidaram-se 10 pessoas — na maioria agricultores — em Santa Cruz do Sul, cidade gaúcha com cerca de 102 mil habitantes, conhecida como capital do fumo.
Para especialistas em saúde, o número é alarmante: a média brasileira é de 6 suicídios a cada 100 mil pessoas. O recorde mundial é da Guiana, com 44,2 por 100 mil, segundo a Organização Mundial da Saúde. O país com menor número de suicidas é a Arábia Saudita, com apenas 0,4 por 100 mil.
Em 1996, o assunto ganhou as páginas da imprensa brasileira e internacional quando uma epidemia de suicídios atingiu a cidade de Venâncio Aires, vizinha de Santa Cruz. Na época o índice local chegou a 37,22 casos por 100 mil habitantes. Entre 2005 e 2008 viu uma queda, mas houve um novo pico em 2011, provavelmente associado ao endividamento dos agricultores.
Integrantes do Gipas (Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação em Agricultura e Saúde), uma entidade autônoma gaúcha, lançaram então a suspeita de que intoxicações com os chamados organofosforados — substâncias presentes em vários agrotóxicos — pudessem causar depressão, levando aos suicídios.
Pesquisadores da Unisc (Universidade de Santa Cruz do Sul), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da UFRJ (Universidade Federal do Rio) encontraram em 2001 novos indícios que reforçam a tese, mas o vilão da história pode ser outro componente.
Em vez dos organofosforados, o estudo constatou que o manganês, presente em alguns fungicidas, pode provocar danos muito mais graves. E concluiu: ‘pode-se aceitar como verdadeira a hipótese de que os agrotóxicos utilizados indiscriminadamente no cultivo do tabaco causam intoxicações e distúrbios neurocomportamentais nos membros das unidades familiares de produção’. As culturas de fumo são geralmente plantadas por pequenos produtores, assim como as de batata e morango.
TREMORES
“O índice de suicídios é alto e freqüente aqui na região. Quase semanalmente se ouvem relatos de gente que se suicidou”, disse em Santa Cruz do Sul a geógrafa Virgínia Elisabeta Etges, que coordenou essa pesquisa.
A presença de manganês foi detectada em pessoas das famílias investigadas em níveis muito acima dos descritos em literatura médica, segundo Angelo Trapé, toxicologista da Unicamp. Intoxicações por esse metal podem causar tremores e outros sintomas semelhantes aos do mal de Parkinson, pois o manganês age diretamente no sistema nervoso central.
O método utilizado na pesquisa considerou como referência a presença de 50 microgramas de manganês por litro de sangue. Nessa taxa se enquadraram 5,6% dos agricultores pesquisados. Mas estudos feitas no México e em São Paulo apontaram que pessoas com níveis de 25 microgramas por litro já apresentavam sintomas de tremores e perda de sensibilidade.
A pesquisa não conseguiu trabalhar com níveis sangüíneos menores de manganês por causa da falta de recursos. Trapé pondera que a taxa foi muito alta, podendo mascarar a associação entre alguns sintomas e a presença do metal. “É provável que a contaminação em doses menores seja bastante superior a esse percentual”, diz. Ele acredita que o metal pode estar “exercendo um papel toxicológico importante”, mas que ainda é necessário aprofundar a investigação com novos testes.
O neurologista da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Henrique Ballalai Ferraz também constatou ansiedade e nervosismo nas pessoas que manipulavam o agrotóxico. “É possível que a intoxicação cause depressão. Faz sentido mesmo.” Ele chegou a essa conclusão em sua pesquisa à procura de sinais de Parkinson em agricultores de tomate e morango no interior de São Paulo e apontou uma relação com o manganês nos fungicidas conhecidos como ditiocarbamatos, os mesmos do fumo.
Para os pesquisadores, tanto no caso do organofosforado, como no do manganês, intoxicações agudas ou uma exposição longa aos agrotóxicos deixam sequelas neurocomportamentais que podem evoluir para um quadro de depressão. Esse quadro, aliado a uma série de problemas econômicos e sociais, poderia levar ao suicídio.
SAÚDE MENTAL
O índice de mortes é um reflexo da complicada condição de vida do agricultor. A pesquisa, realizada com 315 colonos, constatou altos índices de morbidade psiquiátrica (44%), ansiedade (65%) e de pessoas que dizem “sofrer dos nervos” (cerca de 25%).
O fumicultor Haroldo Ivo Bolduan, de 54 anos, conta que na época da colheita facilmente passa mal depois do trabalho e fica ” irritado por qualquer coisa”. “Eu tô sofrendo do nervo. Às vezes acontece umas coisas que não dão bem certo. Aí a gente fica nervoso. Produzir fumo não é fácil”, lamenta-se.
Bolduan lembra que o pai, Artur, também sofria desse mal. Chegou a ser encaminhado para um sanatório, mas voltou para casa ainda doente. “Um dia ele acordou, tomou café da manhã e saiu. Depois de cinco minutos fez aquilo.” Artur não agüentava mais a aparente “inutilidade” em que ele se encontrava e se enforcou. “Ele não comentava nada, mas estava muito nervoso. A idéia sentou na cabeça e não teve jeito. Ele gostava muito de trabalhar (na lavoura) e não podia mais. Sentiu que não tinha mais valor.”
Esse tipo de doença “dos nervos” citada por Bolduan tem como pano de fundo o estresse a que é submetido o colono, que trabalha o ano inteiro para uma única colheita e está sujeito o tempo todo a algo dar errado: granizo ou calor excessivo fora de hora, pragas na lavoura e o preço baixo na hora da venda. Tudo isso pode ser agravado pelos efeitos dos produtos químicos usados. Vários estudos mostram que pessoas expostas aos agrotóxicos apresentam irritabilidade.
“A ansiedade e a morbidade psiquiátrica são mais elevadas do que as registradas em outros estudos na zona urbana”, afirma a psicóloga Raquel Ribas Fialho, que coordenou o trabalho de campo. “O questionário aplicado deu um perfil da situação, indicou que podem existir problemas psiquiátricos nessa população. Mas não deu um diagnóstico. É necessário agora fazer entrevistas em aprofundamento.”
Um outro estudo semelhante, que abordou a saúde mental de agricultores da Serra Gaúcha, em 1996, também apontou transtornos psiquiátricos nos colonos das lavouras de uva e maçã. A pesquisadora Neice Faria, do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas, constatou problemas psiquiátricos menores, como depressão e ansiedade, em 36,5% dos entrevistados. O mesmo questionário, aplicado na área urbana de Pelotas, teve uma taxa de 22%. A amostra utilizada foi de quase 1.500 agricultores. Em 2014, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul constatou que um em cada cinco agricultores da região ainda tinham depressão.
Neice descobriu também que quem já teve alguma intoxicação aguda por agrotóxico tinha três vezes mais transtorno psiquiátrico. Essa relação sofre o efeito do ovo e a galinha, segundo a pesquisadora. “Não se sabe se era a pessoa com mais transtorno que se expunha mais e, por isso se intoxicava mais, ou se a pessoa intoxicada desenvolveu problemas psiquiátricos em decorrência disso”, afirma.
Para ela, uma coisa causa a outra: “Quem já é mais transtornado emocionalmente tem mais risco de se intoxicar, pois se protege menos, expõe-se mais e tem uma atitude mais auto-agressiva. E quem teve alguma intoxicação pode ter seqüelas emocionais e neurológicas e por isso poderia ter mais transtorno psiquiátrico.”
A Andef (Associação Nacional de Defesa Vegetal), entidade que representa as indústrias de agrotóxicos, não quis se pronunciar sobre a pesquisa e os suicídios.
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(Esta reportagem foi publiacada na edição 64 da GALILEU e atualizada em 2016)