Vamos falar (e ouvir falar) de morte e luto?
A leitura é difícil, sem dúvida. Pode ser insuportável, dependendo do momento em que estejamos na vida. Mas também pode mostrar as belezas deixadas, em nossa memória, por aqueles que foram embora. Fica aqui nosso convite para uma leitura que pode ser feita aos poucos, com a delicadeza e a paciência que estes temas merecem.
Na morte e no luto também cabem a saudade, o companheirismo e a solidariedade.
Se falar de morte fosse fácil, ou agradável, todo happy hour seria no cemitério. Mas não. Ao cemitério reservamos nossas exceções, evitações e dias de dor.
É que dizer adeus a uma pessoa amada dói. É viver um pouquinho da vida que não controlamos e que não conseguimos prever. É uma sensação extremada de tristeza, desconforto e abandono justamente no momento de nossa maior impotência desde que saímos de um ventre quentinho.
É tratar de algo que nos afeta sem possibilidade de distanciamento, justamente porque não temos como escapar. Quantas não são as nossas lembranças, em primeira pessoa, de uma despedida sofrida, um velório, um enterro, uma cremação?
Ser a nossa única certeza na vida não alivia em nada o tabu que existe sobre a morte e sobre a instalação obrigatória dela em nossas realidades, por meio do luto.
É o luto que possibilita que a morte de alguém querido passe a ter outros significados em nossa vida, que não o já esperado desamparo. Aos poucos, ele ressignifica dores e faz com que o fim do túnel ganhe uma lanterninha, uma lâmpada de led ou um holofote.
Viver volta a fazer sentido, explica a psicanalista Raquel Baldo Vidigal:
“O luto é um processo de despedida tanto de quem morreu ou do que se perdeu, mas principalmente de despedida do amor com expectativas e planos que existia em cima daquela pessoa ou história. O luto é necessário e serve para que possamos abrir e perceber o espaço que irá ficar vazio. Sim, isso dói, mas é a partir desta vivência que poderemos em algum momento liberar um novo espaço para a continuidade na vida, para novas propostas de amor e de vida.”
Há aí um parceiro inseparável: o tempo. O problema é que o tabu anda acelerando ou ditando prazos para o luto de uma pessoa. Duas semanas de luto são suficientes, segundo o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), publicação que orienta o trabalho dos psiquiatras.
“A sociedade se prende a regras e etapas para cumprirmos na vida, como se vivêssemos em uma gincana superando cada fase, e quanto mais rápido, melhor acreditamos estar na corrida da vida. O luto se tornou uma dessas etapas a serem superadas e isso é preocupante. Afinal, como dizer que um filho, ou uma mãe, ou uma esposa devem parar de sofrer seu luto após 10 ou 15 dias?”
Vidigal lembra que a vida não é uma gincana, e a agilidade em passar pelos conflitos ou experiências não garante nenhuma vitória.
“Pelo contrário, poderia pensar que provoca perdas. Perdas tão tamanhas que nem são sentidas ou vividas, pois o sujeito atual está mais preocupado em vencer a si mesmo do que viver a si mesmo.”
Essa sensação da inadequação corresponde à padronização que a sociedade tem esperado dos comportamentos. E a morte, com seu desdém por avisos prévios, simplesmente não se encaixa em nenhum padrão. Por que o mesmo não pode ocorrer com o luto?
“O luto é algo muito particular, é aquela dor e angústia que somente cada um sabe como é a sua. Às vezes é chorada, outras vezes é calada, às vezes é preciso estar com muitas pessoas, outras vezes, ficar sozinho(a).”
Vidigal lembra que o luto não é algo a ser tratado, como uma doença ou uma síndrome. “Estão tentando tratar algo que, na verdade, é simplesmente (mesmo que nem sempre seja simples) um processo comum e necessário de todo ser humano.”
“Há pessoas de luto por mais de anos e isso não significa impedimento de vida. Não precisa ser. Para estar em luto não é preciso abandonar a própria vida. Ela, sim, irá ficar mais lenta, mais pesada, pois estará sendo carregado um peso extra que demanda coragem para em algum momento ser deixado. Mas enquanto a pessoa não prejudica sua vida ou de outras pessoas por esse peso extra, em nada devemos interferir. Cabe a nós apenas estar ao lado e acolher. Talvez até mostrar que quando estiver pronta a pessoa, poderemos ajudar com novas referências de vida. Mas a escolha é dela.”
Falar sobre o luto e sobre a morte da pessoa amada é uma maneira de deixá-la viva na memória e de dissipar a gigantesca massa de dor que, naquele momento, toma conta da existência de quem ficou.
E esse falar não pertence apenas a quem passou recentemente pela perda de alguém: Pertence a todos nós. Pois assim nos preparamos para aceitar uma condição certa em nossas vidas, em vez de tratar a morte como algo a ser negado, combatido ou ignorado.
O falar também pode ajudar a desenvolver a nossa escuta, principalmente uma escuta baseada na empatia, em que nos colocamos no lugar do outro e oferecemos um espaço para alívio e companheirismo. Essa escuta é tão preciosa e essencial para acolhermos amigos e quaisquer outras pessoas que estejam passando por esse difícil percurso!
Vidigal é assertiva quanto ao sofrimento gerado por uma morte:
“Deixem a pessoa chorar e sofrer. Isso não é problema, não é doença e não precisa de cura. Devemos é tomar cuidado com essa proposta atual de não sofrer e de resolver a vida na agilidade. Devemos tomar cuidado, pois poderemos descobrir, no dia de nossa morte, que esquecemos de viver!”
Viver a morte também diz respeito a belezas
Onde há morte e luto há também muita saudade, beleza e esperança. E para mostrar que nossa empatia pode aparecer em inúmeros momentos, apresentamos abaixo 11 relatos que exemplificam a vivência do luto.
O primeiro deles foi concedido pela jornalista Simone Bertuzzi ao HuffPost Brasil. Ela precisou acolher a indescritível tristeza gerada pela morte do ex-namorado, Rodrigo, vítima de um assalto. “Até deitar na cama é difícil, vendo o lugar dele desocupado ao lado.”
Os outros 10 relatos foram extraídos do site Vamos falar sobre o luto?, enviados voluntariamente por quem o viveu.
Criado por sete amigas que passaram pelo luto, o site é um espaço digital de informação, inspiração e conforto para quem perdeu alguém que ama ou para quem deseja ajudar um amigo.
A iniciativa gerou também o documentário Vamos Falar Sobre o Luto, de onde retiramos alguns depoimentos:
11 relatos que trazemos são histórias bonitas, tristes, e com um sentimento em comum: o grande amor que conectava os envolvidos.
Cada trecho retirado do Vamos Falar Sobre o Luto traz o link para o depoimento original, na íntegra.
Vale a pena se aproximar de cada relato. O aprendizado e a possibilidade de empatia são grandes:
“Algumas pessoas enxergam a permissão ao luto como uma fraqueza, apelo por atenção ou até início de depressão. Em alguns casos, algumas pessoas tiveram a intenção de me motivar, mas acabaram me deixando mais magoada, tratando a minha perda e superação como algo mais prático do que realmente é. Com alguns comentários senti que, para algumas pessoas, eu deveria tratar a perda de uma pessoa querida como se tivesse perdido um show, um sapato ou até mesmo um namorado. Isso me magoou muito.
Outra coisa que percebi é que a percepção de tempo é diferente para quem vive o luto e para quem o acompanha indiretamente. Para alguns amigos, quando não completava nem um mês da minha perda, eu já devia estar de volta aos nossos eventos sociais. O fato de não querer sair, celebrar ou conversar sobre outros assuntos significava que estava sendo fraca, me entregando à depressão ou até mesmo negando a prestigiar as amizades. Mas como poderia eu lembrá-los que não estava em depressão ou sendo fraca e sim ainda precisando digerir e ecoar a angústia pela ida de alguém querido, de um amor? Para algumas pessoas, esse tempo já era o suficiente para seguir em frente. Para mim, ainda tinha muita coisa para digerir.”
Simone Bertuzzi sobre a morte do ex-namorado, Rodrigo
“Uma coisa é a dor da perda. Outra coisa é a dor do tabu. É a dor de se sentir inadequado, de não encontrar informação, de achar que você é o único que tá passando por aquilo.”
Mariane, no documentário Vamos Falar Sobre o Luto?
“Você pode transformar uma dor em saudade, porque a saudade é o amor que fica.”
Roberto, no documentário Vamos Falar Sobre o Luto?
“Se você não dá conta de escutar como eu me sinto, tudo bem. A gente vai tomar sorvete.”
Mariane, no documentário Vamos Falar Sobre o Luto?
“Mas você ainda tá sofrendo com isso? Ainda tá falando nisso?”
Julia, no documentário Vamos Falar Sobre o Luto?
“Em nenhum momento achei que ela tivesse desaparecido. Aprendi a lidar com a dor enxergando a partida como algo natural, um pedaço da própria existência – a morte significa um novo jeito de existir. Nem sei com que frequência penso nela. Sei lá, todos os dias? Se eu escuto uma música que gostávamos de ouvir juntos, vou pensar em nós, claro, mas de um jeito diferente: ao invés de ‘eu queria que você estivesse aqui para ouvir isso’, penso ‘se você estivesse aqui, iria amar ouvir isso’. Ela aparece para mim das formas mais variadas, nas coisas que eu vejo, nas coisas que eu faço. Quando me perguntam se tenho filhos, sempre respondo: ‘Sim, uma filha. Ela não está mais aqui com a gente’.”
Paulo Camossa sobre a filha, Amanda
“Por mais que você não queira, o ar entra e sai; o sangue circula, o coração continua batendo; as pálpebras abrem; os pássaros, desaforados, insistem em cantar. Um amigo aparece, uma chefe boa te oferece o emprego de volta (gratidão, Lenita e Dulce), o rosto dos seus filhos te lembram que eles precisam de você, mesmo que você não saiba como ajudá-los, como dizer que tudo vai ficar bem.
Por muito tempo não fica, menti um pouco pra eles, mas não vou mentir pra você. Por muito tempo, talvez pra sempre, você sinta que violentaram a sua alma, que tiraram uma parte sua. Nas minhas divagações, aliás, pensava em barganhar com Deus. Leva uma perna, um braço, deixa o Daniel. Tola eu.
Aceitar a morte é provavelmente a única garantia que temos da vida, e justamente a mais difícil. É dizer o óbvio: não controlamos nada, não existe sempre justiça ou, pelo menos, não conseguimos ver a figura completa. Por que alguém saudável, com três filhos, uma mulher apaixonada, um emprego incrível, tantos amigos, tantos leitores, tanta, tanta vida tem que morrer aos 41 anos?”
Renata Piza sobre o marido, Daniel
“A morte de um filho é uma situação permanente, uma condição que se instala, algo que passa a ser parte do que somos. Da mesma maneira que ninguém deixa de ser pai ou mãe: é condição definitiva, ainda se a língua não nos dá uma palavra para chamá-la, como a viúvos e órfãos (a morte de um filho é ideia tão horrorosa que não queremos sequer nomeá-la?). O filho (e a sua morte) continua a estar presente, acompanha para sempre a vida dos pais. Nesse sentido, não se supera.”
Andres Bruzzone, sobre a morte do filho, Pablo
“Dois meses depois da morte do Iel, o Daniel [amigo de Gabriel] organizou um ritual que é icônico entre os surfistas, o de queimar a prancha dos amigos que partiram. O Iel dizia que Maresias era o lugar que ele mais gostava no mundo, então só podia ser lá. Esse luau com a fogueira, a luz das labaredas das pranchas iluminando a areia, o violão dos irmãos e as músicas sob as estrelas me trouxeram a consciência da importância de prosseguir com as celebrações. Não foi um momento triste, foi mágico, porque me trouxe a alegria de saber que o meu filho tinha uma presença forte na terra. Foi ali que entendi que festejar a vida dele era a melhor coisa que poderíamos fazer por ele e por nós: a festa daquele filho amado precisava continuar. A partir daí, passei a entender a força dos rituais.”
Cynthia de Almeida, sobre a perda do filho, Gabriel
“As fichas foram caindo aos poucos. Logo quando ela morreu, a primeira coisa que eu senti foi algo como ‘o mundo não é justo, sou uma criança abandonada’. Mas hoje vejo como ela foi extremamente generosa comigo ao esperar que me sentisse segura antes de seguir o seu caminho. A sensação que eu tenho é como se tivesse havido uma passagem de bastão, entende?! E isso foi um presente. Além disso, ela me deixou tantas lições, mas tantas lições nessa vida, que me inspiram todos os dias. Até o fato dela ter descoberto a doença e morrido logo depois me fez parar pra pensar que a vida é agora e que precisa valer a pena.”
Mariana Fleury sobre a mãe, Lucia Maria
“Eu era como a maioria das pessoas que conheço: olhava a morte de longe e evitava, tanto quanto possível, pensar ou falar sobre essa certeza da vida que eu gostava de acreditar ser remota.
Até o dia da partida do meu pai, quando eu tinha 27 anos e tive que encará-la forçosamente. Tenho que reconhecer que o fiz mais ou menos de frente. Várias cortinas amenizaram – ou disfarçaram – minha dor naquele momento. A preocupação com a minha mãe e a crença de que faz parte do destino dos filhos despedir-se de seus pais. Acomodei meu coração tendo a suave presença do meu pai perto de mim por um tempão, que eu acessava pela intuição, imaginação e pelo coração. Hoje, após mais de 20 anos, ainda penso nele todos os dias.
Segui o fluxo da vida até que um dia tive que viver o contrário: foi o momento em que despedi do meu filho Paulo, quando ele tinha 28 anos, no dia 28 de janeiro de 2012. Aquilo sim rompia qualquer referência que eu pudesse imaginar. Sem ponto de partida ou de chegada, senti minha alma quase suspensa.”
Rita Almeida sobre o filho, Paulo